A cidade antiga
A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
eBookLibris
A CIDADE
ANTIGA
Fustel de
Coulanges
Tradução de Frederico Ozanam
Pessoa de Barros
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A Cidade Antiga
Numa-Denys Fustel de Coulanges (1830-1889)
Título original
La Cité Antique - Étude sur Le Culte, Le Droit, Les Institutions de la Grèce et
de Rome
Tradução
© 2006 Frederico Ozanam Pessoa de Barros
Versão para eBook
eBooksBrasil
Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Editora das Américas S.A. - EDAMERIS, São Paulo, 1961
© 2006 Numa-Denys Fustel de Coulanges
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
ÍNDICE
Prefácio
LIVRO PRIMEIRO: Antigas Crenças
Capítulo I: Crenças a respeito da alma e da morte
Capítulo II: O culto dos mortos
Capítulo III: O fogo sagrado
Capítulo IV: A religião doméstica
LIVRO SEGUNDO: A Família
Capítulo I: A religião foi o princípio constitutivo da família antiga
Capítulo II: O casamento
Capítulo III: Continuidade da família. Proibição do celibato. Divórcio em caso
de esterilidade. Desigualdade entre filho e filha
Capítulo IV: Adoção e emancipação
Capítulo V: O parentesco, o que os romanos entendiam por agnação
Capítulo VI: O direito de propriedade
Capítulo VII: Direito de sucessão:
1.° Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos
2.° O filho herda, e não a filha
3.° Da sucessão colateral
4.° Efeitos da emancipação e da adoção
5.° O testamento, a princípio, não era conhecido
6.° Antiga indivisão do patrimônio
Capítulo VIII: A autoridade na família:
1.° Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos
2.° Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno
Capítulo IX: A antiga moral da família
Capítulo X: A Gens em Roma e na Grécia:
1.° O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens
2.° Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana
3.° A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua
unidade
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4.° Extensão da família: a escravidão e a clientela
LIVRO TERCEIRO: A Cidade
Capítulo I: A fratria e a cúria. A tribo
Capítulo II: Novas crenças religiosas:
1.° Os deuses da natureza física
2.° Relação dessa religião com o desenvolvimento da sociedade humana
Capítulo III: Forma-se a cidade
Capítulo IV: A cidade
Capítulo V: O culto do fundador. A lenda de Enéias
Capítulo VI: Os deuses da cidade
Capítulo VII: A religião da cidade:
1.° Os banquetes públicos
2.° As festas e o calendário
3.° O censo e a lustração
4.° A religião na assembléia, no senado, no tribunal e no exército, o triunfo
Capítulo VIII: Os rituais e os anais
Capítulo IX: Governo da cidade. O rei:
1.° Autoridade religiosa do rei
2.° Autoridade política do rei
Capítulo X: O magistrado
Capítulo XI: A lei
Capítulo XII: O cidadão e o estrangeiro
Capítulo XIII: O patriotismo. O exílio
Capítulo XIV: O espírito municipal
Capítulo XV: Relações entre as cidades. A guerra. A paz. A aliança dos deuses
Capítulo XVI: As confederações. As colônias
Capítulo XVII: O romano. O ateniense
Capítulo XVIII: Da onipotência do estado. Os antigos não conheceram a
liberdade individual
LIVRO QUARTO: As Revoluções
Capitulo I Patrícios e clientes
Capítulo II Os plebeus
Capítulo III Primeira revolução:
1.° A autoridade política é tirada aos reis
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2.° História dessa revolução em Esparta
3.° A mesma revolução em Atenas
4.° A mesma revolução em Roma
Capítulo IV A aristocracia governa as cidades
Capítulo V Segunda revolução. Transformações na constituição das
famílias. Desaparece o direito de primogenitura. A gens se desmembra
Capítulo VI Os clientes se libertam:
1.° O que era, a princípio, a clientela, e como se transformou
2.° A clientela desaparece de Atenas. A obra de Sólon
3.° Transformação da clientela em Roma
Capítulo VII Terceira revolução. A plebe passa a fazer parte da cidade:
1.° História geral dessa revolução
2.° História dessa revolução em Atenas
3.° História dessa revolução em Roma
Capitulo VIII Modificações no direito privado. O código das Doze Tábuas.
O código de Sólon
Capítulo IX Novo princípio de governo. O interesse público e o sufrágio
Capítulo X Tenta-se constituir uma aristocracia da riqueza.
Estabelecimento da democracia. A quarta revolução
Capítulo XI Regras do governo democrático. Exemplo da democracia
ateniense
Capítulo XII Ricos e pobres. Desaparece a democracia. Os tiranos
populares
Capítulo XIII Revoluções de Esparta
LIVRO QUINTO: Desaparece o regime municipal
Capítulo I Novas crenças. A filosofia muda as normas da política
Capítulo II A conquista romana:
1.° Algumas palavras sobre as origens e a população de Roma
2.° Primeiros progressos de Roma (753-350 antes de Cristo)
3.° De que modo Roma conquistou o império (350-140 antes de Cristo)
4.° Roma destrói por toda parte o regime municipal
5.° Os povos vencidos entram sucessivamente a fazer parte da cidade
romana
Capitulo III O Cristianismo muda as condições de governo
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PREFÁCIO
DA NECESSIDADE DE ESTUDAR AS MAIS VELHAS CRENÇAS DOS
ANTIGOS PARA CONHECER SUAS INSTITUIÇÕES
É nosso propósito demonstrar aqui os princípios e regras que governaram as
sociedades grega e romana. Reunimos em um mesmo estudo romanos e
gregos porque esses dois povos, ramos de um mesmo tronco, falando idiomas
originários de uma mesma língua, possuíam também um fundo de instituições
comuns, e atravessaram uma série de revoluções semelhantes.
Cuidaremos, sobretudo, de pôr em evidência as diferenças radicais e
essenciais que distinguem de modo definitivo esses povos antigos das
sociedades modernas. Nosso sistema educacional, que nos obriga a viver
desde a infância entre gregos e romanos, habitua-nos a compará-los
continuamente conosco, a julgar sua história pela nossa e a explicar nossas
revoluções pelas suas. O que ainda conservamos deles, e o que eles nos
legaram, faz-nos acreditar que se assemelhavam a nós; temos dificuldade em
considerá-los como povos estranhos; quase sempre não vemos neles senão a
nós mesmos, o que deu origem a muitos erros. Quando estudamos esses
povos, antigos através das opiniões e fatos de nossa época, quase sempre nos
enganamos.
Ora, os erros nessa matéria são perigosos. A idéia que se tem da Grécia e de
Roma muitas vezes perturbou várias de nossas gerações. Observando mal as
instituições da cidade antiga, quiseram fazê-las reviver entre nós. Fez-se idéia
errada da liberdade entre os antigos, e somente por isso a liberdade entre os
modernos foi posta em perigo. Nossos últimos oitenta anos demonstraram
claramente que uma das grandes dificuldades que se opõem à marcha da
sociedade moderna é o hábito de ter sempre diante dos olhos a antiguidade
greco-romana.
Para conhecer a verdade a respeito desses povos antigos, deve-se estudá-los
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sem pensar em nós, como se nos fossem completamente desconhecidos, com
o mesmo desinteresse e liberdade de espírito com que estudaríamos a Índia
antiga ou a Arábia.
Encaradas desse modo, a Grécia e Roma apresentam-se-nos com um caráter
absolutamente inimitável. Nada do que é moderno lhes é semelhante. E no
futuro nada poderá ser-lhes semelhante. Tentaremos, pois, demonstrar as
regras que governaram essas sociedades, e constataremos facilmente que essas
regras não podem mais dirigir a humanidade.
Qual a razão disto? Por que as condições de governo dos homens não são
mais as mesmas de outrora? As grandes transformações, que de tempos em
tempos aparecem na constituição das sociedades, não podem ser efeito do
acaso, ou apenas da força. A causa que as provoca deve ser poderosa, e essa
causa deve estar no próprio homem. Se as leis da associação humana não são
mais as mesmas de antigamente, é porque apareceu no homem alguma
mudança. Com efeito, parte de nosso ser modifica-se de século em século:
nossa inteligência. Ela está sempre em movimento, quase sempre em
progresso, e por sua causa nossas instituições e leis estão sujeitas a
transformações. O homem de hoje não pensa mais o que pensava há vinte e
cinco séculos, e é por isso que não se governa mais como outrora.
A história da Grécia e de Roma é testemunha e exemplo da estreita relação
que há entre as idéias da inteligência humana e o estado social de um povo.
Observai as instituições dos antigos, sem atentar para suas crenças; achá-laseis
obscuras, bizarras, inexplicáveis. Por que havia patrícios e plebeus, patrões
e clientes, eupátridas e tetas, e de onde vêm as diferenças nativas e indeléveis
que encontramos entre essas classes? Que significam essas instituições
lacedemonianas, que nos parecem tão contrárias à natureza? Como explicar
essas bizarrias únicas do antigo direito privado: em Corinto e em Tebas,
proibição de vender propriedades; em Roma e em Atenas, desigualdade na
sucessão entre irmão e irmã? Que é que os jurisconsultos entendiam por
agnação ou gens? Por que essas revoluções no direito e na política? Que
patriotismo singular era aquele que apagava todos os sentimentos naturais?
Que se entendia por liberdade, da qual não cessavam de falar? Como é
possível que instituições, que se acham tão afastadas de tudo o que podemos
imaginar, possam hoje restabelecer-se e reinar por tanto tempo? Qual é o
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princípio superior que lhes deu autoridade sobre o espírito dos homens?
Mas, à frente dessas instituições e dessas leis, colocai as crenças, e os fatos
tornar-se-ão claros e sua explicação tornar-se-á evidente. Se, considerando as
primeiras idades dessa raça, isto é, a época em que fundou suas instituições,
observamos a idéia que fazia então da criatura humana, da vida, da morte, da
segunda existência, do princípio divino, percebe-se íntima relação entre essas
opiniões e as regras antigas do direito privado, entre os ritos que se originaram
dessas crenças e as instituições políticas.
A comparação das crenças e das leis mostra que a família grega e romana foi
constituída por uma religião primitiva, que igualmente estabeleceu o
casamento e a autoridade paterna, fixando as linhas de parentesco,
consagrando o direito de propriedade e de sucessão. Essa mesma religião,
depois de estabelecer e formar a família, instituiu uma associação maior, a
cidade, e predominou sobre ela como o fazia na família. Dela se originaram
todas as instituições, como todo o direito privado dos antigos. Da religião a
cidade tirou seus princípios, regras, costumes e magistraturas. Mas com o
tempo essas velhas crenças foram modificadas, ou desapareceram por
completo, e o direito privado e as instituições sofreram idêntica evolução.
Surgiu então uma série de revoluções, e as transformações sociais
acompanharam regularmente as transformações da inteligência.
É necessário, portanto, estudar antes de mais nada a crença desses povos. As
mais antigas são as que devemos conhecer melhor, porque as instituições e
crenças que encontramos na época áurea da Grécia e de Roma nada mais são
que a evolução de crenças e instituições anteriores; é necessário que
busquemos as raízes em um passado bem longínquo. As populações gregas e
italianas são infinitamente mais velhas que Rômulo e Homero. Foi em época
mais antiga, em uma antiguidade que escapa às datas, que se formaram as
crenças e se estabeleceram e prepararam as instituições.
Mas que esperanças há de se chegar ao conhecimento desse passado
longínquo? Quem nos revelará o que pensavam os homens dez ou quinze
séculos antes de nossa era? É possível encontrar-se coisa tão fugidia e esquiva
como crenças e opiniões? Nós sabemos o que pensavam os árias do Oriente,
há trinta e cinco séculos, e o sabemos pelos hinos dos Vedas, que são
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seguramente muito antigos, e pelas leis de Manu, mais recentes, mas onde
podemos encontrar trechos que datam de épocas muito remotas. Mas onde
estão os hinos dos antigos helenos? Eles, como os itálicos, possuíam cantos
antigos e velhos livros sagrados; mas de tudo isso nada chegou até nós. Que
lembrança ficou para nós dessas gerações que não nos deixaram nenhum texto
escrito?
Felizmente, o passado nunca morre por completo para o homem. O homem
pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu
estado em determinada época é produto e resumo de todas as épocas
anteriores. Se ele descer à sua alma, poderá encontrar e distinguir nela as
diferentes épocas pelo que cada uma deixou gravada em si mesmo.
Observemos os gregos dos tempos de Péricles e os romanos dos tempos de
Cícero: levam consigo marcas autênticas, e o vestígio indubitável de séculos
mais remotos. O contemporâneo de Cícero falo sobretudo do homem do
povo tem a imaginação cheia de lendas; essas lendas lhe vêm de tempos
antigos, e são testemunhas de seu modo de pensar. O contemporâneo de
Cícero serve-se de uma língua cujas raízes são extremamente antigas; essa
língua, exprimindo o pensamento de épocas passadas, foi modelada de acordo
com esse modo de pensar, guardando o cunho que o mesmo transmitiu de
século para século. O sentido íntimo de uma raiz pode às vezes revelar uma
antiga opinião ou um antigo costume; as idéias transformaram-se, e os
costumes desapareceram, mas ficaram as palavras, imutáveis testemunhas de
crenças desaparecidas. O contemporâneo de Cícero obedece a determinados
ritos nos sacrifícios, nos funerais, nas cerimônias nupciais; esses ritos são
mais antigos que ele, e a prova é que não correspondem mais às suas crenças.
Mas, olhando de perto os ritos que observa e as fórmulas que recita, encontrarse-
ão vestígios do que os homens acreditavam quinze ou vinte séculos atrás.
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LIVRO PRIMEIRO
ANTIGAS CRENÇAS
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CAPÍTULO I
CRENÇAS A RESPEITO DA ALMA E DA MORTE
Até os últimos tempos da história da Grécia e de Roma, vemos persistir entre
o vulgo um conjunto de pensamentos e costumes que, certamente, datavam de
época muito remota, pelos quais poderemos conhecer quais opiniões o homem
tinha a princípio a respeito da própria natureza, da alma e sobre o mistério da
morte.
Quanto mais nos aprofundamos na história da raça indo-européia, na qual se
ramificaram os povos gregos e itálicos, constatamos que essa raça sempre
pensou que depois desta vida breve tudo acaba para o homem. As mais
antigas gerações, muito antes que aparecessem os filósofos, acreditaram em
uma segunda existência depois da atual. Encararam a morte não como
dissolução do ser, mas como simples mudança de vida.
Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência?
Acreditavam que o espírito imortal, uma vez livre do corpo, ia animar a
outro? Não; a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das
populações greco-romanas; também não é a mais antiga opinião entre os árias
do Oriente, pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença. Acreditava-se
então que o espírito ia para o céu, para a região da luz? Nem isso; o
pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de
época relativamente recente no Ocidente; a morada celeste era considerada
apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade.
De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos, a alma não
passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos;
continuava junto dos homens, vivendo sobre a terra(1).
Acreditou-se até por muito tempo que durante essa segunda existência a alma
continuava unida ao corpo. Nascendo junto a ele, a alma não se separava, mas
fechava-se com ele na sepultura.
Por mais antigas que sejam essas crenças, delas nos ficaram testemunhos
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autênticos. Esses testemunhos são os ritos fúnebres, que sobreviveram a essas
crenças primitivas, mas que certamente haviam nascido ao mesmo tempo,
servindo para que as compreendamos melhor.
Os ritos fúnebres mostram claramente que quando colocavam um corpo na
sepultura acreditavam enterrar algo vivo. Virgílio, que sempre descreve com
tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a narração dos
funerais de Polidoro com estas palavras: Encerramos a alma do túmulo.
Idêntica expressão encontra-se em Ovídio e em Plínio, o Jovem; não que elas
correspondessem à idéia que esses escritores tinham da alma; mas, desde
tempos imemoriais, essa crença perpetuara-se na linguagem, atestando antigas
crenças populares(2).
Era costume, no fim da cerimônia fúnebre, chamar três vezes a alma do morto
pelo nome do falecido, desejando-lhe vida feliz sobre a terra. Diziam-lhe três
vezes: Passe bem. E acrescentavam: Que a terra lhe seja leve(3) tanta
era a certeza de que a criatura continuava a viver sobre a terra, conservando a
sensação de bem-estar ou de sofrimento. No epitáfio declarava-se que o morto
ali repousava, expressão que sobreviveu a essas crenças, e que de século em
século chegou até nós. Nós usamos ainda este costume, embora ninguém hoje
pense que um ser imortal possa repousar em um túmulo. Mas antigamente
acreditava-se tão firmemente que ali vivia um homem, que nunca deixavam
de enterrar junto com o corpo objetos que supunham ser-lhe necessários,
como vestidos, vasos e armas(4). Derramava-se vinho sobre o túmulo, para
matar-lhe a sede; levavam-lhe alimentos, para saciar-lhe a fome(5).
Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que essas criaturas, sepultadas
juntamente com os mortos, prestar-lhes-iam serviços dentro do túmulo, como
o haviam feito durante a vida(6). Depois da tomada de Tróia os gregos
retornam a seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles, que
está morto, também exige uma escrava, e lhe entregam Polixena(7).
Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das
gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo
até a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia.
Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá
trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do
túmulo da família; mas, unida aos restos corporais, não podia deixar sozinha a
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Cólquida(8).
Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a
alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda
vida, era preciso que o corpo, ao qual permanecia ligada, fosse coberto de
terra. A alma que não possuía sepultura não possuía morada, e ficava errante.
Em vão aspirava ao repouso, que deveria desejar depois das agitações e
trabalhos desta vida; e era obrigada a errar sempre, sob a forma de larva ou de
fantasma, sem se deter jamais, e sem receber nunca as ofertas e alimentos de
que necessitava. Como era infeliz, logo se tornava perversa. Atormentava os
vivos, provocava-lhes doenças, destruía colheitas, assustava-os com aparições
lúgubres, a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma.
Daí se originou a crença nas almas do outro mundo(9). Toda a antiguidade
estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável, e que pela
sepultura tornava-se feliz. Não era por ostentação de dor que se oficiavam as
pompas fúnebres, mas para repouso e felicidade da alma do morto(10).
Notemos bem que não bastava confiar o corpo à terra. Era necessário ainda
obedecer a ritos tradicionais, e pronunciar determinadas fórmulas. Em Plauto
encontra-se a história de uma alma penada(11), forçada a andar errante,
porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido ritual. Suetônio conta que
o corpo de Calígula, enterrado antes de se completar a cerimônia fúnebre, fez
com que sua alma se tornasse errante, aparecendo a diversas pessoas, até o dia
em que o desenterraram, sepultando-o novamente de acordo com as regras
(12). Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito que se atribuía aos
ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre. Já que sem eles as almas tornavam-se
errantes e apareciam aos vivos, era evidente que tais ritos fixavam-nas e
encerravam-nas dentro dos túmulos. E assim como havia algumas fórmulas
que possuíam essa virtude, os antigos possuíam outras que produziam efeitos
contrários, capazes de evocar as almas, fazendo-as sair momentaneamente de
seus sepulcros.
Vê-se claramente, pelos escritores antigos, como o homem era atormentado
pelo medo de que, depois de sua morte, não fossem observados os devidos
ritos. Essa era uma fonte de inquietudes pungentes(13). Temia-se menos a
morte que a privação da sepultura, pois desta última dependia o repouso e
felicidade eterna. Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver os
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atenienses matar os generais que, depois de uma vitória naval, haviam
negligenciado a sepultura dos mortos. Esses generais, discípulos dos filósofos,
talvez distinguissem a alma do corpo, e como não acreditavam que a sorte da
alma estivesse ligada à do corpo, julgaram de pouca importância que um
cadáver se decompusesse na água ou na terra. Por isso não desafiaram a
tempestade pela vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos. Mas a
plebe, que, mesmo em Atenas, mantinha-se fiel às antigas crenças, acusou
seus generais de impiedade, e condenou-os à morte. Por sua vitória haviam
salvado Atenas, mas por sua negligência haviam perdido milhares de almas.
Os parentes dos mortos, pensando nos longos suplícios a que estavam
condenadas aquelas almas, apresentaram-se ao tribunal vestidos de luto, e
pediram vingança(14).
Nas cidades antigas a lei punia os grandes criminosos com um castigo
considerado terrível, a privação da sepultura(15). Punia-se desse modo a
própria alma, condenando-a a suplício quase eterno.
É necessário observar que entre os antigos estabeleceu-se ainda uma outra
opinião a respeito da morada dos mortos. Imaginaram uma região, também
subterrânea, mas infinitamente mais espaçosa que o túmulo, onde todas as
almas, longe dos corpos, viviam reunidas, penando ou gozando, de acordo
com a conduta do homem durante a vida. Mas os ritos fúnebres, como os
descrevemos acima, estão manifestamente em desacordo com essas crenças,
prova certa de que na época em que foram estabelecidos, não se acreditava
ainda na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios. A primeira opinião
dessas gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura, que a
alma não se separava do corpo, e que permanecia unida à parte do solo onde
os ossos estavam enterrados. Por sua vez, o homem não tinha que prestar
nenhuma conta de sua vida anterior. Uma vez sepultado, não esperava nem
recompensas, nem suplícios. Opinião certamente primitiva, mas que é a
infância da noção sobre a vida futura.
A criatura que vivia debaixo da terra não estava tão livre de sua condição
humana para não ter necessidade de alimentos. Assim, em determinados dias
do ano, levava-se uma refeição a cada túmulo(16).
Ovídio e Virgílio deixaram-nos a descrição dessa cerimônia, cujo uso
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conservara-se intacto até seu tempo, embora as crenças já se houvessem
transformado. Segundo nos narram, afeitavam-se os túmulos com grandes
grinaldas de folhas e flores, ofereciam-se doces, frutas, sal, fazendo sobre a
terra libações de leite e vinho, ou mesmo regando-a com o sangue de alguma
vítima(17).
Enganar-se-ia muito quem pensasse que essa refeição fúnebre não era senão
uma espécie de comemoração. Os alimentos que a família levava eram
realmente para o morto, exclusivamente para ele. E isso concluímos pelo
seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo; um
buraco era cavado, a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o defunto;
se lhe imolavam uma vítima, todas as carnes eram queimadas, para que
nenhuma pessoa viva delas participasse; pronunciavam-se certas fórmulas
consagradas, para convidar o morto a comer e a beber; se a família inteira
assistia à refeição, ninguém tocava nos alimentos; e, por fim, ao se retirarem,
os familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns
doces em vasos; considerava-se grande impiedade o fato de alguém tocar
nessa pequena provisão, destinada às necessidades do morto.
Essas velhas crenças persistiram por muito tempo, e sua expressão ainda se
encontra entre os grandes escritores da Grécia: Derramo sobre a terra do
túmulo diz Ifigênia em Eurípides leite, mel e vinho, pois só assim
podemos contentar os mortos(18). Filho de Peleu diz Neoptólemo
recebe esta bebida tão grata aos mortos; vem, e bebe este sangue(19).
Electra faz libações e diz: A bebida penetrou na terra; meu pai a recebeu
(20). Eis a prece de Orestes a seu pai defunto: Ó meu pai, se eu viver,
receberás ricos banquetes; mas, se eu morrer, não terás parte nas mesas
fumegantes onde os mortos se alimentam(21). As sátiras de Luciano
atestam que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo: Os homens
imaginam que as almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes
oferecem, que se regalam com o cheiro das iguarias, e que bebem o vinho
derramado sobre seus túmulos(22). Entre os gregos, diante de cada
túmulo havia um local destinado à imolação da vítima e ao cozimento das
carnes(23). Os túmulos romanos tinham igualmente sua culina, espécie de
cozinha especial, unicamente para uso do morto(24). Plutarco conta que
depois da batalha de Platéia, como os guerreiros mortos haviam sido
enterrados no lugar do combate, os plateanos se comprometeram a oferecerhttp://
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lhes cada ano o banquete fúnebre. Em conseqüência, no aniversário da
batalha, dirigiam-se em grande procissão, conduzidos pelos primeiros
magistrados, à colina sob a qual repousavam os mortos. Ofereciam-lhes leite,
óleo, perfumes e imolavam-lhes uma vítima. Quando os alimentos estavam
colocados sobre os túmulos, os plateanos pronunciavam uma fórmula
mediante a qual chamavam os mortos, convidando-os a que tomassem suas
refeições. Esta cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que
presenciou o sexto centenário dessa comemoração(25). Luciano nos conta
qual a opinião que deu origem a todos esses costumes: Os mortos escreve
ele alimentam-se dos manjares que colocamos sobre seus túmulos, e
bebem o vinho que neles derramamos; desse modo, o morto que nada recebe,
é condenado à fome perpétua(26).
Eis aí crenças antigas, e que nos parecem realmente falsas e ridículas.
Contudo, elas exerceram seu império sobre o homem por muitas e muitas
gerações. Elas governaram as almas, e logo veremos que tais crenças é que
dirigiram as sociedades, e que a maior parte das instituições domésticas e
sociais dos antigos nelas tiveram sua origem.
CAPÍTULO II
O CULTO DOS MORTOS
Essas crenças logo deram lugar a regras de conduta. Desde que o morto tinha
necessidade de alimento e de bebida, pensou-se que era dever dos vivos
satisfazer às suas necessidades. O cuidado de levar alimentos aos mortos não
foi abandonado ao capricho, ou aos sentimentos mutáveis dos homens; era
obrigatório. Estabeleceu-se desse modo uma verdadeira religião da morte,
cujos dogmas logo se reduziram a nada, mas cujos ritos duraram até o triunfo
do Cristianismo.
Os mortos eram considerados criaturas sagradas(1). Os antigos davam-lhes os
epítetos mais respeitosos que podiam encontrar; chamavam-nos de bons, de
santos, de bem-aventurados(2). Tinham por eles toda a veneração que o
homem pode ter para com a divindade, que ama e teme. Segundo seu modo de
pensar, cada morto era um deus(3).
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Essa espécie de apoteose não era privilégio dos grandes homens; não se
faziam distinções entre os mortos. Cícero afirma: Nossos ancestrais quiseram
que os homens que deixaram de viver fossem contados entre os deuses(4).
Não era necessário ter sido um homem virtuoso; o mau tornava-se deus tanto
quanto o homem de bem; apenas continuava, nessa segunda existência, com
todas as más inclinações que tivera na primeira(5).
Os gregos de boa mente davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos.
Em Ésquilo um filho invoca deste modo o pai morto: Ó tu, que és um deus
sob a terra. Eurípides diz, falando de Alceste: Junto a seu túmulo o
viandante há de parar, e dizer: Esta é agora uma divindade feliz(6). Os
romanos davam aos mortos o nome de deuses manes: Prestai aos deuses
manes as honras que lhes são devidas diz Cícero pois são homens que
deixaram de viver; reverenciai-os como criaturas divinas(7).
Os túmulos eram os templos dessas divindades. Assim exibiam eles, em latim
e em grego, a inscrição sacramental: Dis Manibus, theõis ethoníois. Era lá
que o deus permanecia sepultado: Manesque sepulti diz Virgílio(8). Diante
do túmulo havia um altar para os sacrifícios, como diante do túmulo dos
deuses (9).
Encontramos o culto dos mortos entre os helenos, entre os latinos, entre os
sabinos(10) e entre os etruscos; encontramo-lo também entre os árias da Índia,
como mencionam os hinos do Rig-Veda. Os livros das Leis de Manu falam
desse culto como do mais antigo entre os homens. Vê-se por esse livro que a
idéia da metempsicose desconheceu essa velha crença; mesmo antes disso já
existia a religião de Brama, e, contudo, tanto sob o culto de Brama como sob a
doutrina da metempsicose a religião das almas dos ancestrais subsiste ainda,
viva e indestrutível, e força o redator das Leis de Manu a levá-la em conta, e a
admitir ainda suas prescrições no livro sagrado. Não é esta a menor
singularidade desse livro estranho: conservar regras relativas a crenças antigas
quando foi redigido, evidentemente, em época na qual outras crenças opostas
prevaleciam. Isso prova que, se é necessário muito tempo para que as crenças
humanas se transformem, é necessário mais tempo ainda para que as práticas
exteriores e as leis se modifiquem. Hoje mesmo, depois de tantos séculos e
revoluções, os hindus continuam a oferecer dádivas aos antepassados. Essas
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idéias e ritos são o que há de mais antigo na raça indo-européia, assim como o
que há de mais persistente.
Esse culto era idêntico tanto na Índia quanto na Grécia e na Itália. O hindu
devia oferecer aos manes a refeição chamada sraddha: Que o chefe da casa
faça o sraddha com arroz, leite, raízes, frutos, a fim de atrair sobre si a
proteção dos manes. O hindu acreditava que no momento em que oferecia
esse banquete fúnebre, os manes dos antepassados vinham sentar-se a seu
lado, e recebiam os alimentos que lhes eram oferecidos. Acreditava também
que esse banquete proporcionava grande alegria aos mortos: Quando o
sraddha é oferecido de acordo com o ritual, os antepassados daquele que
oferece o banquete experimentam uma satisfação inalterável(11).
Assim os árias do Oriente, em sua origem, pensaram como os do Ocidente
com relação ao mistério do destino depois da morte. Antes de acreditar na
metempsicose, que supunha absoluta distinção entre a alma e o corpo,
acreditaram na existência vaga e indecisa da criatura humana, invisível, mas
não imaterial, e exigindo dos mortais comida e bebida.
O hindu, como o grego, olhava para os mortos como seres divinos, que
gozavam de existência bem-aventurada. Mas havia uma condição para sua
felicidade: era necessário que as ofertas fossem levadas regularmente. Se
deixavam de oferecer o sraddha por um morto, sua alma saía de sua morada
de paz, e tornava-se errante, atormentando os vivos; de sorte que os manes só
eram considerados deuses em razão das ofertas que lhes eram feitas pelo culto
(12).
Os gregos e romanos tinham exatamente as mesmas opiniões. Se deixassem
de oferecer aos mortos o banquete fúnebre, logo estes saíam de seus túmulos,
e, como sombras errantes, ouviam-nos gemer na noite silenciosa. Censuravam
os vivos por sua impiedosa negligência; procuravam então castigá-los,
mandavam-lhes doenças, ou castigavam-lhes as terras com a esterilidade.
Enfim, não davam descanso aos vivos até o dia em que voltassem a oferecerlhes
o banquete fúnebre(13). O sacrifício, a oferta de alimentos e a libação
levavam-nos de volta ao túmulo, e proporcionavam-lhes o repouso e atributos
divinos. O homem assim estava em paz com eles(14).
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Se o morto esquecido era criatura malfazeja, o honrado era um deus tutelar,
que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos. Para protegê-los, continuava
a tomar parte nos negócios humanos, desempenhando muitas vezes a sua
parte. Embora morto, sabia ser forte e ativo. Dirigiam-lhe orações, pedindolhe
favores e auxílio. Quando encontravam um túmulo, detinham-se e diziam:
Tu, que és um deus sobre a terra, sê-me propício(15).
Pode-se avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece
que Electra dirige aos manes de seu pai: Tem piedade de mim, e de meu
irmão Orestes; faze-o voltar; meu pai, ouve minha oração; atende meus
desejos ao receber minhas libações. Estes deuses poderosos não
proporcionam somente bens temporais, porque Electra acrescenta: Dá-me
um coração mais casto que o de minha mãe, e mãos mais puras(16).
Também o hindu pede aos manes que em sua família aumente o número dos
homens de bem, e que tenham muitas coisas para dar.
Essas almas humanas, divinizadas pela morte, eram as que os gregos
chamavam de demônios ou de heróis (17). Os latinos chamavam-nas de lares,
manes(18) ou gênios, Nossos antepassados acreditaram diz Apuléio
que os manes, quando maus, deviam ser chamados de larvas, e de lares
quando eram benfazejos e propícios(19). Lemos em outro lugar: Gênio
ou lar, trata-se do mesmo ser; assim o creram nossos antepassados(20). E
em Cícero: Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares
(21).
Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens.
Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve
medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento
religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a
idéia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos
olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de
outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do
passageiro para o eterno, do humano para o divino.
CAPÍTULO III
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O FOGO SAGRADO
A casa do grego ou do romano obrigava um altar; sobre esse altar devia haver
sempre um pouco de cinza e carvões acesos(1). Era obrigação sagrada, para o
chefe de cada casa, manter aceso o fogo dia e noite. Infeliz da casa onde se
apagasse! Cada noite cobriam-se de cinza os carvões, para impedir que se
consumissem por completo; pela manhã, o primeiro cuidado era reavivar o
fogo, e alimentá-lo com ramos. O fogo não cessava de brilhar diante do altar
senão quando se extinguia toda uma família; a extinção do fogo e da família
eram expressões sinônimas entre os antigos(2).
É evidente que esse costume de manter continuamente o fogo aceso diante do
altar prendia-se a alguma antiga crença. As regras e ritos então observados
mostram que não se tratava de um costume qualquer. Não era permitido
alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira; a religião distinguia,
entre as árvores, as que podiam ser usadas para esse fim, e aquelas cujo uso
era taxado de impiedade(3). A religião ordenava também que o fogo se
mantivesse sempre puro(4), o que significava, no sentido literal, que nenhum
objeto impuro podia ser lançado nele, e, no sentido figurado, que nenhuma
ação pecaminosa devia ser cometida em sua presença. Havia um dia do ano,
que entre os romanos era o 1.° de março, em que cada família devia extinguir
o fogo sagrado, e acender imediatamente outro(5). Mas para acender esse
fogo havia ritos que deviam ser observados escrupulosamente. Sobretudo,
devia-se evitar o uso de pedras e metais para consegui-lo. A única maneira
permitida consistia em concentrar sobre um ponto qualquer os raios do sol, ou
esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinada espécie para
conseguir uma fagulha(6). Essas diferentes regras provam satisfatoriamente
que, na opinião dos antigos, não se tratava apenas de produzir ou conservar
um elemento útil e agradável; aqueles homens viam algo mais, no fogo que
ardia em seus altares.
O fogo era algo divino, que era adorado e cultuado. Ofertavam-lhe tudo o que
julgavam agradável a um deus: flores, frutos, incenso, vinho(7). Pediam sua
proteção, julgando-o todo-poderoso. Dirigiam-lhe preces ardentes, para dele
obter os eternos objetos dos desejos humanos: saúde, riqueza, felicidade. Uma
dessas preces, que nos foi conservada em uma antologia dos hinos órficos, é
concebida nestes termos: Ó fogo, torna-nos sempre prósperos, sempre
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felizes; ó tu, que és eterno, belo, sempre jovem, tu que nutres, tu que és rico,
recebe de boa vontade nossas ofertas, e dá-nos em troca a felicidade e a saúde,
que é tão bela(8). Via-se assim no fogo um deus benfazejo, que mantinha
a vida do homem; um deus rico, que o alimentava com seus dons; um deus
forte, que protegia a casa e a família. Em presença de algum perigo,
procurava-se nele o refúgio. Quando o palácio de Príamo foi invadido,
Hécuba leva o velho rei para perto do fogo: Tuas armas não poderão
defender-te lhe diz ela mas este altar será a nossa proteção(9).
Contemplai Alceste, que vai morrer, dando a vida para salvar o esposo.
Aproxima-se do fogo, e o invoca com estas palavras: Ó divindade, protetora
desta casa, pela última vez inclino-me diante de ti e te dirijo minhas preces,
porque vou descer para a região dos mortos. Vela sobre meus filhos, que não
terão mais mãe; dá a meu filho uma esposa amante, e à minha filha um esposo
nobre. Faze que eles não morram como eu, antes da idade, mas que tenham
existência longa, e cheia de felicidade(10). Era o fogo que enriquecia a
família. Plauto, em uma de suas comédias, representa-o medindo seus favores
na proporção do culto que lhe prestam(11). Os gregos chamavam ctésios ao
deus da riqueza(12). O pai o invocava em favor dos filhos, e lhe pedia saúde
e abundância de bens(13). No infortúnio o homem queixava-se ao fogo, e
o repreendia. Na felicidade dava-lhe graças. O soldado que voltava da guerra
agradecia-lhe por haver escapado dos perigos. Ésquilo nos apresenta
Agamenon voltando de Tróia, feliz, coberto de glória; ele não agradece a
Júpiter, e não é ao templo que vai levar sua alegria e reconhecimento; o
sacrifício de ação de graças ele o oferece no altar de sua casa(14). O homem
não saía jamais de casa sem dirigir uma prece ao fogo sagrado; de volta, antes
de rever a mulher e abraçar os filhos, devia inclinar-se diante do altar, e
invocar os manes familiares(15).
Portanto, o deus do fogo era a providência da família. Seu culto era muito
simples. A primeira regra era manter continuamente sobre o altar alguns
carvões acesos, porque, se o fogo se extinguia, um deus deixava de existir.
Em certas horas do dia alimentavam-no com ervas secas e lenha; então o deus
se manifestava em chamas brilhantes(16). Ofereciam-lhe sacrifícios, mas a
essência de qualquer sacrifício era manter e aliviar o fogo sagrado, nutrir e
fazer crescer o corpo do deus. É por isso que, antes de mais nada, ofereciamhttp://
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lhe ramos; é por isso que derramavam sobre o altar o vinho quente da Grécia,
óleo, incenso e gordura de animais. O deus recebia essas ofertas, e as
devorava; satisfeito e radiante levantava-se sobre o altar, e iluminava com
seus raios a seu adorador(17). Era esse o momento próprio para invocá-lo; o
hino da oração saía do coração do homem.
O banquete era o ato religioso por excelência, presidido pelo deus, que havia
cozido o pão e preparado os alimentos(18); dirigiam-lhe também uma prece
no princípio e no fim da refeição. Antes de comer, depunham sobre o altar as
primícias dos alimentos; antes de beber, fazia-se a libação do vinho. Era a
parte do deus. Ninguém duvidava de sua presença, ou que ele comesse e
bebesse; e, de fato, não viam a chama crescer, como se fosse alimentada pelas
oferendas? O banquete, assim, era dividido entre o homem e deus; era uma
cerimônia santa, pela qual entravam em comunhão com a divindade(19).
Velhas crenças, que com o tempo desapareceram dos espíritos, mas que
deixaram por muito tempo ainda usos, ritos, expressões, que mesmo o
incrédulo não podia desprezar. Horácio, Ovídio, Juvenal ainda tomavam suas
refeições diante do altar, e faziam a libação e a prece(20).
O culto do fogo sagrado não pertencia apenas aos povos da Grécia e da Itália.
Encontramo-lo também no Oriente. As leis de Manu, na redação que chegou
até nós, mostram-nos a religião de Brama completamente estabelecida, e
entrando já em declínio; mas elas guardaram vestígios e restos de uma religião
mais antiga, a do fogo, que o culto de Brama havia relegado a segundo plano,
sem conseguir destruí-lo. O brâmane tem o seu lar, que deve manter aceso dia
e noite; cada dia e cada noite ele o alimenta com lenha; mas, como entre os
gregos, só o pode fazer com determinadas madeiras, indicadas pela religião.
Como os gregos e os itálicos oferecem-lhe vinho, o hindu derrama sobre ele
um licor fermentado, chamado soma. A refeição também é ato religioso, cujos
ritos são escrupulosamente descritos pelas leis de Manu. Como na Grécia,
dirigem-lhe preces, oferecem-lhe banquetes, arroz, manteiga e mel. Manu
declara: O brâmane não deve comer arroz da nova colheita, senão depois de
oferecer as primícias ao fogo. Porque o fogo sagrado é ávido de cereais, e
quando não é honrado devora a existência do brâmane negligente. Os
hindus, como os gregos e os romanos, imaginavam os deuses ávidos, não só
de honras e de respeito, como também de alimentos e bebidas. O homem
julgava-se obrigado a saciar-lhes a fome e a sede, se desejava evitar-lhes a
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cólera.
Entre os hindus essa divindade do fogo comumente chama-se Agni. O Rig-
Veda contém grande número de hinos que lhe são dirigidos. Em um deles se
diz: Ó Agni, tu és a vida, tu és o protetor do homem... Em recompensa de
nossos louvores, dá ao pai de família, que te implora, glória e riqueza... Agni,
és defensor prudente e pai; a ti devemos a vida, somos tua família. Assim
o fogo sagrado, como na Grécia, é um deus tutelar. O homem pede-lhe
abundância: Faze que a terra nos seja sempre liberal. Pedem-lhe saúde:
Que eu goze por muito tempo da luz, e chegue à velhice como o sol poente.
Pedem-lhe até sabedoria: Ó Agni, tu colocas no bom caminho o homem
que se iludia no mau... Se cometemos alguma falta, se andamos longe de ti,
perdoa-nos. Esse fogo sagrado, como na Grécia, era essencialmente puro;
era severamente proibido ao brâmane lançar nele algo impuro, ou mesmo
aquecer os pés no seu calor(21). Como na Grécia, o homem culpado não
podia aproximar-se do fogo, senão depois de purificar-se.
Uma grande prova da antiguidade dessas crenças e costumes é o fato de
encontrá-las simultaneamente entre os homens das margens do Mediterrâneo
e entre os povos da península indiana. É certo que os gregos não tiraram essas
práticas da religião hindu, nem os hindus da dos gregos. Mas gregos, itálicos e
hindus pertenciam a uma só raça; seus antepassados, em época remotíssima,
viveram juntos na Ásia central, de onde se originaram essas crenças e ritos. A
religião do fogo sagrado, portanto, data da época longínqua e obscura em que
não havia ainda nem gregos, nem itálicos, nem hindus, mas apenas os árias.
Quando as diversas tribos se separaram, levaram com elas esse culto, umas
para as margens do Ganges, outras para as praias do Mediterrâneo. Mais
tarde, entre essas tribos separadas, e que não tinham mais relações entre si.
umas adoraram Brama, outras Zeus, outras Jano; cada grupo escolheu seus
deuses. Todos, porém, conservaram como antigo legado a religião primitiva,
que haviam concebido e praticado no berço comum de suas raças.
Se a existência desse culto entre todos os povos indo-europeus não
demonstrasse suficientemente sua remota antiguidade, encontraríamos outras
provas nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos. Em todos os sacrifícios,
mesmo nos que se realizavam em honra de Zeus ou de Atenas, a primeira
invocação era sempre dirigida ao fogo(22). Toda a prece dirigida a um deus,
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fosse qual fosse, devia começar e terminar por uma prece aos manes(23). Em
Olímpia, o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia era
para o fogo, e o segundo para Zeus(24). Do mesmo modo em Roma, a
primeira adoração era sempre para Vesta, que não era nada mais que a
divindade do fogo(25). Ovídio, falando dessa divindade, diz que ela ocupa o
primeiro lugar entre as práticas religiosas dos homens. É assim que lemos nos
livros do Rig-Veda: Antes de todos os outros deuses, é necessário invocar a
Agni. Pronunciaremos seu nome venerável antes de todos os outros imortais.
Ó Agni, seja qual for o deus que honramos com nosso sacrifício, nosso
holocausto é sempre dirigido a ti. É, portanto, certo que, em Roma, nos
tempos de Ovídio, e na Índia, nos tempos dos brâmanes, o fogo sagrado tinha
ainda a primazia entre os deuses, não porque Júpiter e Brama não houvessem
conquistado maior importância na religião dos homens, mas porque
lembravam-se de que o fogo sagrado era muito anterior a todos esses deuses.
Depois de muitos séculos, tomara o primeiro lugar no culto, e os deuses mais
novos e mais importantes não o puderam destronar.
Os símbolos desta religião modificaram-se de acordo com os tempos. Quando
as populações da Grécia e da Itália tomaram o hábito de representar os deuses
como pessoas, dando a cada um nomes próprios e forma humana, o antigo
culto do fogo submeteu-se à lei comum que a inteligência humana, nesse
período, impunha a toda a religião. O altar do fogo sagrado tomou forma;
chamaram-no de estía, Vesta; o nome era idêntico em latim e em grego, e não
era senão a palavra que na língua comum designava o altar. Por um processo
muito freqüente, do nome comum fez-se o nome próprio. Aos poucos surgiu
uma lenda. Representaram essa divindade sob a aparência de mulher, porque a
palavra que designava o altar era do gênero feminino. Chegou-se mesmo a
representar essa deusa por meio de estátuas. Mas jamais conseguiram destruir
as origens da crença primitiva, segundo a qual essa divindade era
simplesmente o fogo do altar; e o próprio Ovídio viu-se forçado a admitir que
Vesta não era nada mais que uma chama viva(26).
Se compararmos esse culto do fogo sagrado com o culto dos mortos, do qual
falamos há pouco, descobriremos estreita ligação entre ambos.
Notemos, antes de mais nada, que o fogo sagrado não é, no pensamento dos
homens, o mesmo fogo da natureza material. O que se vê nele não é o
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elemento puramente físico, que aquece e queima, que transforma os corpos,
funde os metais e se torna poderoso instrumento da indústria humana. O fogo
sagrado é de natureza completamente diversa. É um fogo puro, que não pode
ser produzido senão com o auxílio de determinados ritos, e que não se
mantém senão com determinadas qualidades de madeira. É um fogo casto; a
união dos sexos deve sei afastada para longe de sua presença(27). Não se pede
a ele apenas riqueza e saúde, mas também pureza de coração, temperança e
sabedoria. Torna-nos ricos e prósperos diz um hino órfico torna-nos
também sábios e castos. O fogo sagrado é, portanto, uma espécie de ser
moral. É verdade que brilha, aquece e coze os alimentos sagrados, mas ao
mesmo tempo ele tem um pensamento, uma consciência; tem consciência dos
deveres, e vela para que sejam cumpridos. Dir-se-ia um homem, pois possui a
dupla natureza humana: fisicamente, brilha, move-se, vive, produz a
abundância, prepara as refeições, alimenta o corpo; moralmente, tem
sentimentos e afetos, dá ao homem pureza, ordena o bem e o mal, alimenta a
alma. Pode-se dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla série de suas
manifestações. É ao mesmo tempo fonte das riquezas, da saúde e da virtude.
É, na verdade, o deus da natureza humana. Mais tarde, quando esse culto foi
relegado a segundo plano, por Brama ou por Zeus, o fogo sagrado manteve-se
como o atributo divino mais acessível ao homem; era o intermediário da
natureza física junto aos deuses; era encarregado de levar até os deuses a
prece e oferenda do homem, e de trazer ao homem os favores divinos. Mais
tarde ainda, quando desse mito do fogo sagrado se fez a grande Vesta, Vesta
foi a deusa virgem; não representava no mundo nem a fecundidade, nem o
poder; era a ordem, mas não a ordem rigorosa, abstrata, matemática, a lei
imperiosa e fatal, que logo se descobre entre os fenômenos da natureza física.
Vesta era a ordem moral. Imaginaram-na como uma espécie de alma
universal, que regulava os diversos movimentos dos mundos, como a alma
humana rege nossos órgãos.
É assim que o pensamento das gerações primitivas se deixa entrever. O
princípio desse culto foge do círculo da natureza física, e se encontra nesse
pequeno mundo misterioso que é o homem.
Isso nos leva de volta ao culto dos mortos. Ambos têm a mesma antiguidade.
Estavam tão intimamente unidos, que a crença dos antigos fez disso uma
religião. Fogo, demônios, heróis, deuses lares, tudo era uma só coisa(28). Por
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
dois trechos de Plauto e de Columela vê-se que na linguagem comum dizia-se
indiferentemente fogo ou lar doméstico; e vemos ainda em Cícero que não se
distinguia o fogo dos penates, nem os penates dos deuses lares(29). Lemos em
Sérvio: Por fogos os antigos entendiam os deuses lares; assim Virgílio fala
indiferentemente em fogo e em penates, ou vice-versa(30). Em uma
passagem famosa da Eneida, Heitor diz a Enéias que vai mandar-lhe os
penates de Tróia, e lhe manda o fogo sagrado. Em outra passagem, Enéias,
invocando esses mesmos deuses, chama-os indiferentemente de penates, lares
e Vesta(31).
Vimos, aliás, que esses que os antigos chamavam de lares, ou heróis, não
eram outros senão as almas dos mortos, às quais os homens atribuíam poder
sobre-humano e divino. A lembrança de um desses mortos sagrados estava
sempre ligada ao fogo. Adorando a um, não se podia esquecer a outro.
Estavam unidos no respeito dos homens e em suas preces. Os descendentes,
quando falavam do fogo sagrado, lembravam constantemente o nome do
antepassado: Deixa este lugar diz Orestes a Helena e dirige-te ao
antigo fogo de Pélops, para ouvir minhas palavras(32). Do mesmo modo
Enéias, falando do fogo que transporta através dos mares, designa-o pelo
nome de lar de Assaracus, como se visse nesse fogo a alma de seu
antepassado.
O gramático Sérvio, muito instruído a respeito das antiguidades grecoromanas
em seu tempo estudavam-nas muito mais que nos tempos de
Cícero diz que era costume muito antigo enterrar os mortos nas casas, e
acrescenta: De acordo com este uso é que se honram nas casas os lares e os
penates(33). Esta frase estabeleceu, nitidamente, antiga relação entre o
culto dos mortos e o culto do fogo. Pode-se, pois, pensar que o fogo
doméstico, na origem, nada mais foi que o símbolo do culto dos mortos; que
sob a pedra da lareira repousava um antepassado; que o fogo ali se acendia
para honrá-lo; e que esse fogo parecia mantê-lo vivo, ou representava sua
alma imortal.
Trata-se apenas de simples conjectura, pois faltam-nos provas. Mas o certo é
que as gerações mais antigas, de cuja raça se originaram gregos e romanos,
renderam culto aos mortos e ao fogo sagrado, religião antiga, que não tirava
seus deuses da natureza física, mas do próprio homem, tendo por objeto a
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adoração do ser invisível que há em nós, a força moral e pensadora que anima
e governa nosso corpo.
Essa religião não foi sempre igualmente poderosa, nem sempre teve igual
influência sobre a alma; aos poucos se foi enfraquecendo, mas não
desapareceu por completo. Contemporânea das primeiras idades da raça
ariana, enraizou-se tão profundamente nas entranhas dessa raça, que a
brilhante religião do Olimpo grego não foi bastante para arrancá-la, sendo
para isso necessário o advento do Cristianismo.
CAPÍTULO IV
A RELIGIÃO DOMÉSTICA
Não é necessário representar esta antiga religião como as que foram fundadas
mais tarde, com a humanidade mais evoluída. Há muitos séculos que o gênero
humano não admite mais uma doutrina religiosa senão com duas condições:
uma, que tenha um único deus; outra, que se dirija a todos os homens, e seja
acessível a todos, sem afastar sistematicamente nenhuma classe ou raça. Mas
a religião dos primeiros tempos não preenchia nenhuma dessas condições.
Não somente não oferecia à adoração dos homens um único deus, mas ainda
seus deuses não aceitavam a adoração de todos os homens. Não se
apresentavam como sendo os deuses do gênero humano. Não se
assemelhavam nem mesmo a Brama, que era, pelo menos, o deus de uma
grande casta, nem a Zeus Pan-heleno, que era deus de toda uma nação. Nessa
religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família. A religião
era puramente doméstica.
É necessário esclarecer este ponto importante, porque sem isso não se poderia
compreender a relação tão íntima estabelecida entre essas velhas crenças e a
constituição da família grega e romana.
O culto dos mortos de nenhum modo se assemelha ao que os cristãos dedicam
aos santos. Uma das primeiras regras desse culto era que não podia ser
observado senão pelos familiares de cada modo. Os funerais não podiam ser
religiosamente observados senão pelo parente mais próximo. Quanto ao
banquete fúnebre, que depois se celebrava em épocas determinadas, apenas a
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família tinha o direito de assisti-lo, e os estranhos eram severamente excluídos
(1). Acreditava-se que o morto não aceitava a oferta senão da mão dos
parentes, não queria o culto senão de seus descendentes. A presença de um
homem que não pertencesse à família perturbava o repouso dos manes. A lei,
portanto, proibia aos estranhos aproximar-se de um túmulo(2). Tocar com o
pé, mesmo por descuido, uma sepultura, era ato de impiedade, pelo qual se
devia aplacar o morto e purificar-se. A palavra pela qual os antigos
designavam o culto dos mortos é significativa: os gregos diziam pratiázein(3),
os latinos parentare, porque as preces e oferendas não eram endereçadas
senão aos antepassados de cada um(4). O culto dos mortos era,
verdadeiramente, o culto dos antepassados(5). Luciano, sempre zombando da
opinião do vulgo, no-lo explica claramente quando diz: O morto que não
deixou filhos não recebe sacrifícios, e fica condenado à fome eterna(6).
Na Índia, como na Grécia, a oferta não podia ser feita ao morto senão pelos
seus descendentes. A lei dos hindus, como a ateniense, proibia receber
estranhos, embora amigos, no banquete fúnebre. Era de tal modo necessário
que o banquete fosse oferecido pelos descendentes do morto, e não por outras
pessoas, que se supunha até que os manes, em sua morada, faziam
freqüentemente este voto: Que nasçam sucessivamente de nossa estirpe
filhos que nos ofereçam, na continuidade dos tempos, arroz cozido em leite,
mel e manteiga purificada(7)!
Por essa razão na Grécia e em Roma, como na Índia, o filho tinha o dever de
fazer libações e sacrifícios aos manes do pai e de todos os ancestrais(8). Faltar
a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer, pois a
interrupção desse culto provocava uma série de mortes, e destruía a felicidade.
Tal negligência era considerada verdadeiro parricídio, multiplicado tantas
vezes quantos antepassados possuía o filho negligente.
Se, pelo contrário, os sacrifícios eram sempre observados de acordo com os
ritos, se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias marcados, então o
antepassado tornava-se deus protetor. Hostil a todos os que não descendiam
dele, expulsava-os de seu túmulo, castigando com doenças os que dele se
aproximavam; para os seus, porém, era bom e compassivo.
Havia perpétua troca de favores entre os vivos e os mortos de cada família. O
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ancestral recebia dos descendentes a série de banquetes fúnebres, isto é, a
única alegria que podia experimentar em sua segunda vida. O descendente
recebia do antepassado a ajuda e a força de que necessitava neste mundo. O
vivo não podia abandonar o morto, nem o morto ao vivo. Por esse motivo
estabelecia-se poderosa união entre todas as gerações de uma mesma família,
constituindo assim um corpo inseparável.
Cada família tinha seu túmulo, onde seus mortos vinham descansar um após
outro, sempre juntos. Todos os que descendiam do mesmo sangue aí deviam
ser enterrados, e nenhum homem de outra família podia ser nele admitido(9).
Nele celebravam-se as cerimônias e aniversários. Cada família acreditava
possuir antepassados sagrados. Nos tempos mais remotos, o túmulo ficava
dentro da propriedade da família, no centro da casa, não longe da porta a fim
de que diz um antigo o filho, entrando ou saindo de sua morada,
encontrasse todas as vezes os pais, dirigindo-lhe vez por vez uma invocação
(10). Assim o antepassado mantinha-se no meio dos seus; invisível, mas
sempre presente, continuava a fazer parte da família, e a ser o pai. Imortal,
feliz, divino, interessava-se por aquilo que deixara de mortal sobre a terra;
conhecia-lhes as necessidades e amparava-os na fraqueza. E aquele que ainda
vivia, que trabalhava que, segundo expressão antiga, não se havia
desempenhado da existência, esse tinha junto a si guias e apoio, que eram os
pais. No meio das dificuldades, invocava sua antiga sabedoria; no sofrimento
pedia-lhes consolo; no perigo, apoio; depois de uma falta, perdão.
Na verdade, hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o
homem possa adorar ao pai ou a um antepassado. Fazer do homem um deus,
parece-nos contrário à religião. É-nos quase tão difícil compreender as antigas
crenças desses homens, como teria sido a eles imaginar as nossas. Mas
reflitamos que os antigos não tinham idéia da criação; para eles o mistério da
geração era o que para nós pode ser o mistério da criação. O que gerava
parecia-lhes uma criatura divina, e por isso adoravam os antepassados. Era
necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso, porque
aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as
sociedades humanas; encontramo-lo entre os chineses, como entre os antigos
getas e citas; entre os povos da África, como entre os do Novo Mundo(11).
O fogo sagrado, que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos, tinha
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também, como caráter essencial, pertencer apenas a uma família, representava
os antepassados(12); era a providência da família; não tinha nada em comum
com o fogo da família vizinha, que era outra providência. Cada lar protegia
apenas os seus.
Toda essa religião limitava-se ao círculo de uma casa. O culto não era
público. Pelo contrário, todas as cerimônias, eram celebradas apenas pelos
familiares(13). O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa, nem mesmo
perto da porta externa, onde um estranho poderia vê-lo. Os gregos colocavamno
sempre em um recinto fechado(14), para protegê-lo do contacto e olhar dos
profanos. Os romanos escondiam-no no meio da casa. Todos esses deuses,
fogo sagrado, lares, manes, eram chamados de deuses escondidos, ou deuses
do interior(15). Para todos os atos dessa religião exigia-se segredo
sacrifícia occulta diz Cícero(16); se uma cerimônia fosse assistida por um
estranho, era considerada perturbada, manchada por um único olhar.
Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes, nem ritual
comum. Cada família tinha a mais completa independência. Nenhum poder
exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença. Não havia outro
sacerdote além do pai; como sacerdote, ele não conhecia nenhuma hierarquia.
O pontífice de Roma, ou o arconte de Atenas, podia certificar-se de que o pai
de família cumprisse todos esses ritos religiosos, mas não tinha o direito de
obrigá-lo a nenhuma modificação. Suo quisque ritu sacrificium faciat(17)
era a regra absoluta. Cada família tinha suas cerimônias, que lhe eram
próprias, suas festas particulares, suas fórmulas de oração e seus hinos(18). O
pai, único intérprete e pontífice dessa religião, era o único que tinha o poder
de ensiná-la, e não o podia fazer senão a seu filho. Os ritos, as palavras da
oração, os cantos, que faziam parte essencial dessa religião doméstica, eram
patrimônio ou propriedade sagrada, que a família não participava a ninguém,
e que era até proibido revelar a estranhos. Assim era na Índia: Sou forte
contra meus inimigos diz o brâmane com os cantos que pertencem à
minha família, e que meu pai me ensinou(19).
Assim, a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus
deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma
casa. Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais
características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de
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alguém, ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes. Ela nasceu
espontaneamente no espírito humano; seu berço foi a família; cada família fez
seus próprios deuses.
Esta religião não podia propagar-se senão pela geração. O pai, ao dar vida ao
filho, dava-lhe ao mesmo tempo sua fé, seu culto, o direito de manter o fogo
sagrado, de oferecer o banquete fúnebre, de pronunciar fórmulas de orações.
A geração estabelecia misterioso vínculo entre a criança que nascia para a
vida e todos os deuses da família. Tais deuses eram sua própria família, theòi
enghenéis; seu próprio sangue theòi synaimoi(20). A criança, portanto, ao
nascer, recebia o direito de adorá-los, e de oferecer-lhes sacrifícios, assim
como, mais tarde, quando a morte, por sua vez, o divinizasse, ele devia ser
contado entre os deuses da família.
Mas é necessário notar esta particularidade: a religião doméstica não se
propagava senão de varão para varão. Isso, sem dúvida, prendia-se à idéia que
os homens faziam da geração(21). A crença das idades primitivas, tal como a
encontramos nos Vedas, e nos vestígios que ficaram em todo o direito romano
e grego, era que o poder reprodutor residia unicamente no pai. Somente o pai
possuía o princípio misterioso do ser, e transmitia a centelha da vida. Dessa
antiga opinião resultou que o culto doméstico passou sempre de homem para
homem; a mulher, dele não participava senão por intermédio do pai ou do
marido; depois que estes morriam, a mulher não tomava a mesma parte que o
homem no culto e cerimônias do banquete fúnebre. Disso resultaram ainda
outras conseqüências muito graves no direito privado e na constituição da
família; delas trataremos mais adiante.
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LIVRO SEGUNDO
A FAMÍLIA
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
CAPÍTULO I
A RELIGIÃO FOI O PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DA FAMÍLIA ANTIGA
Se nós nos transportarmos em pensamento para o seio dessas antigas gerações
de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor desse altar a
família reunida. Ela se reúne cada manhã, para dirigir ao fogo sagrado suas
preces; e cada noite, para invocá-lo uma vez mais. Durante o dia, a família
reúne-se ainda ao seu redor para as refeições, que dividem piedosamente
depois da prece e da libação. Em todos esses atos religiosos, canta em comum
os hinos que seus pais lhe ensinaram.
Fora da casa, bem perto, no campo vizinho, há um túmulo. É a segunda
morada da família. Lá repousam em comum várias gerações de antepassados;
a morte não os separou. Nessa segunda existência permanecem juntos, e
continuam a formar uma família indissolúvel. Entre a parte viva e a parte
morta da família não há senão essa distância que separa a casa do túmulo. Em
determinados dias, indicados segundo a religião doméstica de cada um, os
vivos se reúnem ao pé dos antepassados, oferecem-lhes o banquete fúnebre,
derramam sobre eles vinho e leite; oferecem-lhes presentes e frutos, ou
queimam em sua honra as carnes de uma vítima. Em troca dessas ofertas
pedem-lhes proteção, chamam-nos de deuses, e pedem para que tornem seus
campos férteis, a casa próspera e os corações virtuosos.
O princípio da família antiga não é apenas a geração. Isso pode ser provado
pelo fato de a irmã não ser na família o mesmo que o irmão; também o filho
emancipado ou a filha casada deixam de fazer parte da família por completo;
enfim, muitas disposições importantes nas leis gregas e romanas, que teremos
ocasião de examinar mais adiante, nos induzem a pensar assim.
O princípio da família não é mais o afeto natural, porque o direito grego e o
direito romano não dão importância alguma a esse sentimento. Ele pode
existir no fundo dos corações, mas nada representa em direito. O pai pode
amar a filha, mas não pode legar-lhe os bens. As leis da sucessão, isto é, as
que entre todas as outras atestam mais fielmente as idéias que os homens
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tinham da família, estão em contradição flagrante, quer com a ordem de
nascimento, quer com o afeto natural entre os membros de uma família(1).
Os historiadores do direito romano, tendo justamente notado que nem o afeto,
nem o parentesco eram o fundamento da família romana, julgaram que tal
fundamento devia residir no poder do pai ou do marido. Fazem desse poder
uma espécie de instituição primordial, mas não explicam como se formou, a
não ser pela superioridade de força do marido sobre a mulher, ou do pai sobre
os filhos. Ora, é grave erro colocar a força como origem do direito. Aliás,
mais adiante veremos que a autoridade paterna ou marital, longe de ter sido
causa primeira, foi também efeito: originou-se da religião, e foi por ela
estabelecida. Não é, portanto, o princípio que constituiu a família.
O que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o
nascimento, que o sentimento, que a força física: é a religião do fogo sagrado
e dos antepassados. Essa religião faz com que a família forme um só corpo
nesta e na outra vida. A família antiga é mais uma associação religiosa que
uma associação natural. Assim, veremos mais adiante que a mulher será
realmente levada em conta quando for iniciada no culto, com a cerimônia
sagrada do casamento; o filho não será mais considerado pela família se
renunciar ao culto, ou for emancipado; o filho adotivo, pelo contrário, será
considerado filho verdadeiro, porque, se não possui vínculos de sangue, tem
algo melhor, que é a comunhão do culto; o legatário que se negar a adotar o
culto dessa família não terá direito à sucessão; enfim, o parentesco e o direito
à herança serão regulamentados, não pelo nascimento, mas pelos direitos de
participação no culto, de acordo com o que a religião estabeleceu. Sem
dúvida, não foi a religião que criou a família, mas foi certamente a religião
que lhe deu regras, resultando daí que a família antiga recebeu uma
constituição muito diferente da que teria tido se houvesse sido constituída
baseando-se apenas nos sentimentos naturais.
A antiga língua grega tinha uma palavra muito significativa para designar a
família; dizia-se epístion, palavra que significa literalmente aquilo que está
perto do fogo. Uma família era um grupo de pessoas às quais a religião
permitia invocar os mesmos manes, e oferecer o banquete fúnebre aos
mesmos antepassados(2).
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CAPÍTULO II
O CASAMENTO
A primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu foi, na verdade, o
casamento.
É necessário notar que essa religião do lar e dos antepassados, que se
transmitia de varão para varão, não pertencia, contudo, exclusivamente ao
homem; a mulher tomava parte no culto. Como filha, assistia aos atos
religiosos do pai; como casada, aos do marido.
Somente por isso se pode avaliar o caráter essencial da união conjugal entre
os antigos. Duas famílias vivem uma ao lado da outra, mas possuem deuses
diversos. Em uma delas, a jovem participa, desde a infância, da religião do
pai, invoca seu lar, oferece-lhe todos os dias libações, enfeita-o com flores e
grinaldas nos dias festivos, pede-lhe proteção, agradece-lhe benefícios. Esse
fogo paterno é o seu deus. Se um jovem de outra família a pede em
casamento, para ela isso significa muito mais do que passar de uma casa para
outra. Trata-se de abandonar o lar paterno, para invocar daí por diante os
deuses do esposo. Trata-se de mudar de religião, de praticar outros ritos, de
pronunciar outras orações. Trata-se de deixar o deus de sua infância, para
colocar-se sob o império de um deus desconhecido. E ela não espera
permanecer fiel a um, honrando a outro, porque um dos princípios imutáveis
dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares, nem duas séries
de antepassados. A partir do casamento, diz um antigo, a mulher não tem
nada mais em comum com a religião doméstica dos pais: ela passa a sacrificar
aos manes do marido(1).
O casamento, portanto, é ato sério para a jovem, e não o é menos para o
esposo, porque a religião exige que se nasça junto ao fogo sagrado para ter-se
o direito de oferecer-lhe sacrifícios. E, no entanto, o rapaz vai introduzir em
seu lar uma estranha; em sua companhia, oficiará as cerimônias misteriosas do
culto, revelando-lhe ritos e fórmulas, que constituem patrimônio de família.
Não há nada mais precioso que essa herança; os deuses, ritos e hinos, que
recebeu dos pais, é quem o protege na vida, e lhe promete riqueza, felicidade,
virtude. No entanto, em vez de guardar para si esse poder tutelar, como o
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selvagem guarda um ídolo ou amuleto, vai admitir uma mulher para
participante dos mesmos.
Desse modo, quando penetramos o pensamento dos antigos, vemos a
importância que tem para eles a união conjugal, e quanto lhe é imprescindível
a intervenção da religião. Não seria, portanto, necessário, para que a jovem
fosse iniciada no culto que iria seguir, uma cerimônia sagrada de iniciação?
Para tornar-se sacerdotisa de um novo fogo, não haveria uma espécie de
ordenação ou de adoção?
O casamento era a cerimônia sagrada que deveria produzir esses grandes
efeitos. Os escritores latinos e gregos têm o hábito de designar o casamento
por palavras que indicam ato religioso(2). Pólux, que viveu no tempo dos
Antoninos, mas que podia manusear toda uma antiga literatura que não
possuímos mais, diz que nos tempos remotos, em lugar de designar o
casamento por seu nome particular (gámos), designavam-no simplesmente
pela palavra télos, que significa cerimônia sagrada(3), como se o casamento
fosse, nesses tempos antigos, a cerimônia sagrada por excelência.
Ora, a religião que celebrava o casamento não era a de Júpiter, de Juno, ou
dos outros deuses do Olimpo. A cerimônia não era realizada em templo; era
realizada em casa, presidida pelo deus doméstico. Na verdade, quando a
religião dos deuses do céu se tornou preponderante, não foi mais possível
deixar de invocá-los também nas preces do casamento; tomou-se então o
costume de ir antes aos templos, para oferecer sacrifícios a tais deuses,
sacrifícios esses que eram conhecidos como prelúdios do casamento(4). Mas a
parte principal e essencial da cerimônia sempre devia realizar-se diante do lar
doméstico.
Entre os gregos, a cerimônia do casamento compunha-se, por assim dizer, de
três atos. O primeiro realizava-se diante do lar paterno, enghyesis, o terceiro
no lar do marido, télos, e o segundo era a passagem de um para outro, pompé.
1.° Na casa paterna, em presença do pretendente, o pai, de ordinário rodeado
pela família, oferece um sacrifício. Terminado este, declara, enquanto
pronuncia uma fórmula sacramental, que dá a filha ao homem que a pediu.
Essa declaração é absolutamente indispensável para o casamento, porque a
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jovem não poderia ir adorar o lar do esposo, se seu pai não a houvesse antes
desligado do lar paterno. Para ingressar na nova religião, deve estar livre de
todos os laços ou vínculos da religião primitiva(5).
2.° A jovem é levada para a casa do marido. Às vezes, é o próprio marido que
a conduz(6). Em algumas cidades o encargo de levar a jovem cabia a um
daqueles homens que entre os gregos estavam revestidos de caráter sacerdotal,
e que chamavam de arautos(7). A jovem, comumente, é colocada sobre um
carro(8), o rosto coberto com um véu, e à cabeça leva uma coroa. O uso da
coroa, como veremos muitas vezes, era um costume observado em todas as
cerimônias do culto. Os vestidos são brancos. O branco era a cor dos vestidos
em todos os atos religiosos. Precedem-na carregando archotes: é o archote
nupcial(9). Em todo o percurso cantam a seu redor um hino religioso, cujo
estribilho é o seguinte: õ hymén, õ hyménaie. Esse hino era conhecido por
himeneu, e a importância desse canto sagrado era tão grande, que dava nome a
toda cerimônia(10).
A jovem não entra por si mesma em sua nova morada. É necessário que o
marido a carregue, que simule um rapto, que grite um pouco, e que as
mulheres que a acompanham finjam defendê-la. Por que esse rito? Seria um
símbolo do pudor feminino? Isso é pouco provável; ainda não chegou o
momento do pudor, porque o que se vai realizar por primeiro nessa casa é
uma cerimônia religiosa. Será que esse rapto simulado não quer antes
significar que a mulher que vai oferecer sacrifícios no novo lar não tem por si
mesma nenhum direito, que ela não o adota por sua própria vontade, e que é
necessário que o dono da nova casa e seu respectivo deus a introduza à força?
Seja o que for, depois de uma luta fictícia, o esposo ergue-a nos braços e a
introduz na casa, tendo grande cuidado para que seus pés não toquem na
soleira da porta(11).
O que precede não é senão preparação e prelúdio da cerimônia. O ato sagrado
vai ter início no interior da casa.
3.° À frente do fogo sagrado, a esposa é colocada em presença da divindade
doméstica. É aspergida com água lustral, e toca o fogo sagrado(12). Dizem-se
orações. Depois os esposos compartilham um bolo, um pão e algumas frutas
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(13).
Essa espécie de refeição ligeira, que começa e termina com uma libação e
uma prece, essa comunhão de alimentos diante do fogo sagrado, põe os dois
esposos em comunhão religiosa, como também em comunhão com os deuses
domésticos(14).
O casamento romano assemelhava-se muito ao casamento grego, e como ele,
constava de três atos: traditio, deductio in domum, confarreatio.
1.° A jovem deixa o lar paterno. Como não está ligada a esse lar por direito
próprio, mas apenas pela mediação do pai de família, somente a autoridade do
pai pode livrá-la desse laço. A tradição, é, portanto, formalidade indispensável
(15).
2.° A jovem é conduzida à casa do esposo. Como na Grécia, ela é velada, usa
coroa, e um archote nupcial precede o cortejo(16). Canta-se a seu redor um
hino religioso. As palavras desse hino, talvez com o tempo tenham mudado,
acomodando-se às variações das crenças e do modo de falar, mas o estribilho
sacramental continuou sempre sem alteração alguma: era a palavra Talássia,
vocábulo que os romanos do tempo de Horácio compreendiam tanto quanto os
gregos compreendiam a palavra hyménaie, que era, provavelmente, a relíquia
sagrada e inviolável de antiga fórmula(17).
O cortejo pára diante da casa do esposo, onde apresentam à jovem fogo e
água. O fogo é o emblema da divindade doméstica; a água é a água lustral,
que serve para a família em todos os atos religiosos(18). Para que a jovem
entre na casa é necessário, como na Grécia, simular um rapto(19). O esposo
deve erguê-la nos braços, e carregá-la, tomando cuidado para que não toque a
soleira da porta com os pés.
3.° A esposa é conduzida diante do fogo, onde estão os penates, onde todos os
deuses domésticos e as imagens dos antepassados agrupam-se ao redor do
fogo sagrado. Os dois esposos, como na Grécia, oferecem um sacrifício,
fazem libações, pronunciam algumas preces, e comem juntos um manjar de
flor de farinha (panis farreus)(20).
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A consumpção desse manjar em meio à récita de preces, na presença e sob os
olhos das divindades da família, é o que constitui a união santa do esposo e da
esposa(21). Desde esse instante ambos estão unidos no mesmo culto. A
mulher tem os mesmos deuses, os mesmos ritos, as mesmas orações, as
mesmas festas que o marido. Daí essa velha definição de casamento, que os
jurisconsultos nos conservaram: Nuptiae sunt divini juris et humani
communicatio. E esta outra: Uxor socia humanae rei atque divinae(22).
É que a mulher começou a participar da religião do marido, mulher a quem os
próprios deuses, como diz Platão, introduziram na nova casa.
A mulher assim casada continua a cultuar os mortos; mas não é mais a seus
antepassados que oferece o banquete fúnebre; não tem mais esse direito. O
casamento desligou-a por completo da família do pai, quebrando todos os
liames religiosos que a ligavam a ela. É aos antepassados do marido que
oferece sacrifícios; pertence agora à sua família, e eles se tornaram seus
antepassados. O casamento proporcionou-lhe um segundo nascimento. De ora
em diante ela é a filha do marido, filiae loco, dizem os jurisconsultos. Não se
pode pertencer nem a duas famílias, nem a duas religiões domésticas; a
mulher passa, única e exclusivamente, a fazer parte da família e religião do
marido. Veremos as conseqüências dessa regra no direito de sucessão.
A instituição do casamento sagrado também deve ser tão antiga na raça indoeuropéia
quanto a religião doméstica, porque uma não existe sem a outra. Essa
religião ensina ao homem que a união conjugal é algo mais que uma relação
de sexos e uma afeição passageira, unindo os cônjuges pelo laço poderoso do
mesmo culto e das mesmas crenças. Por sua vez, a cerimônia das núpcias era
tão solene, e produzia efeitos tão graves, que não nos devemos surpreender se
aqueles homens a julgavam permitida e possível com uma só mulher em cada
casa. Tal religião não podia admitir a poligamia.
Pensa-se também que essa união era indissolúvel, e que o divórcio era quase
impossível(23). O direito romano facilmente permitia dissolver o casamento
por coemptio ou por usus; mas a dissolução do casamento religioso era muito
difícil. Para que houvesse ruptura fazia-se necessária nova cerimônia
religiosa, porque somente a religião podia desunir o que havia unido. O efeito
da confarreatio não podia ser destruído senão pela diffarreatio. Os dois
esposos que desejavam o divórcio apresentavam-se pela última vez diante do
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fogo sagrado comum, na presença de um sacerdote e de testemunhas. Como
no dia do casamento, oferecia-se aos esposos um bolo de flor de farinha(24).
Mas, provavelmente, em lugar de comê-lo, eles o rejeitavam. Depois, em
lugar de preces, pronunciavam fórmulas de caráter estranho, severo,
vingativo, terrível(25), uma espécie de maldição, pela qual a mulher
renunciava ao culto e aos deuses do marido. Desde esse momento o laço
religioso estava rompido. Com o término da comunhão de culto, toda outra
comunhão cessava por direito, e o casamento ficava dissolvido.
CAPÍTULO III
CONTINUIDADE DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DO CELIBATO.
DIVÓRCIO EM CASO DE ESTERILIDADE. DESIGUALDADE ENTRE
FILHO E FILHA
As crenças relativas aos mortos, e o culto que lhes era devido constituíram a
família antiga, e lhe deram a maior parte de suas regras.
Vimos acima que o homem, depois da morte, era considerado pessoa feliz e
divina, com a condição, porém, de que os vivos lhe oferecessem
continuamente banquetes públicos. Se essas ofertas cessassem, o morto
decairia para uma esfera inferior, tornando-se demônio desgraçado e
malfazejo. Porque, quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida
futura, não pensaram em recompensas e castigos; acreditaram que a felicidade
do morto não dependia da conduta que havia tido em vida, mas da que seus
descendentes tinham a seu respeito. Por isso cada pai esperava da sua
posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes
repouso e felicidade.
Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os
antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia
perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua
descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra
preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre
um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo. Também os hindus
acreditavam que os mortos repetiam continuamente: Que nasçam sempre em
nossa estirpe filhos que nos tragam arroz, leite e mel. Dizia ainda: A
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma; os antepassados,
privados das ofertas, precipitam-se na morada dos infelizes(1).
Os homens da Itália e da Grécia pensaram assim por muito tempo. Se não nos
deixaram em seus escritos uma expressão de suas crenças tão nítida como a
que encontramos nos velhos livros do Oriente, pelo menos suas leis estão
ainda lá, para atestar suas antigas opiniões. Em Atenas, a lei encarregava o
primeiro magistrado da cidade de velar para que nenhuma família viesse a se
extinguir(2). Da mesma forma, a lei romana cuidava da continuidade do culto
doméstico(3). Lê-se em um discurso de orador ateniense: Não há homem
que, sabendo que deve morrer, cuide tão pouco de si mesmo, a ponto de
deixar a família sem descendentes, porque então não haveria ninguém para
prestar-lhe o culto devido aos mortos(4). Cada um, portanto, tinha grande
interesse em deixar um filho, convencido de que disso dependia a felicidade
de sua vida futura. Era até um dever para com os antepassados, porque sua
felicidade durava somente enquanto existisse a família. Também as leis de
Manu assim denominavam o filho mais velho: aquele que é gerado para o
cumprimento do dever.
Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A
religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação. Uma família
que se extingue é um culto que morre. É necessário imaginar essas famílias na
época em que as crenças ainda não haviam sido alteradas. Cada uma delas
possui religião e deuses próprios, precioso depósito sobre o qual deve velar. A
maior desgraça que sua piedade tem a temer é a extinção da estirpe, porque
então sua religião desapareceria da terra; seu lar seria extinto, toda a série dos
mortos esquecida e abandonada à eterna miséria. O grande interesse da vida
humana é continuar a descendência para continuar o culto.
Em virtudes dessas opiniões, o celibato devia ser ao mesmo tempo impiedade
grave e desgraça: impiedade, porque o celibatário punha em perigo a
felicidade dos manes de sua família; desgraça, porque ele próprio não devia
receber nenhum culto após a morte, desconheceria assim o que alegra os
manes. Era, ao mesmo tempo, para ele e seus antepassados, uma espécie de
condenação.
Pode-se pensar muito bem que, na falta de leis, essas crenças religiosas por
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muito tempo teriam bastado para impedir o celibato. Mas parece que, desde
que houve leis, elas estabeleceram que o celibato era coisa má e digna de
castigo. Dionísio de Halicarnasso, que consultou os velhos anais de Roma,
disse existir uma lei antiga que obrigava os jovens a casar(5). O tratado das
leis de Cícero, que reproduz quase sempre, sob forma filosófica, as antigas
leis de Roma, contém uma que proíbe o celibato(6). Em Esparta, a legislação
de Licurgo castigava com pena severa o homem que não se casasse(7). Sabese,
por muitas anedotas, que quando o celibato deixou de ser proibido pelas
leis, continuou a sê-lo pelos costumes. Parece, enfim, por uma passagem de
Pólux, que em muitas cidades gregas a lei punia o celibato como crime(8).
Isso era conforme às crenças: o homem não pertencia a si próprio, mas à
família. Era o membro de uma série, que não devia interromper. Não nascera
por acaso; deram-lhe a vida, para que continuasse a observar um culto; não
devia deixar a vida sem estar seguro de que esse culto seria continuado depois
de sua morte.
Mas não bastava gerar filhos. O filho que devia perpetuar a religião doméstica
devia ser fruto de casamento religioso. O bastardo, filho natural, que os
gregos chamavam nóthos, e os latinos spurius, não podia desempenhar o
papel que a religião confiava ao filho. Com efeito, os laços sangüíneos apenas
não constituíam a família; eram necessários ainda os laços de culto. Ora, o
filho nascido de mulher que não se havia unido ao esposo pela cerimônia do
casamento, não podia tomar parte no culto(9). Não tinha direito de oferecer o
banquete fúnebre, e a família não se perpetuava por ele. Veremos mais adiante
que, pela mesma razão, não tinha direito à herança.
O casamento, portanto, era obrigatório. Não tinha por finalidade o prazer; seu
objetivo principal não era a união de duas criaturas que se convinham, e que
desejavam unir-se para a felicidade ou sofrimentos da vida. O efeito do
casamento, aos olhos da religião e das leis, era, unindo dois seres no mesmo
culto doméstico, dar origem a um terceiro, apto a perpetuar esse culto. Isso
pode ser claramente constatado pela fórmula sacramental pronunciada no ato
do casamento: Ducere uxorem liberum quaerendorum causa diziam os
romanos; Páidon ep' arótoi gnesíon, diziam os gregos(10).
Como o casamento não era contratado senão para perpetuar a família, parece
justo que podia ser anulado se a mulher fosse estéril. Nesses casos, o divórcio
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sempre constituiu direito entre os antigos; é até possível que tenha sido uma
obrigação. Na Índia, a religião prescrevia que a mulher estéril fosse
substituída depois de oito anos(11). Nenhum texto formal prova que esse
dever fosse idêntico tanto na Grécia quanto em Roma. Contudo, Heródoto cita
dois reis de Esparta que foram constrangidos a repudiar as mulheres, porque
eram estéreis(12). Quanto a Roma, é bastante conhecida a história de Carvílio
Ruga, cujo divórcio é o primeiro mencionado pelos Anais de Roma. Carvílio
Ruga diz Aulo Gélio homem de grande família, separou-se da mulher
mediante divórcio, porque não podia ter filhos dela. Amava-a ternamente, e só
podia louvar-lhe a conduta. Mas sacrificou seu amor à religião do juramento,
porque havia jurado na fórmula do casamento que a tomava por esposa
a fim de ter filhos(13).
A religião dizia que a família não podia extinguir-se; toda afeição e direito
natural devia ceder diante dessa regra absoluta. Se o casamento era estéril por
causa do marido, nem assim a família podia deixar de continuar. Nesse caso,
um irmão ou parente do marido devia substituí-lo, e a mulher era impedida de
se divorciar. A criança nascida dessa união era considerada filha do marido, e
continuava seu culto. Tais eram as regras entre os antigos hindus; tornamos a
encontrá-las nas leis de Atenas e de Esparta(14). Tal era a força imperiosa da
religião! Tal a importância do dever religioso, que passava à frente de todos
os outros!
Com muito mais razão as legislações antigas prescreviam o casamento da
viúva, quando não tivesse filhos com o parente mais próximo do marido. O
filho desse matrimônio era considerado filho do marido defunto(15).
O nascimento de uma menina não satisfazia o objetivo do casamento. Com
efeito, a filha não podia continuar o culto, porque, no dia em que se casasse
renunciaria à família e ao culto do pai, e passava a pertencer à família e
religião do marido. A família, como o culto, não continuava senão pelos
varões, fato capital, cujas conseqüências veremos adiante.
Portanto, o filho é que era esperado, é que era necessário; era ele que os
antepassados, a família e o lar reclamavam. Por ele diziam as velhas leis
dos hindus o pai paga suas dívidas para com os manes dos antepassados, e
assegura a si próprio a imortalidade. Esse filho não era menos precioso
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aos olhos dos gregos, porque mais tarde devia oferecer sacrifícios e banquetes
fúnebres, e conservar por seu culto a religião doméstica. Assim, no velho
Ésquilo, o filho é chamado salvador do lar paterno(16).
A entrada desse filho na família era assinalada por um ato religioso. Antes de
mais nada, era necessário que fosse aceito pelo pai. Este, como dono e mestre
vitalício do fogo sagrado, e representante dos antepassados, devia decidir se o
recém-nascido era ou não da família. O nascimento constituía apenas o laço
físico; a declaração do pai constituía o laço moral e religioso. Essa
formalidade era igualmente obrigatória em Roma, na Grécia e na Índia.
Além disso, como vimos para a mulher, o filho necessitava de uma espécie de
iniciação. Esta era feita pouco tempo depois do nascimento; em Roma, no
nono dia; na Grécia, no décimo dia; na Índia, no décimo ou décimo segundo
dia(17). Nesse dia, o pai reunia a família, chamava testemunhas, oferecia
sacrifício aos manes. A criança era apresentada aos deuses domésticos; uma
mulher carregava-o nos braços, e, correndo, dava com ele várias voltas ao
redor do fogo sagrado(18). Essa cerimônia tinha duplo objetivo: primeiro,
purificar a criança(19), isto é, tirar-lhe a impureza que os antigos supunham
havia contraído pelo único fato da gestação; e depois iniciá-lo no culto
sagrado doméstico. A partir desse momento a criança era admitida naquela
espécie de sociedade sagrada, ou pequena igreja, como era chamada a família.
Tinha agora uma religião, praticava seus ritos, estava apta a recitar suas
preces; honrava os antepassados e mais tarde, por sua vez, viria a ser um
antepassado honrado.
CAPÍTULO IV
ADOÇÃO E EMANCIPAÇÃO
O dever de perpetuar o culto doméstico foi a fonte do direito de adoção entre
os antigos. A mesma religião que obrigava o homem a se casar, que concedia
o divórcio em caso de esterilidade, e que, em caso de impotência ou de morte
prematura, substituía o marido por um parente, oferecia ainda à família um
último recurso para escapar à tão temida desgraça da extinção: esse recurso
consistia no direito de adotar.
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Aquele a quem a natureza não deu filhos, pode adotar um, para que as
cerimônias fúnebres não se extingam. Assim fala o velho legislador dos
hindus(1). Temos um curioso discurso de um orador ateniense, em processo
em que se contestava a um filho adotivo a legitimidade de sua adoção. O
defensor mostra-nos, a princípio, por que motivo se adotava um filho:
Menéclio diz ele não queria morrer sem filhos; queria deixar alguém
que o enterrasse, e que lhe oferecesse o culto fúnebre. Em seguida
demonstra o que poderá acontecer se o tribunal anular sua adoção, e não só o
que acontecerá a ele, mas àquele que o adotou; Menéclio morreu, mas é ainda
o interesse de Menéclio que está em jogo: Se anulardes a adoção, fareis de
Menéclio um defunto sem filhos, e, conseqüentemente, ninguém lhe oferecerá
sacrifícios fúnebres, e, finalmente, seu culto se extinguira(2).
Adotar um filho, portanto, era velar pela continuidade da religião doméstica,
pela salvação do fogo sagrado, pela continuação das ofertas fúnebres, pelo
repouso dos manes dos antepassados. Como a adoção não tinha outra razão de
ser além da necessidade de evitar a extinção do culto, seguia-se daí que não
era permitida senão a quem não tinha filhos. As leis dos hindus é formal a
esse respeito(3). A de Atenas não o é menos; todo o discurso de Demóstenes
contra Leocares o prova(4). Nenhum texto preciso prova que o mesmo
acontecesse com o direito romano antigo, e sabemos que no tempo de Gaio
um mesmo homem podia ter filhos naturais e por adoção. Parece, contudo,
que esse ponto não era admitido em direito nos tempos de Cícero, porque em
uma de suas arengas o orador se exprime assim: Qual é o direito que rege a
adoção? Não é necessário que o adotante esteja em idade de não ter mais
filhos, e que antes de adotar tenha procurado tê-los? Adotar é pedir à religião
e à lei o que não se pôde conseguir com a natureza(5). Cícero ataca a
adoção de Clódio, baseando-se no argumento de que o homem que o adotara
já tinha um filho, e afirmando que aquela adoção era contrária ao direito
religioso.
Quando se adotava um filho, era necessário antes de mais nada, iniciá-lo nos
segredos do culto, introduzi-lo na religião doméstica, aproximá-lo de seus
penates(6). Por isso a adoção era realizada por uma cerimônia sagrada, que
parece ter sido muito semelhante à que assinalava o nascimento de um filho,
pela qual o adotado era admitido ao lar e se associava à religião do pai
adotivo. Deuses, objetos sagrados, ritos, preces, tudo se tornava comum entre
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ambos. Diziam-lhe então: In sacra transiit: Passou para o culto de sua nova
família(7).
Por isso mesmo o filho adotivo renunciava ao culto da antiga(8). Vimos, com
efeito, que, de acordo com essas velhas crenças, o mesmo homem não podia
sacrificar a dois lares, nem honrar duas séries de antepassados. Admitido em
nova família, a casa paterna tornava-se-lhe estranha. Não tinha nada mais em
comum com o lar que o vira nascer, e não podia mais oferecer banquetes
fúnebres a seus antepassados. Quebrara-se o vínculo do nascimento; o vínculo
do novo culto apoderava-se dele(9). O homem se tornava tão completamente
estranho à antiga família que, se morresse seu pai natural não tinha direito de
se encarregar dos funerais ou de conduzir o enterro. O filho adotivo não podia
mais voltar para a antiga família; quando muito, a lei permitia-lhe que, tendo
um filho, o deixasse em seu lugar na família que o adotara. Considerava-se
que assim a continuidade dessa família estava assegurada, ele podia sair. Mas,
nesse caso, tinha de romper todos os laços que o ligavam a seu filho(10).
À adoção, correspondia como correlativo, a emancipação. Para que um filho
pudesse entrar na nova família, era necessário que pudesse sair da antiga, isto
é, que sua religião o permitisse(11). O efeito principal da emancipação era a
renúncia ao culto da família onde nascera. Os romanos designavam esse ato
pelo nome bem significativo de sacrorum detestatio(12). O filho emancipado
não era mais membro da família, nem pela religião, nem pelo direito.
CAPÍTULO V
O PARENTESCO. O QUE OS ROMANOS ENTENDIAM POR AGNAÇÃO
Platão diz que parentesco é a comunidade dos mesmos deuses domésticos(1).
Dois irmãos, diz ainda Plutarco, são dois homens que têm o dever de fazerem
os mesmos sacrifícios, de terem os mesmos deuses paternais, de partilharem
do mesmo túmulo(2). Quando Demóstenes nos quer provar que dois homens
são parentes, mostra que adotam o mesmo culto, e oferecem o banquete
fúnebre na mesma sepultura. Com efeito, a religião doméstica é que constituía
o parentesco. Dois homens podiam dizer-se parentes quando tivessem os
mesmos deuses, o mesmo lar, o mesmo banquete fúnebre.
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Ora, observamos precedentemente que o direito de oferecer sacrifícios ao
fogo sagrado só se transmitia de varão para varão, e que o culto dos mortos
não se dirigia senão aos ascendentes em linha masculina. Resultou, portanto,
dessa regra religiosa, que não se podia ser parente pelas mulheres. Na opinião
das gerações antigas a mulher não transmitia nem a existência, nem o culto. O
filho recebia tudo do pai. Não se podia, aliás, pertencer a duas famílias,
invocar dois lares; o filho não tinha, portanto, outra religião nem outra família
que a do pai(3). Como poderia, pois, ter uma família materna? Sua mãe,
durante a celebração dos ritos matrimoniais, renunciara de modo absoluto à
própria família; desde esse tempo oferecera banquetes fúnebres aos
antepassados do esposo, como se fora sua filha, e não oferecia mais a seus
próprios antepassados, porque não era mais considerada como descendente
deles. Não conservava laços nem religiosos, nem de direito com a família na
qual nascera. Com muito mais razão, portanto, seu filho nada tinha a ver com
essa família.
O princípio do parentesco não era o ato material do nascimento, era o culto.
Isso se pode ver claramente na Índia. Aí, o chefe de família, duas vezes por
mês, oferece o banquete fúnebre; apresenta um bolo aos manes de seu pai,
outro ao avô paterno, um terceiro ao bisavô paterno, e jamais àqueles dos
quais descende pelas mulheres. Depois, subindo mais alto, mas sempre na
mesma linha, faz uma oferta ao quarto, ao quinto e ao sexto ascendente, com a
diferença de que para estes a oferenda é mais reduzida: uma simples libação
de água, e alguns grãos de arroz. Esse é o banquete fúnebre, e é pela
observância desses ritos que se mede o parentesco. Quando dois homens, que
oferecem separadamente seus banquetes, remontando cada um a uma série de
seus ancestrais, encontrarem um que seja comum a ambos, esses dois homens
são parentes. Chamam-se samanodacas, se o antepassado comum é daqueles a
quem se oferece apenas libação de água; e sapindas, se lhe oferecem também
um bolo(4). Calculando, de acordo com nossos costumes, o parentesco dos
sapindas iria até o sétimo grau, e a dos samanodacas até o décimo quarto. Em
um e outro caso o parentesco é conhecido pelos sacrifícios comuns, e por esse
mesmo sistema vê-se por que o parentesco pelas mulheres não pode ser
admitido.
No Ocidente acontecia o mesmo. Muito se discutiu sobre o que os
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jurisconsultos romanos entendiam por agnação. Mas o problema torna-se de
fácil resolução se compararmos a agnação com a religião doméstica. Assim
como a religião não se transmitia senão de varão para varão, assim também
ficou atestado pelos antigos jurisconsultos que dois homens não podiam ser
agnados entre si senão quando, remontando sempre de varão em varão,
encontravam antepassados comuns(5). A regra para a agnação era, portanto,
idêntica à do culto. Entre essas duas coisas havia uma relação manifesta. A
agnação não era nada mais que o parentesco tal como a religião o estabeleceu
a princípio.
Para tornar esta verdade mais clara, tracemos este quadro de uma família
romana.
Lucius Cornelius
Scipio, morto no
ano 250 a.C.
P. Cornelius
Scipio
|
|
Cn. Cornelius
Scipio
|
P. Cornelius
Scipio
Africanus
|
L. Cornelius
Scipio
Asiaticus
|
P. Cornelius
Scipio Nasica
|
|
P. Cornelius
Scipio
|
|
|
Cornélia
esposa de
Sempronius
Gracchus
|
|
L. Cornelius
Scipio
Asiaticus
|
|
P. Cornelius
Scipio
Nasica
Corculum
|
P. Cornelius
Scipio
Aemilianus
nascido na
família
Emília, adotado
pela
família Cornélia
Tibério e
Caius Gracchus
L. Cornelius
Scipio
Asiaticus
P. Cornelius
Scipio
Nasica Serapio
Nesse quadro, a quinta geração, que vivia pelo ano 140 antes de Jesus Cristo,
é representada por quatro pessoas. Seriam todos eles parentes entre si? Sê-lohttp://
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iam, de acordo com nossas idéias modernas, mas não o eram na opinião dos
romanos. Examinemos, com efeito, se possuíam o mesmo culto doméstico,
isto é, se faziam ofertas aos mesmos antepassados. Suponhamos o terceiro,
Cipião Asiático, o último de seu ramo, oferecendo no dia determinado o
banquete fúnebre; remontando de varão em varão ele encontra por terceiro
antepassado a Públio Cipião. Do mesmo modo, Cipião Emiliano, oferecendo
o sacrifício, tornará a encontrar na série de seus ascendentes ao mesmo Públio
Cipião. Portanto, Cipião Asiático e Cipião Emiliano são parentes entre si;
entre os hindus chamar-se-iam sapindas.
Por outro lado, Cipião Serapião, tem por quarto antepassado a Lúcio Cornélio
Cipião, que também é o quarto antepassado de Cipião Emiliano. São,
portanto, parentes entre si; entre os hindus, chamar-se-iam samanodacas. Na
língua jurídica e religiosa de Roma esses três Cipiões são agnados; os dois
primeiros, em sexto grau; o terceiro, no oitavo grau em relação a eles.
O mesmo não acontece com Tibério Graco. Este homem que, de acordo com
nossos costumes modernos, seria o parente mais próximo de Cipião Emiliano,
não é seu parente nem em grau afastado. Pouco importa, com efeito, para
Tibério, que ele seja filho de Cornélia, a filha dos Cipiões; nem ele, nem a
própria Cornélia pertencem a esta família pela religião. Ele não tem outros
antepassados senão os Semprônios, e é a eles que oferece os banquetes
fúnebres; remontando à série de seus ascendentes, não encontrará ninguém
além de Semprônio. Cipião Emiliano e Tibério Graco, portanto, não são
agnados. Os laços de sangue não bastam para estabelecer parentesco; é
necessário o laço do culto.
Por aí se compreende por que, aos olhos da lei romana, dois irmãos
consangüíneos eram agnados, e dois irmãos uterinos não o eram. E nem se
pode afirmar que a descendência pelos varões era o princípio imutável sobre o
qual se baseava o parentesco. Não era pelo nascimento, mas pelo culto que se
reconhecia verdadeiramente os agnados. Com efeito, o filho que a
emancipação desligara do culto deixava de ser agnado de seu pai; o estranho
que havia sido adotado, isto é, admitido ao culto, tornava-se agnado do
adotante, e mesmo de toda a família. Tanto é verdade que só religião é que
determinava o parentesco.
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Sem dúvida, na Índia, na Grécia, como em Roma, houve uma época em que o
parentesco pelo culto não foi mais o único a ser considerado. À medida que a
antiga religião se enfraquece, a voz do sangue fala mais alto, e o parentesco
por nascimento foi reconhecido em direito. Os romanos chamaram cognatio
essa espécie de parentesco, que era absolutamente independente das regras da
religião doméstica. Quando lemos os jurisconsultos, desde Cícero até
Justiniano, vemos os dois sistemas de parentesco rivalizando entre si, e
disputando o domínio do direito. Mas no tempo das Doze Tábuas somente se
conhecia o parentesco por agnação, que era o único que conferia direitos de
sucessão. Mais adiante veremos como o mesmo aconteceu entre os gregos.
CAPÍTULO VI
O DIREITO DE PROPRIEDADE
Eis uma instituição dos antigos sobre a qual não devemos formar idéia pelo
que vemos a nosso redor. Os antigos basearam o direito de propriedade sobre
princípios que não são mais os das gerações presentes, e daqui resultou que as
leis pelas quais o garantiram são sensivelmente diversas das nossas.
Sabemos que há raças que jamais chegaram a instituir entre si a propriedade
privada; outras só a admitiram depois de muito tempo e a muito custo. Com
efeito, não é um problema fácil, na origem das sociedades, saber se o
indivíduo pode apropriar-se do solo, e estabelecer uma união tão forte entre si
e uma parte da terra a ponto de poder dizer: Esta terra é minha, esta terra é
como que parte de mim mesmo. Os tártaros admitem direitos de propriedade
quando se trata de rebanhos, e não o compreendem quando se trata do solo.
Entre os antigos germanos, de acordo com alguns autores, a terra não
pertencia a ninguém; todos os anos a tribo designava a cada um de seus
membros um lote para cultivar, lote que era trocado no ano seguinte. O
germano era proprietário da colheita, e não da terra. O mesmo acontece ainda
em uma parte da raça semítica, e entre alguns povos eslavos.
Pelo contrário, as populações da Grécia e da Itália, desde a mais remota
antiguidade, sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada. Não
ficou nenhuma lembrança histórica de época em que a terra fosse comum(1) e
também nada se vê que se assemelhe a essa divisão anual dos campos,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
praticada entre os germanos. Há até um fato bastante notável. Enquanto as
raças que não concediam ao indivíduo a propriedade do solo, concedem-lhe
pelo menos tal direito sobre os frutos do trabalho, isto é, das colheitas, entre
os gregos acontecia o contrário. Em algumas cidades os cidadãos eram
obrigados a reunir em comum as colheitas, ou, pelo menos, a maior parte
delas, e deviam consumi-las em comum(2); o indivíduo, portanto, não era
absoluto senhor do trigo que havia colhido; mas ao mesmo tempo, por notável
contradição, tinha absolutos direitos de propriedade sobre o solo. A terra para
ele valia mais que a colheita. Parece que entre os gregos a concepção do
direito de propriedade tenha seguido caminho absolutamente oposto ao que
parece natural. Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo. Seguiu-se
a ordem inversa.
Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e
solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica,
a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem,
uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis.
A idéia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família
tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão
por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva.
Ora, entre esses deuses e o solo, os homens das épocas mais antigas
divisavam uma relação misteriosa. Tomemos, em primeiro lugar, o lar; esse
altar é o símbolo da vida sedentária, como o nome bem o indica(3). Deve ser
colocado sobre a terra, e, uma vez construído, não o devem mudar mais de
lugar. O deus da família deseja possuir morada fixa; materialmente, é difícil
transportar a terra sobre a qual ele brilha; religiosamente, isso é mais difícil
ainda, e não é permitido ao homem senão quando é premido pela dura
necessidade, expulso por um inimigo, ou se a terra não o puder sustentar por
ser estéril. Quando se constrói o lar, é com o pensamento e a esperança de que
continue sempre no mesmo lugar. O deus ali se instala, não por um dia, nem
pelo espaço de uma vida humana, mas por todo o tempo em que dure essa
família, e enquanto restar alguém que alimente a chama do sacrifício. Assim o
lar toma posse da terra; essa parte da terra torna-se sua, é sua propriedade.
E a família, que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
altar, fixa-se ao solo como o próprio altar. A idéia de domicílio surge
naturalmente. A família está ligada ao altar, o altar ao solo; estabelece-se
estreita relação entre a terra e a família. Aí deve ter sua morada permanente,
que jamais abandonará, a não ser quando obrigada por força superior. Como o
lar, a família ocupará sempre esse lugar. Esse lugar lhe pertence, é sua
propriedade; e não de um homem somente, mas de toda uma família, cujos
diferentes membros devem, um após outro, nascer e morrer ali.
Sigamos o raciocínio dos antigos. Dois lares representam duas divindades
distintas, que nunca se unem ou se confundem; isso é tão verdade, que o
casamento entre duas famílias não estabelece aliança entre seus deuses. O lar
deve ser isolado, isto é, separado claramente de tudo o que não lhe pertence;
os estranhos não devem aproximar-se dele no momento em que se celebram
as cerimônias do culto; não devem nem mesmo sê-lo; por isso os manes são
conhecidos como deuses ocultos, mychioi ou deuses interiores penates. Para
que essa regra religiosa seja rigorosamente cumprida, é necessário que ao
redor do altar, a certa distância, haja uma cerca. Pouco importa que seja uma
paliçada, uma sebe ou um muro de pedras. Seja qual for, ela marca a divisa
que separa o domínio de um lar. Esse recinto é considerado sagrado(4).
Ultrapassá-lo, é ato de impiedade. O deus vela sobre ele, e toma-o sob sua
guarda; por isso dão a esse deus o epíteto de erkéios(5). Essa linha divisória
traçada pela religião, e por ela protegida é o emblema mais certo, a marca
mais irrecusável do direito de propriedade.
Reportemo-nos às idades primitivas da raça ariana. O recinto sagrado, que os
gregos chamam de érkos, e os latinos de herctum, e o recinto no qual a família
tem sua casa, seus rebanhos, o pequeno campo que cultiva. No meio, levantase
o lar protetor. Vamos para as idades seguintes: a população alcançou a
Grécia e a Itália, e construiu cidades. As casas estão próximas umas das
outras, e, no entanto, não são contíguas. O recinto sagrado ainda existe, mas
em proporções menores; mais comumente ficou reduzido a um pequeno muro,
uma vala, um sulco, ou a uma simples faixa de terra de alguns pés de largura.
Seja como for, duas casas não devem ser vizinhas; a contigüidade é
considerada impossível. A mesma parede não pode ser comum a duas casas,
porque então o recinto sagrado dos deuses domésticos desapareceria. Em
Roma, a lei fixa em dois pés e meio a largura do espaço que sempre deve
separar duas casas, e esse espaço é consagrado ao deus da divisa(6).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
O resultado dessas velhas regras religiosas é que entre os antigos jamais se
estabeleceu uma vida de comunidade. O falanstério nunca foi conhecido. O
próprio Pitágoras não conseguiu estabelecer instituições às quais a religião
íntima dos homens resistia. Não se encontra também, em nenhuma época da
vida dos antigos, nada que se assemelhe a essa promiscuidade das aldeias, tão
comum na França do século doze. Como cada família tinha seus deuses e seu
culto, devia ter também seu lugar particular sobre a terra, seu domicílio
isolado, sua propriedade.
Os gregos diziam que o lar havia ensinado aos homens a construir casas(7).
Com efeito, o homem, fixado pela religião em um lugar que não pensava
abandonar jamais, logo deve ter pensado em levantar aí uma construção
sólida. A tenda convém ao árabe, o carro ao tártaro, mas uma família que tem
um altar doméstico precisa de uma casa que dure. À cabana de terra ou de
madeira seguiu-se logo a casa de pedra. E esta não foi construída somente
para a vida de um homem, mas para a família, cujas gerações deviam sucederse
na mesma morada.
A casa situava-se sempre no recinto sagrado. Entre os gregos, dividia-se em
duas partes o quadrado formado pela cerca: a primeira parte era o pátio; a casa
ocupava a segunda parte. O altar, colocado mais ou menos no centro da área
total, encontrava-se assim no fundo do pátio, e perto da entrada da casa. Em
Roma a disposição era diferente, mas o princípio era o mesmo. O altar ficava
colocado no meio do recinto, mas as paredes elevavam-se ao seu redor pelos
quatro lados, de maneira a fechá-lo no meio de um pequeno pátio.
Vê-se claramente o pensamento que inspirou esse sistema de construção: as
paredes levantam-se ao redor do altar, para isolá-lo e protegê-lo; e podemos
afirmar, como diziam os gregos, que a religião ensinou a construir casas.
Nessa casa a família é senhora e proprietária; a divindade doméstica lhe
assegura esse direito. A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses;
ela é o templo que os guarda. Que há de mais sagrado diz Cícero
que a morada de um homem? Lá está o altar, lá brilha o fogo sagrado, lá estão
as coisas santas e a religião(8). Penetrar nessa casa com intenções
malévolas era sacrilégio. O domicílio era inviolável. Segundo uma tradição
romana, o deus doméstico afugentava ladrões e afastava inimigos(9).
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Passemos a outro objeto do culto, o túmulo, e veremos que a ele se ligam as
mesmas idéias. O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos,
porque, por uma parte, devia-se cultuar os mortos, e, por outra, a principal
cerimônia desse culto, isto é, o banquete fúnebre, devia ser realizado no
mesmo lugar onde repousavam os antepassados(10). A família tinha, portanto,
um túmulo comum, onde seus membros deviam repousar sucessivamente.
Para o túmulo observavam-se as mesmas regras que para o fogo sagrado; não
era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura, como não se
podiam unir dois altares domésticos em uma só casa. Tanto era impiedade
enterrar um morto fora do túmulo da família, como colocar nesse túmulo o
corpo de um estranho(11). A religião doméstica, na vida ou na morte,
separava cada família de todas as outras, e afastava severamente qualquer
aparência de comunidade. Assim como as casas não deviam ser contíguas, os
túmulos não deviam ser vizinhos; cada um deles, como a casa, tinha uma
espécie de baliza, que o isolava.
Como o caráter de propriedade privada está manifesto em tudo isso! Os
mortos são deuses que pertencem apenas a uma família, e que apenas ela tem
o direito de invocar. Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob esse
pequeno outeiro, e ninguém, que não pertença à família, pode pensar em unirse
a eles. Ninguém, aliás, tem o direito de privá-los da terra que ocupam; um
túmulo, entre os antigos, jamais pode ser mudado ou destruído(12); as leis
mais severas o proíbem. Eis, portanto, uma parte da terra que, em nome da
religião, torna-se objeto de propriedade perpétua para cada família. A família
apropriou-se da terra enterrando nela os mortos, e ali se fixa para sempre. O
membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente: Esta terra é
minha. E ela lhe pertence de tal modo, que lhe é inseparável, não tendo
nem mesmo o direito de desfazer-se dela. O solo onde repousam seus mortos
é inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma família vende o
campo onde está o túmulo, continua no entanto proprietária desse túmulo, e
conserva eternamente o direito de atravessar o campo para nele cumprir as
cerimônias do culto(13).
Era antigo costume enterrar os mortos, não em cemitérios, ou à beira das
estradas, mas no campo de cada família. Esse costume dos tempos antigos é
confirmado por uma lei de Sólon, e por diversas passagens de Plutarco(14).
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Lemos em um discurso de Demóstenes que, ainda em seu tempo, cada família
enterrava seus mortos no próprio campo, e que quando se comprava uma
propriedade na Ática, nela encontravam a sepultura dos antigos proprietários
(15). Quanto à Itália, esse mesmo costume nos é atestado por uma lei das
Doze Tábuas, pelos textos de dois jurisconsultos, e por esta frase de Siculo
Flaco: Antigamente havia duas maneiras de colocar os túmulos: uns punhamnos
no limite dos campos, outros no meio(16).
De acordo com esse costume, pode-se imaginar como a idéia de propriedade
se tenha facilmente estendido da pequena colina onde repousavam os mortos
ao campo que o rodeava. Pode-se ler em livro do velho Catão uma oração pela
qual um lavrador italiano rogava aos manes que velassem sobre seu campo,
guardando-o contra os ladrões, e concedendo-lhe colheita abundante. Assim
as almas dos mortos estendiam sua ação tutelar, e com ela o direito de
propriedade até os limites do domínio. Por meio delas a família era a única
senhora daquele campo. A sepultura havia estabelecido a união indissolúvel
da família com a terra, isto é, a propriedade.
Entre a maior parte das sociedades primitivas, foi pela religião que se
estabeleceu o direito de propriedade. Na Bíblia, o Senhor diz a Abraão: Sou
o Eterno, que te fez sair da Ur dos caldeus, a fim de te dar este país. E a
Moisés: Eu vos farei entrar no país que jurei dar a Abraão, e que eu vos darei
como herança. Assim Deus, proprietário primitivo por direito de criação,
delegou ao homem sua propriedade sobre uma parte do solo(17). Há algo
análogo entre as antigas populações greco-itálicas. Não é verdade que a
religião de Júpiter tenha estabelecido esse direito, talvez porque ainda não
existisse. Os deuses que conferiram a cada família direitos sobre a terra foram
os deuses domésticos, o lar e os manes. A primeira religião que teve poder
sobre suas almas foi também a que instituiu entre eles a propriedade.
É bastante evidente que a propriedade privada era uma instituição da qual a
religião doméstica não se podia eximir. Essa religião prescrevia que se
isolasse o domicílio e a sepultura: a vida em comum, portanto, tornava-se
impossível. A mesma religião ordenava que o altar fosse fixado ao solo, e que
a sepultura não fosse nem mudada, nem destruída. Suprimi a propriedade, e o
altar ficará errante, as famílias confundir-se-ão, os mortos ficarão
abandonados e sem culto. Por causa do altar irremovível e da sepultura
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permanente, a família tomou posse do solo; a terra, de certo modo, foi
imbuída e penetrada pela religião do lar e dos antepassados. Por essa razão o
homem das antigas idades ficou dispensado de resolver problemas muito
difíceis. Sem discussão, sem trabalho, sem sombra de hesitação, chegou de
um só golpe, e em virtude de suas crenças, à concepção do direito de
propriedade, desse direito que é a origem de toda a civilização, pois que por
ele o homem beneficia a terra, e se torna melhor a si mesmo.
Não foram as leis que a princípio garantiram o direito de propriedade; foi a
religião. Cada domínio estava sob os olhos da divindade doméstica, que
velava sobre ele(18). Cada campo devia estar rodeado, como o vimos para a
casa, de uma cerca que o separava nitidamente dos domínios das outras
famílias. Essa cerca não era um muro de pedra; era uma faixa de terra de
alguns pés de largura, que devia permanecer inculta, e que a charrua jamais
devia tocar. Esse espaço era sagrado; a lei romana declarava-o imprescritível
(19); ele pertencia à religião. Em determinados dias do mês e do ano, o pai de
família dava a volta a seu campo, seguindo essa linha; levava à sua frente as
vítimas, cantava hinos, oferecia sacrifícios(20). Com essa cerimônia
acreditava despertar a benevolência dos deuses em relação a seu campo e à
sua casa; sobretudo, marcava seu direito de propriedade levando ao redor do
campo seu culto doméstico. O caminho seguido pelas vítimas e as preces era o
limite inviolável do domínio.
Sobre essa linha, de distância em distância, o homem colocava algumas
pedras grandes, ou troncos de árvores, denominados termos. Podemos avaliar
o que eram esses limites e que idéias inspiravam pela maneira pela qual a
piedade dos homens depositava-os em terra. Eis diz Siculo Flaco o
que nossos antepassados faziam: começavam por cavar um pequeno buraco, e,
levando o termo à sua borda, coroavam-no de grinaldas, de ervas e flores.
Depois ofereciam um sacrifício; imolada a vítima, derramavam o sangue no
fosso, na qual lançavam carvões acesos (talvez acesos no fogo sagrado),
semente, bolos, frutas, um pouco de vinho e mel. Quando tudo se consumia,
sobre as cinzas ainda quentes, enterrava-se a pedra ou o pedaço de madeira
(21). Vê-se por aí claramente que essa cerimônia tinha por objeto fazer do
termo uma espécie de representante sagrado do culto doméstico. Para
conservar-lhe esse caráter, cada ano renovava-se o ato sagrado, fazendo
libações e recitando preces. O termo colocado em terra, era, de algum modo, a
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religião doméstica implantada no solo, para marcá-lo para sempre como
propriedade da família. Mais tarde, com a ajuda da poesia, o termo foi
considerado como um deus distinto e pessoal.
O uso dos termos ou limites sagrados dos campos parece ter sido universal na
raça indo-européia. Existia entre os hindus, em idades remotíssimas, e as
cerimônias sagradas da demarcação tinha entre eles grande analogia com as
que Siculo Flaco descreveu para a Itália(22). Antes de Roma, encontramos o
termo entre os sabinos(23), como também entre os etruscos. Os helenos
também tinham seus marcos sagrados, que chamavam de òpoi, theà órioi(24).
O marco, uma vez plantado de acordo com os ritos, não havia poder no
mundo capaz de movê-lo. Devia ficar eternamente no mesmo lugar. Esse
princípio religioso era conhecido em Roma por uma lenda: Júpiter, desejando
alojar-se sobre o monte Capitolino, para nele construir um templo, não o
conseguiu por não poder tirar de lá o deus Termo. Essa velha tradição
demonstra-nos como a propriedade era sagrada, porque o vocábulo imóvel
não significa nada mais que propriedade inviolável.
O deus Termo, com efeito, guardava os limites do campo, e velava sobre ele.
O vizinho não ousava aproximar-se muito, porque então como diz Ovídio
o deus, que se sentia ferido pela enxada ou pela relha do arado, gritava:
Pára, este campo é meu; ali está o teu(25). Para invadir o campo de uma
família era necessário derrubar ou deslocar um marco; ora, esse marco era um
deus. O sacrilégio era horrível e o castigo severo; a velha lei romana dizia:
Se tocou o marco com a relha do arado, o homem e seus bois devem ser
lançados aos deuses infernais(26). Isso significava que o homem e os bois
seriam imolados em expiação. A lei etrusca, falando em nome da religião,
exprimia-se assim: Aquele que tocar ou remover um marco será condenado
pelos deuses; sua casa desaparecerá, sua raça se extinguira; sua terra não
produzirá mais frutos; o granizo, a ferrugem, o calor da canícula destruirão
suas colheitas; os membros do culpado cobrir-se-ão de úlceras, e cairão de
consumpção(27).
Não possuímos o texto da lei ateniense sobre o assunto; não nos restam senão
três palavras que significam: Não ultrapasse os limites. Mas Platão
parece completar o pensamento do legislador quando diz: Nossa primeira lei
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deve ser esta: Que ninguém toque no marco que separa seu campo do do
vizinho, porque ele deve continuar imóvel. Que ninguém cuide em deslocar a
pequena pedra que separa a amizade da inimizade, a pedra que, por
juramento, deve permanecer em seu lugar(28).
De todas essas crenças, de todos esses costumes, de todas essas leis, resulta
claramente que foi a religião doméstica que ensinou o homem a se apropriar
da terra, e que lhe assegurou direitos sobre a mesma.
Compreende-se facilmente que o direito de propriedade, assim concebido e
estabelecido, foi muito mais completo e mais absoluto em seus efeitos, do que
o poderia ser em nossas sociedades modernas, onde se baseia sobre outros
princípios. A propriedade era tão inerente à religião doméstica, que uma
família não podia renunciar nem a uma, nem à outra. A casa e o campo
estavam como que incorporadas a ela, e ela não podia nem perdê-la, nem
privar-se dela. Platão, em seu Tratado das Leis, não pretendia dizer novidades
quando proibia ao proprietário vender o campo; apenas lembrava uma lei
antiga. Tudo leva a crer que nos tempos antigos a propriedade fosse
inalienável. É de todos sabido que em Esparta era proibida a venda de terras
(29). A mesma interdição estava escrita nas leis de Locres e de Leucádio(30).
Fidon de Corinto, legislador do século IX, prescrevia que o número das
famílias e das propriedades ficasse sempre o mesmo(31). Ora, essa prescrição
não podia ser observada se não fosse proibido às famílias vender as próprias
terras, ou dividi-las. A lei de Sólon, posterior a sete ou oito gerações à que
Fidon de Corinto, não proibia mais ao homem a venda das propriedades, mas
castigava o vendedor com pena severa, a perda dos direitos de cidadão(32).
Enfim, Aristóteles nos informa de maneira geral que em muitas cidades as
antigas legislações interdiziam as vendas das terras(33).
Tais leis não nos devem surpreender. Baseai a propriedade sobre o direito do
trabalho, e o homem poderá renunciar à sua posse. Baseia-o sobre a religião, e
ele não o poderá mais fazê-lo: um laço mais forte que a vontade humana o une
à terra. Além do mais, esse campo, onde está o túmulo, onde vivem os
antepassados divinos, onde a família deve celebrar um culto ininterrupto, não
é propriedade de apenas um homem, mas de toda uma família. Não é o
indivíduo, que agora está vivo, que estabeleceu direitos sobre a terra, mas o
deus doméstico. O indivíduo a tem apenas em depósito; ela pertence àqueles
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que estão mortos e aos que estão por nascer; forma um só corpo com a
família, e não pode mais separar-se da mesma. Destacar uma da outra, é
alterar o culto e ofender à religião. Entre os hindus, a propriedade, também
baseada sobre o culto, era igualmente inalienável(34).
Não conhecemos o direito romano senão a partir das Doze Tábuas; é claro que
nessa época a venda de propriedades já era permitida. Mas há razões para
pensar que, nos primeiros tempos de Roma, e na Itália antes da fundação de
Roma, a terra era tão inalienável quanto na Grécia. Se não nos resta nenhuma
testemunha dessa antiga lei, pelo menos se podem perceber pequenas
mudanças que foram sendo introduzidas pouco a pouco. A lei das Doze
Tábuas, deixando ao túmulo seu caráter inalienável, libertou o campo.
Permitiu-se depois a divisão da propriedade, caso houvesse muitos irmãos,
mas com a condição de se realizar nova cerimônia religiosa: somente a
religião podia dividir o que a religião havia outrora proclamado indivisível.
Enfim, permitiu-se a venda das terras, mas para isso ainda eram necessários
algumas formalidades de caráter religioso. Essa venda não podia ser realizada
senão na presença do libripens, e com todos os ritos simbólicos da
mancipação. Na Grécia vê-se algo análogo: a venda de uma casa ou de uma
propriedade era acompanhada de um sacrifício aos deuses(35). Parece que
qualquer mudança de propriedade tinha necessidade de ser autorizada pela
religião.
Se o homem não podia absolutamente, ou com muita dificuldade, desfazer-se
da terra, com muito mais razão não o podiam privar dela contra sua vontade.
A expropriação motivada pela utilidade pública era desconhecida entre os
antigos. A confiscação não era praticada senão como conseqüência da pena de
exílio(36), isto é, quando um homem, despojado do título de cidadão, não
podia mais exercer nenhum direito sobre o solo da cidade. A expropriação por
dívidas também é desconhecida pelo antigo direito das cidades(37). A lei das
Doze Tábuas não poupa, naturalmente, o devedor; contudo, não permite que
sua propriedade seja confiscada em proveito do credor. O corpo do homem
responde pela dívida, mas não a terra, porque a terra é inseparável da família.
É mais fácil escravizar um homem, que tirar-lhe o direito de propriedade, que
pertence mais à família do que a ele próprio; o devedor é posto nas mãos do
credor; sua terra, de algum modo, segue-o na escravidão. O patrão que usa em
seu proveito das forças físicas do homem, usufrui também os frutos da terra,
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mas não se torna proprietário da mesma. Tanto o direito de propriedade é
inviolável, e superior a tudo(38)!
CAPÍTULO VII
DIREITO DE SUCESSÃO
1.° Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos
Como o direito de propriedade havia sido estabelecido para cumprimento de
um culto hereditário, não era possível que se extinguisse depois da curta
existência de um indivíduo. O homem morre, o culto continua; o lar não deve
extinguir-se, nem o túmulo deve ser abandonado. Com a continuação da
religião doméstica, o direito de propriedade também permanece.
Duas coisas estão estritamente unidas, tanto nas crenças como nas leis dos
antigos: o culto da família e a propriedade. Por isso, esta era uma regra sem
exceção, tanto no direito grego quanto no romano: não se podia adquirir a
propriedade sem o culto, nem o culto sem a propriedade. A religião
prescreve diz Cícero que os bens e o culto de cada família sejam
inseparáveis, e que o cuidado dos sacrifícios seja sempre confiado àquele a
quem cabe a herança(1). Em Atenas, os termos em que um litigante
reclamava uma sucessão eram estes: Refleti bem, juízes, e dizei qual de nós
deve herdar os bens de Filoctémon, e fazer os sacrifícios sobre seu túmulo
(2). Pode-se afirmar mais claramente que o cuidado do culto não se podia
separar da sucessão? O mesmo acontece na Índia: A pessoa que herda, seja
quem for, fica encarregada de fazer ofertas sobre o túmulo(3).
Deste princípio originaram-se todas as regras do direito de sucessão entre os
antigos. A primeira é que sendo a religião doméstica, como vimos, hereditária
de varão para varão, o mesmo acontecia com a propriedade. Como o filho é a
continuação natural e obrigatória do culto, também é herdeiro dos bens.
Assim é que surgiu a regra da hereditariedade; ela não é o resultado de uma
simples convenção feita entre os homens; ela deriva de suas crenças, de sua
religião, do que há de mais poderoso sobre as almas. O que faz com que o
filho herde não é a vontade do pai. O pai não tem necessidade de fazer
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testamento; o filho herda de pleno direito ipso jure heres exsistit diz o
jurisconsulto. É um herdeiro necessário: heres necessarius(4). Não tem que
aceitar ou recusar a herança. A continuação da propriedade, como a do culto,
é para ele obrigação e direito. Quer queira quer não, a herança lhe cabe, seja
qual for, mesmo com suas obrigações e dívidas. O benefício de inventário e o
benefício de desistência não são admitidos para o filho no direito grego, e não
foram introduzidos senão muito tarde no direito romano.
A linguagem jurídica de Roma chama o filho de heres suus, como se dissesse:
heres sui ipsius. Com efeito, ele não herda senão de si próprio. Entre o pai e
ele não há nem doação, nem legado, nem mudança de propriedade. Há
simplesmente continuação: Morte parentis continuatur dominium. Ainda
em vida do pai, o filho era co-proprietário do campo e da casa: Vivo quoque
patre dominus existimatur(5).
Para se fazer uma idéia verdadeira da herança entre os antigos não é
necessário pensar em uma fortuna que passa de mão em mão. A fortuna é
imóvel, como o fogo sagrado e o túmulo aos quais está unida. O homem é que
passa. É o homem que, à medida que a família estende suas gerações, chega à
hora marcada para continuar o culto e cuidar de seu domínio.
2.° O filho herda, e não a filha
Aqui é que as leis antigas, à primeira vista, parecem estranhas e injustas.
Sente-se alguma surpresa quando vê que no direito romano a filha não herda
do pai, se é casada, e que no direito grego ela não herda em nenhum caso.
Quanto aos colaterais, parece, à primeira vista, que a lei está ainda mais longe
da natureza e da justiça. É que todas essas leis são decorrentes, não da razão e
da lógica, não do sentimento de eqüidade, mas das crenças e da religião que
reinavam sobre as almas.
A regra para o culto é a transmissão de varão para varão; a regra para a
herança é conformar-se com o culto. A filha não é apta para continuar a
religião paterna, pois ela se casa, e, casando-se, renuncia ao culto do pai para
adotar o do esposo: não tem, portanto, nenhum título para herdar. Se por acaso
um pai deixasse seus bens à filha, a propriedade seria separada do culto, o que
não é admissível. A filha não poderia nem ao menos cumprir o primeiro dever
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do herdeiro, que é continuar a série de banquetes fúnebres, pois os sacrifícios
que oferece dirigem-se aos antepassados do marido. A religião, portanto,
proíbe-lhe herdar do pai.
Tal é o antigo princípio, também obedecido pelos legisladores hindus, como
pelos da Grécia e de Roma. Os três povos têm as mesmas leis, não porque uns
a aprendessem dos outros, mas porque tiraram suas leis das mesmas crenças.
Depois da morte do pai diz o Código de Manu os irmãos devem dividir
entre si o patrimônio e o legislador continua recomendando aos irmãos
que dotem suas irmãs, o que acaba de provar que elas não têm por si mesmas
nenhum direito à sucessão paterna.
O mesmo acontece em Atenas. Os oradores áticos, em seus discursos,
demonstram freqüentemente que as filhas não herdam(1). O próprio
Demóstenes é um exemplo da aplicação dessa lei grega, porque tinha uma
irmã, e sabemos por seus próprios escritos que ele foi o único herdeiro do
patrimônio; seu pai reservara apenas a sétima parte para dotar a filha.
Quanto a Roma, as disposições do direito primitivo nos são quase
completamente desconhecidas. Não possuímos dessas épocas antigas nenhum
texto de lei que se relacione com o direito de sucessão da filha; não possuímos
tampouco nenhum documento análogo aos discursos de Atenas; enfim, somos
obrigados a procurar fracos indícios do direito primitivo em um direito muito
posterior e muito diverso. Gaio, e as Institutas de Justiniano, lembram ainda
que a filha não pertence ao número dos herdeiros naturais senão quando se
encontra em poder do pai no momento de sua morte(2); ora, se estiver casada
de acordo com os ritos religiosos, não está mais sob a jurisdição paterna.
Supondo-se, portanto, que antes de ser casada ela pudesse dividir a herança
com um irmão, certamente não o poderá mais se a confarreatio a fizer sair da
família paterna para ligar-se à do marido. É bem verdade que, não casada, a
lei não a privava formalmente de sua parte na herança; mas é necessário
perguntar se na prática ela podia ser verdadeiramente herdeira. Ora, não nos
devemos esquecer de que essa filha estava colocada sob a tutela do irmão, ou
dos parentes agnados, por toda a vida; que a tutela do antigo direito era
estabelecida no interesse dos bens, e não da filha; que ela tinha por objeto a
conservação dos bens da família(3); e que, enfim, a filha, em nenhuma idade,
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podia casar ou mudar de família sem autorização do tutor. Esses fatos, que são
bem provados, permitem acreditar que havia, senão nas leis, pelo menos na
prática e nos costumes, uma série de dificuldades que se opunham a que a
filha fosse tão completamente proprietária de sua parte do patrimônio como o
filho o era da sua. Não temos provas para afirmar que a filha fosse excluída do
casamento, mas temos certeza de que, casada, ela não herdava do pai, e que,
não casada, não podia jamais dispor do que havia herdado. Se era herdeira,
não o era senão provisoriamente, e sob certas condições, quase em simples
usufruto; não tinha o direito nem de testar, nem o de alienar sem autorização
do irmão ou dos agnados, que, depois de sua morte, deviam herdar os mesmos
bens que haviam administrado enquanto viveu(4).
Há ainda outra observação a ser feita. As Institutas de Justiniano lembram o
velho princípio, então caído em desuso, mas não esquecido, que prescrevia
que a herança devia passar de varão para varão apenas(5). É sem dúvida em
lembrança dessa regra que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser
herdeira. Quanto mais nos afastamos da época de Justiniano para épocas mais
antigas, mais nos aproximamos de uma regra que proíbe às mulheres herdar.
Nos tempos de Cícero, se um pai deixa um filho e uma filha, não pode legar à
filha senão um terço de sua fortuna; se não tem senão uma filha única, mesmo
assim ela não pode receber senão a metade. Deve-se ainda notar que, para que
essa filha receba um terço ou a metade do patrimônio, é necessário que o pai
tenha feito um testamento em seu favor; a filha nada tem de pleno direito(6).
Enfim, um século e meio antes de Cícero, Catão, querendo fazer reviver os
antigos costumes, fez aprovar a lei Vocônia, que proibia: 1.° instituir como
herdeira uma mulher, fosse embora filha única, casada ou não; 2.° legar a
mulheres mais da metade do patrimônio(7). A lei Vocônia nada fez senão
renovar leis mais antigas, porque não se pode supor que tenha sido aceita
pelos contemporâneos dos Cipiões se não estivesse baseada em antigos
princípios ainda respeitados. Essa lei visava restabelecer o que o tempo havia
alterado. Aliás, o que há de mais curioso na lei Vocônia é que ela não estipula
nada a respeito da herança ab intestat. Ora, esse silêncio não pode significar
que nesses casos a filha era herdeira legítima, porque não é admissível que a
lei proíba à filha herdar do pai por testamento, se ela já é herdeira de pleno
direito sem testamento. Esse silêncio significa antes que o legislador nada
tinha a dizer sobre a herança ab intestat, porque para esses casos as antigas
regras se haviam conservado melhor.
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Assim, sem que se possa afirmar que a filha era claramente excluída da
sucessão, pelo menos é certo que a antiga lei romana, tanto quanto a grega,
dava à filha uma situação muito inferior à do filho, como conseqüência
natural e inevitável dos princípios que a religião havia gravado em todos os
espíritos.
É verdade que os homens logo encontraram uma evasiva para conciliar a
prescrição religiosa, que proibia à filha herdar, com o sentimento natural, que
exigia que ela pudesse gozar da fortuna paterna. Isso é evidente, sobretudo no
direito grego.
A legislação ateniense visava manifestamente que a filha não herdeira, pelo
menos se casasse com um herdeiro. Se, por exemplo, o defunto deixara um
filho e uma filha, a lei autorizava o casamento entre irmão e irmã, contanto
que não fossem nascidos da mesma mãe. O irmão, herdeiro único, podia à sua
escolha casar com a irmã, ou dotá-la(8).
Se um pai não tinha senão uma filha, podia adotar um filho, e dar-lhe a filha
em casamento. Podia ainda instituir por testamento um herdeiro que se
casasse com a filha(9).
Se o pai de uma filha única morresse sem haver adotado nem testado, o antigo
direito exigia que o parente mais próximo herdasse(10); mas esse herdeiro
tinha obrigação de casar a filha. É em virtude desse princípio que o casamento
do tio com a sobrinha era autorizado, e mesmo exigido por lei(11). Há mais:
se essa filha já estava casada, devia deixar o marido, para se casar com
herdeiro do pai(12). O herdeiro, por sua vez, podia ser já casado, mas devia
divorciar para casar com a parenta(13). Vemos aqui quanto o direito antigo,
para se conformar com a religião, desconhecia a natureza(14).
A necessidade de satisfazer à religião, combinada com o desejo de salvar os
interesses das filhas únicas, fez com que se encontrasse outra solução. Sobre
esse ponto o direito hindu e o direito ateniense coincidiam maravilhosamente.
Lemos nas Leis de Manu: Aquele que não tem filho varão, pode encarregar a
filha de lhe dar um filho, que se torna seu, e que celebre em sua honra a
cerimônia fúnebre. Para isso, o pai deve prevenir o esposo ao qual dá a
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própria filha, pronunciando esta fórmula: Eu te dou, enfeitada de jóias, esta
filha que não tem irmão; o filho que dela nascer será meu filho, e celebrará
meus funerais(15). O costume era idêntico em Atenas; o pai podia fazer
continuar a descendência pela filha, dando-a a um marido com essa condição
especial. O filho que nascia desse casamento era considerado filho do pai da
mulher; seguia seu culto, assistia a seus atos religiosos, e mais tarde cuidava
de seu túmulo(16). No direito hindu essa criança herdava do avô como se
fosse filho; o mesmo acontecia em Atenas. Quando um pai casava a filha
única como acabamos de dizer, seu herdeiro não era nem a filha, nem o genro,
era o filho de sua filha(17). Quando este atingisse a maioridade, tomava posse
do patrimônio materno, embora o pai e a mãe ainda estivessem vivos(18).
Essas singulares tolerâncias da religião e da lei confirmam a regra que
relatamos acima. A filha não era apta a herdar. Mas, pelo abrandamento muito
natural desse princípio rigoroso, a filha única era considerada como
intermediária pela qual a família podia continuar. Ela não herdava, mas o
culto e a herança eram transmitidos por seu intermédio.
3.° Da sucessão colateral
Um homem morria sem filhos; para saber quem era o herdeiro de seus bens,
bastava procurar quem devia ser o continuador de seu culto.
Ora, a religião doméstica se transmitia pelo sangue, de varão para varão. A
descendência em linha masculina estabelecia somente entre dois homens a
união religiosa, que permitia a um continuar o culto do outro. O que se
chamava de parentesco não era nada mais, como vimos acima, que a
expressão dessa união. Era-se parente porque se tinha o mesmo culto, um
mesmo lar originário, os mesmos antepassados. Mas não se era parente pelo
simples fato de se ter a mesma mãe; a religião não admitia parentesco pelas
mulheres. Os filhos de duas irmãs, ou de uma irmã e de um irmão, não tinham
entre si nenhum laço, e não pertenciam à mesma religião doméstica nem à
mesma família.
Esses princípios regulavam a ordem de sucessão. Se um homem, tendo
perdido filho e filha, não deixava senão netos, os filhos de seu filho herdavam,
os de sua filha não. Na falta de descendentes, tinha por herdeiro o irmão, e
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não a irmã; os filhos do irmão, e não os da irmã. Em falta de irmãos e de
sobrinhos, era necessário remontar à série dos ascendentes do defunto, sempre
na linha masculina, até que se encontrasse um ramo que se houvesse
destacado da família por um varão; depois, tornava-se a descer por esse ramo
de varão a varão, até que se encontrasse um homem vivo: este era o herdeiro.
Essas regras estavam igualmente em vigor entre os hindus, entre os gregos,
entre os romanos. Na Índia, a herança pertence ao sapinda mais próximo; em
falta de um sapinda, ao samanodaca(1). Ora, vimos que o parentesco que
exprimiam essas duas palavras era parentesco religioso ou parentesco
masculino, e correspondia à agnação romana.
Eis agora a lei de Atenas: Se um homem morre sem filhos, o herdeiro é o
irmão do defunto, contanto que seja irmão consangüíneo; em falta deste, o
filho do irmão, porque a sucessão passa sempre aos varões e aos
descendentes de varões(2). Citava-se ainda essa velha lei nos tempos de
Demóstenes, embora já estivesse modificada, e já se começasse a admitir por
essa época o parentesco pelo lado das mulheres.
As Doze Tábuas estabeleciam igualmente que, se um homem morresse sem
herdeiro próprio, a sucessão pertencia ao agnado mais próximo. Ora, vimos
que jamais se era agnado pelas mulheres. O antigo direito romano
especificava ainda que o sobrinho herdava do patruus isto é, do irmão de seu
pai, e não herdava do avunculus isto é, do irmão de sua mãe(3). Se nos
reportarmos ao quadro que traçamos da família dos Cipiões, notaremos que,
como Cipião Emiliano morreu sem deixar filhos, sua herança não devia passar
nem a Cornélia, sua tia, nem a Caio Graco, que, de acordo com nossas idéias
modernas, seria seu primo-irmão, mas a Cipião Asiático, que era, de acordo
com o direito dos antigos, seu parente mais próximo.
Nos tempos de Justiniano, o legislador não compreendia mais essas velhas
leis; elas lhe pareciam iníquas, e ele acusava de rigor excessivo o direito das
Doze Tábuas que concedia sempre preferência à posteridade masculina, e
excluía da herança aqueles que não estavam ligados ao defunto senão pelas
mulheres(4). Direito iníquo, se assim o quisermos, porque não tomava em
consideração a natureza, mas direito singularmente lógico, porque, partindo
do princípio de que a herança estava ligada ao culto, afastava da herança
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aqueles que a religião não autorizava a continuar o culto.
4.° Efeitos da emancipação e da adoção
Vimos precedentemente que a emancipação e a adoção produziam no homem
mudança de culto. A primeira desligava-o do culto paterno, a segunda
iniciava-o na religião de outra família. Ainda aqui o direito antigo
conformava-se às regras religiosas. O filho que havia sido excluído do culto
paterno pela emancipação, era excluído também da herança(1). Pelo contrário,
o estranho, que havia sido associado ao culto de uma família pela adoção, e se
tornava filho da mesma, continuava seu culto e herdava-lhe os bens. Em um e
outro caso o antigo direito dava mais importância aos laços religiosos que aos
laços de nascimento.
Como era contrário à religião que um mesmo homem tivesse dois cultos
domésticos, ele não podia igualmente herdar de duas famílias. Também o
filho adotivo, que herdava da família adotante, não herdava da família natural.
O direito ateniense era muito explícito a esse respeito. Os discursos dos
oradores áticos mostram-nos muitas vezes homens adotados por uma família,
e que desejam herdar daquelas onde nasceram. Mas a lei não o permitia. O
homem adotado não pode herdar de sua própria família senão voltando para
ela; e não pode voltar a ela senão renunciando à família adotiva, e não pode
sair desta senão sob duas condições: uma, que abandone o patrimônio dessa
família; outra, que o culto doméstico, para cuja continuação fora adotado, não
se extinga por seu abandono; e para isso ele deve deixar nessa família um
filho que o substitua(2). Esse filho cuidará do culto e tomará posse dos bens; o
pai então poderá voltar à família original e herdar. Mas esse pai e esse filho
não podem mais herdar um do outro; eles não pertencem à mesma família,
nem são parentes.
Por aí se vê qual era o pensamento do velho legislador quando estabelecia
essas regras minuciosas. Ele não julgava possível que duas heranças se
reunissem sob o mesmo teto, porque dois cultos domésticos não podiam ser
servidos pela mesma mão.
5.° O testamento, a princípio, não era conhecido
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O direito de testar, isto é, de dispor dos próprios bens depois da morte, para
deixá-los a outros que não o herdeiro natural, estava em oposição com as
crenças religiosas, que eram o fundamento do direito de propriedade e do
direito de sucessão. Se a propriedade estava ligada ao culto, e o culto era
hereditário, podia-se pensar em testamento? Além do mais, a propriedade não
pertencia ao indivíduo, mas à família, porque o homem não a adquiriu por
direito de trabalho, mas pelo culto doméstico. Ligada à família, ela se
transmitia do morto ao vivo, não de acordo com a vontade ou escolha do
morto, mas em virtude de regras superiores que a religião havia estabelecido.
O antigo direito hindu não conhecia o testamento. O direito ateniense, até
Sólon, proibia-o de maneira absoluta(1), e o próprio Sólon não o permitiu
senão aos que não tinham filhos(2). O testamento foi por muito tempo
proibido ou ignorado em Esparta, e não foi autorizado senão depois da guerra
do Peloponeso(3). Conserva-se ainda a lembrança de um tempo em que era
proibido também em Corinto e em Tebas(4). É certo que a faculdade de legar
arbitrariamente os próprios bens não foi reconhecida a princípio como direito
natural; o princípio constante em todas as épocas antigas foi o de que a
propriedade devia permanecer na família à qual a religião a havia ligado.
Platão, em seu Tratado das Leis, que em grande parte nada mais é que um
comentário sobre as leis atenienses, explica com muita clareza o pensamento
dos antigos legisladores. Ele supõe que um homem, em seu leito de morte,
reclama a faculdade de fazer testamento, e exclama: Ó deuses! não é
crueldade que eu não possa dispor de meus bens como entendo, e em favor de
quem quero, deixando mais a este, menos àquele, de acordo com o afeto que
me demonstraram? Mas o legislador responde a esse homem: Tu, que
não podes prometer a ti mesmo mais um dia; tu, que não estás aqui senão de
passagem, podes querer decidir tais negócios? Não és senhor nem de teus
bens, nem de ti mesmo; tu, e teus bens, pertences à tua família, isto é, a teus
antepassados e à tua posteridade(5).
O antigo direito romano é para nós muito obscuro, como já o era para Cícero.
O que conhecemos não vai além das Doze Tábuas, que não são certamente o
direito primitivo de Roma, dos quais, aliás, não nos restam senão alguns
fragmentos. Esse código autoriza o testamento; e ainda o fragmento que diz
respeito a esse assunto é muito curto, e, evidentemente, incompleto, para que
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nos possamos orgulhar de conhecer as verdadeiras disposições do legislador
nessa matéria: concedendo a faculdade de testar, não sabemos quais reservas
ou condições poderia colocar(6). Antes das Doze Tábuas não possuímos
nenhum texto de lei que proíba ou permita o testamento. Mas a língua
conservava a lembrança de um tempo em que era desconhecido, porque
chamava o filho de herdeiro seu e necessário. Esta fórmula, que Gaio e
Justiniano usavam ainda, mas que não estava mais de acordo com a legislação
de seu tempo, vinha sem dúvida alguma de época longínqua, na qual o filho
não podia nem ser herdeiro, nem recusar a herança. O pai não tinha, portanto,
livre disposição para legar sua fortuna. O testamento não era desconhecido
por completo, mas era muito difícil. Faziam-se necessárias muitas
formalidades. Para começar, o segredo devia ser revelado pelo testador em
vida; o homem que deserdava a família, e violava a lei que a religião havia
estabelecido, devia fazê-lo publicamente, e assumir sobre si, ainda em vida,
todo o ódio que despertava esse ato. E isso não é tudo; era necessário ainda
que a vontade do testador recebesse aprovação da autoridade soberana, isto é,
do povo reunido por cúrias, sob a presidência de um pontífice(7). Não vamos
pensar que isso fosse mera formalidade, sobretudo nos primeiros séculos.
Esses comícios por cúrias eram a reunião mais solene da cidade romana, e
seria pueril afirmar que se convocava um povo, sob a presidência do chefe
religioso, apenas para assistir como simples testemunha à leitura de um
testamento. Pode-se crer que o povo votava, e isso, se refletirmos bem, era até
necessário; com efeito, havia uma lei geral que regulava a ordem da sucessão
de maneira rigorosa; para que essa ordem fosse modificada em um caso
particular, fazia-se necessária nova lei. Essa lei de exceção era o testamento.
A faculdade de testar não era, portanto, plenamente reconhecida ao homem, e
não o podia ser enquanto a sociedade continuasse sob o império da velha
religião. Nas crenças dessas idades antigas, o homem vivo não era senão o
representante, por alguns anos, de um ser constante e imortal, que era a
família. O culto e a propriedade estavam apenas depositados em suas mãos;
seu direito cessava com a vida.
6.° Antiga indivisão do patrimônio
Seria necessário avançarmos para além dos tempos de que a história nos
conservou a lembrança, para os séculos longínquos durante os quais
estabeleceram-se as instituições domésticas, e se prepararam as instituições
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sociais. Dessa época não nos resta, e não poderia restar, nenhum monumento
escrito. Mas as leis que então regiam os homens deixaram alguns vestígios no
direito das épocas seguintes.
Nesses tempos longínquos, distinguimos uma instituição que deve ter reinado
por muito tempo, e que exerceu considerável influência sobre a constituição
futura das sociedades; e sem a qual essa instituição não se poderia explicar. É
a indivisão do patrimônio, com uma espécie de direito de primogenitura.
A velha religião estabelecia diferenças entre o filho mais velho e o mais novo:
O mais velho diziam os antigos árias foi gerado para o cumprimento
do dever para com os antepassados; os outros nasceram por amor. Em
virtude dessa superioridade original, o mais velho tinha o privilégio, depois da
morte do pai, de presidir a todas as cerimônias do culto doméstico; oferecia o
banquete fúnebre, e que pronunciava as fórmulas das orações porque o
direito de pronunciar as orações pertence ao filho que veio ao mundo por
primeiro. O mais velho, portanto, era o herdeiro dos hinos, o continuador
do culto, o chefe religioso da família. Dessa crença originou-se uma regra de
direito: somente o mais velho podia herdar. Assim o afirmava um velho texto,
que o último redator das Leis de Manu inseriu ainda em seu código: O mais
velho toma posse de todo o patrimônio, e os outros irmãos vivem sob sua
autoridade, como viviam sob a autoridade paterna. O filho mais velho é que
solve a dívida dos vivos para com os antepassados, e portanto deve herdar tudo
(1).
O direito grego originou-se das mesmas crenças religiosas que o direito hindu;
não nos devemos portanto admirar ao encontrar nele também, em sua origem,
o direito de primogenitura. Em Esparta, as divisões da propriedade a princípio
estabelecidas eram indivisíveis, e o irmão mais novo não tinha parte alguma.
O mesmo acontecia em muitas das antigas legislações que Aristóteles havia
estudado; com efeito, ele nos diz que a lei de Tebas prescrevia de maneira
absoluta que o número dos lotes de terra permanecesse inalterado, o que
excluía certamente a partilha entre irmãos. Uma antiga lei de Corinto exigia
também que o número de famílias permanecesse invariável, o que só se podia
conseguir se o direito de primogenitura impedisse as famílias de se
desmembrarem em cada geração(2).
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Não vamos esperar que entre os atenienses essa velha instituição ainda
estivesse em vigor nos tempos de Demóstenes; mas subsistia ainda nessa
época o que se chamava de privilégio da primogenitura(3). Consistia, parece,
em conservar o primogênito para si, além da partilha usual, a casa paterna,
vantagem materialmente considerável, porque esta incluía o antigo lar da
família. Enquanto o irmão mais novo, nos tempos de Demóstenes, devia
acender um novo lar, o mais velho, na verdade, o único herdeiro, continuava
na posse do lar paterno e do túmulo dos antepassados; assim, ele era o único a
guardar o nome da família(4). Eram os vestígios de tempos em que havia um
só patrimônio.
Pode-se notar, contudo, que a iniqüidade do direito de primogenitura, além de
não ferir os espíritos sobre os quais a religião imperava, era contrabalançado
por muitos costumes dos antigos. Às vezes o irmão mais novo era adotado por
outra família, da qual tornava-se herdeiro; outras vezes casava-se com uma
filha única; outras, ainda, recebia a porção de terra que era patrimônio de
antiga família. Na falta de todos esses recursos, os irmãos mais novos eram
mandados para as colônias.
Quanto a Roma, não encontramos nenhuma lei que se refira ao direito de
primogenitura. Mas nem por isso devemos concluir que não fosse conhecido
na Itália. Pode haver desaparecido, juntamente com sua lembrança. O que nos
permite acreditar que além dos tempos que conhecemos tenha estado em
vigor, é que a existência da gens romana e sabina não se poderia explicar sem
ele. Como uma família poderia chegar a contar com vários milhares de
pessoas livres, como a família Cláudia, ou várias centenas de combatentes,
todos patrícios, como a família Fábia, se o direito de primogenitura não
houvesse conservado a unidade durante uma longa série de gerações, e não a
houvesse aumentado durante séculos, impedindo-a de se esfacelar? Esse velho
direito de primogenitura se prova por suas conseqüências, e, por assim dizer,
por suas obras.
Por outro lado, é necessário entender que o direito de primogenitura não era a
espoliação dos irmãos mais novos em proveito do mais velho. O código de
Manu esclarece-lhe o sentido quando ordena que o mais velho tenha para
com os irmãos menores o afeto de um pai por seus filhos, e que estes, por sua
vez, o respeitem como pai. Segundo o pensamento desses tempos antigos,
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o direito de primogenitura implicava sempre a vida em comum. No fundo não
era nada mais que o gozo de bens comuns para todos os irmãos, sob a
autoridade do mais velho. Representava tanto a indivisão do patrimônio
quanto a indivisão da família. É nesse sentido que podemos crer que esteve
em vigor no mais antigo direito de Roma, ou, pelo menos, nos costumes,
tornando-se a origem da gens romana(5).
CAPÍTULO VIII
A AUTORIDADE NA FAMÍLIA
1.° Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos
A família não recebeu suas leis da cidade. Se a cidade houvesse estabelecido o
direito privado, é provável que teria feito tudo diferente do que vimos até
agora. Teria regulamentado, de acordo com outros princípios, o direito de
propriedade e o direito de sucessão, porque não tinha interesse em que a terra
fosse inalienável e o patrimônio indivisível. A lei que permite que o pai venda
ou tire a vida ao filho, lei que encontramos tanto na Grécia como em Roma,
não foi imaginada pela cidade. A cidade teria antes dito ao pai: A vida de tua
mulher e de teu filho não te pertence mais que sua liberdade; eu as protegerei,
mesmo contra ti. Eles não serão julgados por ti, que haverás de matá-los caso
falhem; eu serei seu juiz. Se a cidade não fala desse modo, aparentemente,
é porque não pode fazê-lo. O direito privado existiu antes dela. Quando
começou a escrever suas leis, encontrou esse direito já estabelecido, vivo,
enraizado nos costumes, fortalecido pela adesão universal. Ela o aceitou, não
podendo agir de outra maneira, e não ousando modificá-lo, senão com o
correr do tempo. O antigo direito não é obra de um legislador; pelo contrário,
foi imposto ao legislador. Nasceu na família. Surgiu espontaneamente, e já
formado, dos antigos princípios que a constituíam. É a decorrência natural de
crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos,
e que exerciam império sobre as inteligências e as vontades.
Uma família compõe-se de um pai, de uma mãe, de filhos e de escravos. Esse
grupo, por pequeno que seja, deve ter uma disciplina. A quem, portanto,
pertencerá essa autoridade primitiva? Ao pai? Não. Em casa há algo que está
acima do próprio pai: é a religião doméstica, é esse deus que os gregos
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chamam de lar-chefe, estia despoina, e que os latinos denominam lar familiae
pater(1). Nessa divindade interior, ou, o que dá no mesmo, na crença que está
na alma humana, reside a autoridade menos discutível. É ela que vai fixar os
graus na família.
O pai é o primeiro junto ao lar: ele o alumia e conserva; é seu pontífice. Em
todos os atos religiosos, ele exerce a mais alta função; degola a vítima; sua
boca pronuncia a fórmula de oração, que deve atrair para si e para os seus a
proteção dos deuses. A família e o culto se perpetuam por seu intermédio;
representa, sozinho, toda a série dos descendentes. Sobre ele repousa o culto
doméstico; quase pode dizer como o hindu: Eu sou o deus. Quando a
morte chegar, será um ser divino, que os descendentes invocarão.
A religião não coloca a mulher em posição tão elevada. É verdade que ela
toma parte em todos os atos religiosos, mas ela não é a senhora do lar. Sua
religião não lhe vem do nascimento; nela foi iniciada somente por ocasião do
casamento; ela aprendeu do marido a prece que pronuncia. Não representa os
antepassados, porque não descende deles. Não se tornará um deles, porque,
sepultada, não receberá nenhum culto especial. Na morte, como na vida, ela
não é considerada mais que um membro do esposo.
O direito grego, o direito romano, o direito hindu, que se originam dessas
crenças religiosas, todos concordam em considerar a mulher como menor.
Jamais pode ter seu próprio lar, jamais será chefe de um culto. Em Roma
recebe o título de mater familias, mas perde-o por morte do marido(2). Não
tendo nunca um lar que lhe pertença, nada possui que lhe dê autoridade na
casa. Jamais dá ordens, jamais é livre, ou senhora de si mesma, sui juris.
Sempre está ao lado do lar de outro, repetindo a oração de outro; para todos os
atos da vida religiosa é-lhe necessário um chefe, e para todos os atos da vida
civil um tutor.
A lei de Manu diz: A mulher, durante a infância, depende do pai; durante a
juventude, do marido; por morte do marido, depende dos filhos; se não tem
filhos, depende dos parentes próximos do marido, porque uma mulher jamais
se deve governar à sua vontade(3). As leis gregas e romanas dizem o
mesmo. Filha, é submetida ao pai; morto o pai, fica submissa aos irmãos e aos
agnados(4); casada, fica sob a tutela do marido; morto o marido, não volta
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para a própria família, porque renunciou para sempre a ela com o casamento
sagrado(5); a viúva continua submissa à tutela dos agnados do marido, isto é,
a seus próprios filhos, se os tem(6), ou, caso contrário, dos parentes mais
próximos(7). O marido tem tal autoridade sobre ela, que pode, antes de
morrer, designar-lhe um tutor, ou mesmo escolher-lhe novo marido(8).
Para assinalar o poder do marido sobre a mulher, os romanos tinham uma
expressão mui antiga, que seus jurisconsultos nos conservaram; é a palavra
manus. Não é fácil descobrir-lhe o sentido primitivo. Os comentadores têm-na
como expressão da força material, como se a mulher estivesse colocada sob a
mão brutal do marido. É bem provável que estejam enganados. O poder do
marido sobre a mulher não resultava absolutamente da maior força do
primeiro. Derivava, como todo direito privado, das crenças religiosas, que
colocam o homem acima da mulher. O que o prova é que a mulher, que não se
havia casado de acordo com os ritos sagrados, e que, por conseqüência, não
estava associada ao culto, não estava submetida ao poder marital(9). O
casamento é que constituía a subordinação e, ao mesmo tempo, a dignidade da
mulher. Tanto é verdade, que não foi o direito do mais forte que constituiu a
família!
Passemos à criança. Aqui a natureza fala por si mesma bastante alto; ela quer
que a criança tenha um protetor, um guia, um mestre. A religião está de
acordo com a natureza; ela afirma que o pai será o chefe do culto, e que o
filho deverá somente ajudá-lo em suas funções sagradas. Mas a natureza não
exige essa subordinação senão durante certo número de anos; a religião exige
mais. A natureza dá ao filho uma maioridade, que a religião não lhe concede.
De acordo com antigos princípios, o lar é indivisível, e a propriedade é como
ele; os irmãos não se separam pela morte do pai; com muito mais razão não se
podem separar dele durante a vida. No rigor do direito primitivo, os filhos
continuam unidos ao lar paterno, e, por conseqüência, submetidos à sua
autoridade; enquanto ele viver, são considerados menores.
Compreende-se que essa regra não pôde durar senão enquanto a velha religião
doméstica estava em pleno vigor. Essa sujeição sem-fim do filho ao pai,
desaparece e bem cedo em Atenas. Em Roma, a velha regra foi
escrupulosamente conservada; o filho jamais pôde manter um lar particular
durante a vida do pai; mesmo casado, mesmo tendo filhos, ficava sob a tutela
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paterna(10).
Além disso, com o poder paternal dava-se o mesmo que com o poder marital:
tinha por princípio e por condição o culto doméstico. O filho nascido do
concubinato não estava colocado sob a autoridade do pai. Entre o pai e ele não
existia comunidade religiosa; não havia, portanto, nada que conferisse a um
autoridade, e que ordenasse a outro obediência. A paternidade por si só não
era suficiente para conferir direitos ao pai.
Graças à religião doméstica, a família era um pequeno corpo organizado, uma
pequena sociedade, que tinha seu chefe e seu governo. Nada, em nossa
sociedade moderna, pode dar-nos idéia desse poder paternal. Nesses tempos
antigos, o pai não é somente o homem forte que protege, e que tem também
poder para se fazer obedecer: ele é sacerdote, é o herdeiro do lar, e
continuador dos antepassados, o tronco dos descendentes, o depositário dos
ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração. Toda a religião
reside nele.
O próprio nome por que é chamado, pater, traz em si curiosos ensinamentos.
A palavra é a mesma em grego, em latim e em sânscrito; donde podemos
concluir que essa palavra data de um tempo em que os antepassados dos
helenos, dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central. Qual
era seu sentido, e que idéia representava então no espírito dos homens?
Podemos conhecê-la porque ela guardou esse significado primitivo nas
fórmulas da língua religiosa e nas do vocabulário jurídico. Quando os antigos,
invocando a Júpiter, chamavam-no pater hominum Deorumque, não queriam
dizer que Júpiter fosse o pai dos deuses e dos homens, porque jamais o
consideraram como tal, e criam, ao contrário, que o gênero humano existiu
antes dele. O mesmo título de pater foi dado a Netuno, a Apolo, a Baco, a
Vulcano, a Plutão, que os homens certamente não consideravam como pais
(11); assim o título de mater aplicava-se a Diana, a Minerva, a Vesta, que
eram consideradas deusas virgens. Do mesmo modo, na língua jurídica o
título de pater, ou pater familias, podia ser dado a um homem que não tivesse
filhos, que não fosse casado, e que não estava nem mesmo em idade de
contrair casamento(12). A idéia de paternidade, portanto, não se ligava a essa
palavra. A velha língua tinha outra, que designava propriamente o pai, e que,
tão antiga quanto pater, encontra-se, como ela, nas línguas dos gregos, dos
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romanos, dos hindus (gânitar, ghennetér, genitor). A palavra pater tinha outro
sentido. Na língua religiosa, aplicava-se a todos os deuses; na língua do
direito, a todo homem que não dependesse de outro, e que tinha autoridade
sobre uma família ou sobre um domínio: pater familias. Os poetas nos
mostram que a empregavam a respeito de todos quantos queriam honrar. O
escravo e o cliente davam-no ao mestre. Era sinônimo dos vocábulos rex,
anax, basileus. Continha em si, não a idéia de paternidade, mas a de poder, de
autoridade, de dignidade majestosa.
Que tal palavra se tenha aplicado ao pai de família, até poder tornar-se aos
poucos seu nome mais comum, é certamente fato bem significativo, e que
parecerá grave a quem quer que deseje conhecer as antigas instituições. A
história dessa palavra nos bastará para dar idéia do poder que o pai exerceu
por muito tempo na família, e do sentimento de veneração que se ligava a ele,
como a pontífice e soberano.
2.° Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno
As leis gregas e romanas reconheceram ao pai esse poder ilimitado, do qual a
religião o revestira a princípio. Os vários e numerosos direitos que as leis lhe
conferiram podem ser catalogados em três categorias, segundo se considera o
pai de família como chefe religioso, como senhor da propriedade ou como
juiz.
I. O pai é o chefe supremo da religião doméstica; dirige todas as cerimônias
do culto como bem entende, ou antes, como vira fazer seu pai. Ninguém na
família lhe contesta a supremacia sacerdotal. A própria cidade, e seus
pontífices, nada podem mudar em seu culto. Como sacerdote do lar, não
reconhece nenhum superior.
A título de chefe religioso, ele é o responsável pela perpetuidade do culto, e,
por conseqüência, pela perpetuidade da família. Tudo o que se relaciona com
essa perpetuidade, que é seu primeiro cuidado e seu primeiro dever, depende
apenas dele. Daí deriva uma série de direitos:
Direito de reconhecer a criança no ato do nascimento, ou de rejeitá-la. Esse
direito é atribuído ao pai tanto pelas leis gregas(1), quanto pelas leis romanas.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Por mais bárbaro que seja, não está em contradição com os princípios básicos
da família. A filiação, mesmo incontestada, não basta para ingressar no
círculo da família; é necessário o consentimento do chefe, e a iniciação ao
culto. Enquanto a criança não for associada à religião doméstica, nada
representa para o pai.
Direito de repudiar a mulher, quer em caso de esterilidade, porque a família
não se deve extinguir; quer em caso de adultério, porque a família e a
descendência devem ficar isentas de toda e qualquer alteração.
Direito de casar a filha, isto é, de ceder a outro o poder que tem sobre ela.
Direito de casar o filho: o casamento do filho interessa à perpetuação da
família.
Direito de emancipar, isto é, de excluir um filho da família e do culto. Direito
de adotar, isto é, de introduzir um estranho junto ao lar doméstico.
Direito de designar, ao morrer, um tutor para a mulher e os filhos.
É necessário notar que todos esses direitos eram atribuídos somente ao pai,
com exclusão de todos os outros membros da família. A mulher não tinha o
direito de divorciar, pelo menos nas épocas mais antigas. Mesmo quando
viúva, não podia nem emancipar, nem adotar. Jamais podia ser tutora, mesmo
de seus filhos. Em caso de divórcio, os filhos ficavam com o pai, assim como
as filhas. Jamais tinha os filhos sob seu poder. Para o casamento da filha, não
lhe pediam seu consentimento(2).
II. Vimos acima que a propriedade não havia sido concebida, a princípio,
como um direito individual, mas como direito de família. A fortuna pertencia,
como diz formalmente Platão, e como dizem implicitamente todos os antigos
legisladores, aos antepassados e descendentes. Essa propriedade, por sua
própria natureza, era indivisível. Em cada família não podia haver mais de um
proprietário, que era a própria família, nem mais de um usufrutuário, que era o
pai. Esse princípio explica várias disposições do direito antigo.
Como a propriedade era indivisível, e repousava por completo sobre a cabeça
do pai. nem a mulher, nem o filho tinham nada de próprio. O regime dotal era
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
então desconhecido, e teria sido impraticável. O dote da mulher pertencia sem
reserva ao marido, que exercia sobre os bens dotais não somente direitos de
administrador, mas de proprietário. Tudo o que a mulher podia adquirir
durante o casamento caía nas mãos do marido. Mesmo tornando-se viúva, não
readquiria direitos sobre seu próprio dote(3).
O filho estava nas mesmas condições que a mulher: não possuía coisa alguma.
Nenhuma doação feita por ele era válida, pela mesma razão que nada possuía
de próprio. Não podia adquirir coisa alguma; os frutos de seu trabalho, os
lucros de seu comércio eram devidos ao pai. Se um testamento era feito em
seu favor por algum estranho, o pai, e não ele, recebia o legado. Por aí se
explica o texto do direito romano que proíbe qualquer contrato de venda entre
pai e filho. Se o pai vendesse algo ao filho, vendia para si mesmo, porque o
filho só podia adquirir por intermédio do pai(4).
Vemos no direito romano, e o encontramos nas leis de Atenas, que o pai podia
vender o filho(5). É que o pai podia dispor de toda a propriedade que estava
na família, e o próprio filho podia ser considerado como simples propriedade
do pai, pois seus braços e seu trabalho eram fonte de renda. O pai, portanto,
podia, de acordo com sua vontade, guardar para si mesmo esse instrumento de
trabalho, ou cedê-lo a outro. Cedê-lo era o que se chamava vender o filho. Os
textos que possuímos do direito romano não nos esclarecem devidamente
sobre a natureza desse contrato de venda, e sobre as reservas que nele podiam
estar contidas. Parece certo que o filho assim vendido não se tornava por
completo escravo do comprador. O pai podia estipular no contrato que o filho
lhe seria revendido. Guardava, portanto, seu poder sobre ele, e, depois de
recebê-lo de volta, podia tornar a vendê-lo(6). A lei das Doze Tábuas
autorizou essa operação até três vezes, declarando, porém, que depois dessa
tríplice venda o filho seria enfim liberto do poder paternal(7). Por aí se pode
julgar como, no direito antigo, a autoridade do pai era absoluta(8).
III. Plutarco nos informa que em Roma as mulheres não podiam comparecer
perante a justiça, mesmo como testemunhas(9). Lemos no jurisconsulto Gaio:
É necessário que se saiba que não se pode ceder, nada em justiça às pessoas
que estão sob poder de outras, isto é, à mulher, ao filho, ao escravo. Porque,
desde que essas pessoas nada podiam possuir de próprio, concluiu-se com
razão que igualmente nada podiam reivindicar em justiça. Se vosso filho,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
submetido a vosso poder, cometeu um crime, a ação em justiça é movida
contra vós. O crime cometido por um filho contra o pai não dá lugar a
nenhuma ação em justiça(10). De tudo isso resulta claramente que mulher
e filho não podiam ser nem demandistas, nem defensores, nem acusadores,
nem acusados, nem testemunhas. De toda a família, apenas o pai podia
apresentar-se diante do tribunal da cidade; a justiça pública não existia senão
para ele. Desse modo, o pai ficava responsável pelos delitos cometidos pelos
seus.
Se a justiça, para o filho e a mulher, não estava na cidade, é porque ela estava
no lar. Seu juiz era o chefe da família, sentado como que num tribunal, em
virtude de sua autoridade conjugal ou paterna, em nome da família e sob os
olhos das divindades domésticas(11).
Tito Lívio conta que o senado, desejando extirpar de Roma as bacanais,
decretou a pena de morte contra todos os que delas participassem. O decreto
foi facilmente executado no que respeita aos cidadãos. Mas a respeito das
mulheres, que não eram as menos culpadas, surgiu grave dificuldade: as
mulheres não eram condenáveis pelo estado; somente a família tinha o direito
de julgá-las. O senado respeitou esse velho princípio, e deixou aos maridos e
aos pais o encargo de pronunciar contra as mulheres a sentença de morte(12).
Esse direito de justiça, que o chefe de família exercia na casa, era completo e
sem apelação. Podia condenar à morte, como fazia o magistrado na cidade;
nenhuma autoridade tinha direito de modificar sua sentença. O marido
diz Catão, o Antigo é juiz da mulher; seu poder não tem limites; pode o
que quer. Se ela cometeu alguma falta, ele a castiga; se bebeu vinho, ele a
condena; se teve relações com outro homem, ele a mata. O direito era o
mesmo a respeito dos filhos. Valério Máximo cita certo Atílio, que matou a
filha culpada de impudicícia, e todo mundo conhece aquele pai que matou o
filho, cúmplice de Catilina(13).
Fatos dessa natureza são numerosos na história romana. Seria formar-se idéia
falsa pensar que o pai tinha o direito absoluto de matar mulher e filhos. Ele
era o juiz. Se condenava à morte, fazia-o apenas em virtude de seu direito de
justiça. Como o pai de família submetia-se apenas ao julgamento da cidade, a
mulher e o filho não podiam encontrar outro juiz além dele. No seio da
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
família ele era o único magistrado.
É necessário, além do mais, notar que a autoridade paterna não era um poder
arbitrário, como o seria aquele que derivava do direito do mais forte. Ela tinha
seu princípio nas crenças que estavam no fundo das almas, e encontrava seus
limites nessas mesmas crenças. Por exemplo, o pai tinha direito de excluir o
filho da família, mas sabia que, se o fizesse, a família correria o risco de se
extinguir, e os manes de seus antepassados cairiam no eterno esquecimento.
Tinha o direito de adotar estranhos, mas a religião proibia-lhe fazê-lo, se
tivesse filhos. Era proprietário único dos bens, mas não tinha, pelo menos na
origem, o direito de aliená-los. Podia repudiar a mulher, mas para fazê-lo era
necessário que ousasse quebrar o laço religioso que o casamento havia
estabelecido. Assim, a religião impunha ao pai tanto obrigações como direitos.
Foi assim por muito tempo, a família antiga. As crenças que reinavam nos
espíritos bastaram, sem que houvesse necessidade do direito da força ou da
autoridade de um poder social, para constituí-la regularmente, para dar-lhe
disciplina, governo, justiça, e para fixar em todos esses detalhes o direito
privado.
CAPÍTULO IX
A ANTIGA MORAL DA FAMÍLIA
A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições; seu
verdadeiro objeto de estudo é a alma humana; ela deve aspirar a conhecer o
que essa alma acreditou, pensou, sentiu nas diferentes idades da vida do
gênero humano.
No início deste livro mostramos antigas crenças que o homem concebeu sobre
seu destino depois da morte. Dissemos depois como essas crenças deram
origem às instituições domésticas e ao direito privado. Resta procurar qual era
a ação dessas crenças sobre a moral nas sociedades primitivas. Sem pretender
que essa velha religião tenha criado os sentimentos morais no coração do
homem, pode-se pelo menos crer que se tenha unido a eles para fortalecê-los,
para dar-lhes maior autoridade, para assegurar seu império e seu direito de
comando sobre a conduta do homem, e às vezes também para falseá-los.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A religião desses primeiros tempos era exclusivamente doméstica; o mesmo
acontecia com a moral. A religião não dizia ao homem, mostrando-lhe outro
homem: Eis ali teu irmão. Ela lhe dizia: Eis ali um estranho, que não pode
participar dos atos religiosos de teu lar, não pode aproximar-se do túmulo de
tua família; ele tem outros deuses, e não pode unir-se a ti por uma prece
comum; teus deuses rejeitam sua adoração, e o encaram como inimigo; ele é
também teu inimigo.
Nessa religião do lar, o homem jamais reza à divindade em favor dos outros
homens; ele não a invoca senão para si e para os seus. Um provérbio grego
ficou como lembrança e vestígio desse antigo isolamento do homem na
oração. Nos tempos de Plutarco, dizia-se ainda ao egoísta: Sacrificas ao lar
(1). Isso significava: Tu te afastas de teus concidadãos; não tens amigos;
teus semelhantes nada significavam para ti; não vives senão para ti e para os
teus. Esse provérbio era o indício de um tempo em que, gravitando toda a
religião ao redor do lar, o horizonte da moral e do afeto não chegava a
ultrapassar os estreitos limites da família.
É natural que a idéia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a
idéia religiosa. O Deus das primeiras gerações, nessa raça, era bem
mesquinho; pouco a pouco os homens tornaram-no maior; assim a moral, a
princípio muito restrita e incompleta, alargou-se insensivelmente, até que, de
progresso em progresso, chegou a proclamar o dever do amor para com todos
os homens. Seu ponto de partida foi a família, e foi sob a ação das crenças da
religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem.
Imaginemos essa religião do lar e do túmulo na época de seu pleno vigor. O
homem vê bem perto de si a divindade. Ela está presente, como a própria
consciência, a todas as suas mínimas ações. Essa criatura frágil, encontra-se
sob os olhos de uma testemunha que não a abandona. Ele não se sente jamais
só. A seu lado, em sua casa, em seu campo, tem protetores para ampará-lo nos
labores da vida, e juízes para punir suas ações delituosas. Os lares
dizem os romanos são divindades temíveis, encarregadas de castigar os
homens, e de velar sobre tudo o que se passa no interior das casas. Os
penates dizem eles ainda são os deuses que nos fazem viver; eles
nutrem nosso corpo e dirigem nossa alma(2).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Era grato aos homens desse tempo dar ao lar o epíteto de casto(3), e
acreditava-se até que o lar ordenava aos homens a observância da castidade.
Nenhum ato material ou moralmente impuro devia ser cometido em sua
presença.
As primeiras idéias de falta, de castigo, de expiação parecem ter aí a sua
origem. O homem que se sente culpado não pode mais aproximar-se do lar;
seu deus o repele. Para quem quer que haja derramado sangue não há mais
sacrifício possível, nem libação, nem prece, nem banquete fúnebre. O deus é
tão severo, que não admite desculpas; não distingue entre morte involuntária e
crime premeditado. A mão manchada de sangue não pode mais tocar os
objetos sagrados(4). Para que o homem possa retomar seu culto, e voltar à
posse de seu deus, é necessário pelo menos que se purifique por uma
cerimônia expiatória(5). Essa religião conhece a misericórdia; possui ritos
capazes de limpar as impurezas da alma; por mais acanhada e grosseira que
seja, ela sabe consolar o homem por suas próprias faltas.
Se ela ignora de modo absoluto os deveres de caridade, pelo menos traça ao
homem, com admirável nitidez, seus deveres de família. Torna o casamento
obrigatório; o celibato é um crime aos olhos de uma religião que faz da
continuidade da família o primeiro e mais santo dos deveres. Mas a união que
prescreve não pode realizar-se senão na presença das divindades domésticas; é
a união religiosa, sagrada, indissolúvel, do esposo e da esposa. Não se julgue
o homem autorizado a deixar de lado os ritos, e a fazer do casamento um
simples contrato consensual, como aconteceu no fim das sociedades grega e
romana. A antiga religião lho proíbe, e, se ousar fazê-lo, ela o castiga, porque
o filho que vier a nascer dessa união é considerado bastardo, isto é, uma
criatura que não tem lugar no lar, não tem o direito de realizar nenhum ato
sagrado, não pode orar(6).
Essa mesma religião vela com cuidado sobre a pureza da família. A seus
olhos, a mais grave falta que possa ser cometida é o adultério, porque a
primeira regra do culto é que o lar se transmite de pai para filho; ora, o
adúltero perturba a ordem do nascimento. Outra regra é que o túmulo não
encerra senão os membros da família; ora, o filho do adultério é um estranho,
que será enterrado nesse túmulo. Todos os princípios da religião são violados,
o culto é maculado, o lar se torna impuro, cada oferta ao túmulo transforma-se
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
em simples ato de impiedade. Há mais: pelo adultério a série dos
descendentes fica rompida; a família, mesmo sem que os homens vivos o
saibam, está extinta, e não há mais felicidade divina para os antepassados.
Assim diz o hindu: O filho do adultério aniquila nesta vida e na outra as
ofertas dedicadas aos manes(7).
Eis por que as leis da Grécia e de Roma dão ao pai o direito de rejeitar a
criança que acaba de nascer. Eis também por que elas são tão rigorosas, tão
inexoráveis para o adultério. Em Atenas permite-se ao marido matar o
culpado. Em Roma, o marido julga a mulher, e a condena à morte. Essa
religião era tão severa, que o homem nem mesmo tinha o direito de perdoar
completamente, sendo, no mínimo, forçado a repudiar a mulher(8).
Eis aí, pois, as primeiras leis da moral doméstica conhecidas e confirmadas.
Eis aí, além do sentimento natural, uma religião imperiosa, que diz ao homem
e à mulher que eles estão unidos para sempre, e que dessa união derivam
deveres rigorosos, cujo esquecimento acarretaria as conseqüências mais
graves nesta vida e na outra. Daí se derivou o caráter sagrado e sério da união
conjugal entre os antigos, e a pureza que a família conservou por tanto tempo.
Essa moral doméstica prescreve ainda outros deveres. Diz à esposa que ela
deve obedecer, e ao marido que deve mandar. Ensina a ambos a se
respeitarem mutuamente. A mulher tem direitos, porque tem seu lugar no lar;
é a encarregada de conservá-lo sempre aceso, e, sobretudo, deve velar pela
sua pureza; invoca-o, e lhe oferece sacrifícios(9). A mulher, portanto, também
tem seu sacerdócio. Sem a presença da mulher, o culto doméstico torna-se
incompleto e insuficiente. É grande desgraça para um grego ter um lar sem
esposa(10). Entre os romanos a presença da mulher é tão necessária no
sacrifício, que o padre perde o sacerdócio ao se tornar viúvo(11).
Pode-se acreditar que é a essa divisão do sacerdócio doméstico que a mãe de
família deve a veneração que jamais deixou de cercá-la nas sociedades grega e
romana. Donde resulta a mulher ostentar na família o mesmo título que o
marido; os latinos dizem pater familias e mater familias; os gregos:
oikodespótes e oikodéspoina; os hindus: grihapati, grihapatni. Daí procede
também esta fórmula, que a mulher pronunciava no casamento romano: Ubi tu
Caius, ego Caia fórmula que nos diz que, se na casa a mulher não tem
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autoridade igual, pelo menos tem igual dignidade(12).
Quanto ao filho, vimo-lo submisso à autoridade de um pai; que pode vendê-lo
e condená-lo à morte. Mas esse filho tem seu papel também no culto; ele
desempenha uma função nas cerimônias religiosas; sua presença em certos
dias, é de tal modo necessária, que o romano que não tem filhos se vê forçado
a adotar um ficticiamente para esses dias, a fim de que os ritos sejam
observados(13). Vede agora que laço poderoso a religião estabelece entre pai
e filho! Acredita-se em uma segunda vida no túmulo, vida feliz e calma, se os
banquetes fúnebres são oferecidos regularmente. Assim o pai está convencido
de que seu destino, depois desta vida dependerá do cuidado que o filho terá de
seu túmulo; e o filho, por sua vez, está convencido de que o pai morto se
tornará um deus, a quem deverá invocar.
Pode-se adivinhar todo o respeito e afeto recíproco que essas crenças
inspiravam na família. Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de
piedade: a obediência do filho ao pai, o amor que dedicava à mãe, eram
piedade: pietas erga parentes; o afeto do pai ao filho, a ternura da mãe, eram
ainda piedade: pietas erga liberos. Tudo era divino na família. Sentimento de
dever, afeição natural, idéia religiosa, tudo se confundia e se exprimia pela
mesma palavra.
Parecerá talvez estranho contar o amor do lar entre as virtudes, e esta era uma
das virtudes dos antigos. Esse sentimento era profundo e poderoso em suas
almas. Vede Anquises, que, à vista de Tróia em chamas, não quer contudo
abandonar a velha casa. Vede Ulisses, a quem oferecem todos os tesouros, até
a imortalidade, e nada deseja, senão rever a chama de seu lar. Avancemos até
Cícero; não é mais um poeta, é um homem de Estado que fala: Aqui está
minha religião, aqui está minha raça, aqui estão as pegadas de meus pais; não
sei que encanto é este que penetra meu coração e meus sentidos(14). É
necessário que nos coloquemos em pensamento entre as mais antigas
gerações, para compreender como esses sentimentos, já enfraquecidos nos
tempos de Cícero, haviam sido vivos e poderosos. Para nós a casa é somente
um domicílio, um abrigo; deixamo-la e nos esquecemos dela sem muito
sacrifício, e, se a amamos, não o fazemos senão pela força do hábito e das
recordações. Porque para nós a religião não está no lar; nosso Deus é o Deus
do universo, e nós o encontramos em toda parte. Entre os antigos não se dava
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
o mesmo: era no interior das casas que encontravam sua principal divindade,
sua providência, aquela que os protegia individualmente, que escutava suas
orações e atendia-lhes os votos. Fora do lar o homem não sentia mais deus; o
deus do vizinho era um deus hostil. O homem amava então a casa como agora
ama a igreja(15).
Destarte as crenças das primeiras idades não ficaram estranhas ao
desenvolvimento moral dessa parte da humanidade. Seus deuses prescreviam
a pureza, e proibiam o derramamento de sangue; a noção de justiça, se não se
originou dessa crença, pelo menos se tornou forte por meio dela. Seus deuses
pertenciam em comum a todos os membros de uma mesma família; a família
se encontra assim unida por forte laço, e todos seus membros aprenderam a se
respeitar e amar uns aos outros. Os deuses viviam no interior de cada casa: o
homem, portanto, amava a própria casa, morada fixa e duradoura, que herdara
dos antepassados, e que legaria aos filhos como um santuário.
A antiga moral, pautada por essas crenças, ignorava a caridade, mas, pelo
menos, ensinava as virtudes domésticas. O isolamento da família foi, entre
essas raças, o início da moral. Então os deveres apareceram claros, precisos,
imperiosos, mas confinados a um círculo restrito. E não nos devemos
esquecer, na continuação deste livro, desse caráter restrito da moral primitiva,
porque a sociedade civil, fundada mais tarde sobre idênticos princípios,
revestiu-se dos mesmos caracteres, e muitos traços singulares da antiga
política terão nela sua explicação(16).
CAPÍTULO X
A GENS EM ROMA E NA GRÉCIA
Encontramos entre os jurisconsultos romanos e os escritores gregos os traços
de uma antiga instituição, que parece ter tido grande vigor na primeira idade
das sociedades modernas grega e italiana, mas que, com seu paulatino
enfraquecimento, não deixou senão vestígios apenas perceptíveis na última
parte de sua história. Queremos falar do que os latinos chamavam de gens e os
gregos ghénos.
Muito se discutiu sobre a natureza e a constituição da gens. Talvez não seja
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
inútil esclarecer, antes de mais nada, o que constitui a dificuldade do
problema.
A gens, como veremos adiante, formava um corpo, cuja constituição era
puramente aristocrática; é graças à sua organização interior que os patrícios de
Roma e os eupátridas de Atenas perpetuaram por muito tempo seus
privilégios. Quando o partido popular subiu ao poder, não deixou de combater
com todas as forças essa velha instituição. Se conseguisse aniquilá-la por
completo, é provável que não nos restaria dela a menor lembrança. Mas estava
tão singularmente viva e enraizada nos costumes, que não se conseguiu fazêla
desaparecer inteiramente. Contentaram-se então em modificá-la, tiraramlhe
o que constituía seu caráter essencial, e não ficaram senão suas formas
exteriores, que não prejudicavam em nada o novo regime. Assim, em Roma,
os plebeus imaginaram formar gentes, à imitação dos patrícios; em Atenas,
tentou-se alterar os ghéne, fundindo-os entre si, e substituindo-os pelos
demos, estabelecidos à sua semelhança. Explicaremos esses fatos quando
falarmos das revoluções. Baste-nos agora notar aqui que essa alteração
profunda, introduzida pela democracia no regime da gens, é de natureza a
confundir aqueles que desejam conhecer sua primitiva constituição. Com
efeito, quase todos os comentários que chegaram até nós datam da época em
que ela se transformou, e não nos mostram das mesmas senão o que as
revoluções deixaram subsistir.
Suponhamos que, em vinte séculos, todo o conhecimento da Idade Média
desaparecesse, e que não restasse nenhum documento sobre o que precedeu a
revolução de 1789, e que, no entanto, um historiador desse tempo quisesse
fazer idéia das instituições anteriores. Os únicos documentos que terá em
mãos mostrarão a nobreza do século décimo nono, isto é, algo muito diferente
do regime feudal. Mas o historiador haveria de imaginar que nesse intervalo
dera-se uma grande revolução, e concluiria, com razão, que essa instituição,
como todas as outras, deve ter-se transformado; a nobreza que os textos lhe
mostrariam, não seria para ele mais que a imagem ou sombra, muito alterada,
de outra nobreza incomparavelmente mais poderosa. Depois, examinando
com atenção os escassos restos dos antigos documentos, algumas expressões
lingüísticas, alguns termos escapados à lei, vagas lembranças ou queixas
estéreis, chegaria talvez a adivinhar alguma coisa do regime feudal, e
conseguiria fazer das instituições da Idade Média uma idéia que não ficaria
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
muito distante da verdade. A dificuldade seria realmente grande, e não é
menor para o historiador de hoje, desejoso de conhecer antiga gens, porque
não há outros ensinamentos a respeito além daqueles que datam de uma época
em que ela não era mais que a sombra de si mesma.
Começaremos por analisar tudo o que os escritores antigos nos dizem a
respeito da gens, isto é, o que subsistia dela na época em que já estava muito
modificada. Depois, com o auxílio desses elementos, tentaremos entrever o
verdadeiro regime da antiga gens.
1.° O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens
Se abrirmos a história romana no tempo das guerras púnicas, encontraremos
três personagens, que se chamam Claudius Pulcher, Claudius Nero e Claudius
Centho. Todos pertencem à mesma gens, a gens Cláudia.
Demóstenes, em um de seus discursos, apresenta cinco testemunhas que
afirmam pertencer ao mesmo ghénos, o dos brítidas. O que se deve notar neste
exemplo é que os sete personagens citados como membros do mesmo ghénos
achavam-se inscritos em seis demos diferentes; isso demonstra que o ghénos
não correspondia exatamente ao demo, e não constituía, como este, uma
simples divisão administrativa(1).
Eis, portanto, provado um primeiro fato: havia gentes em Roma e em Atenas.
Poderíamos citar exemplos relativos a muitas outras cidades da Grécia e da
Itália, e concluir que, de acordo com toda verossimilhança, essa instituição era
universal entre os povos antigos.
Cada gens tinha um culto especial. Na Grécia reconheciam-se os membros de
uma mesma gens pela identidade dos sacrifícios comuns desde época
bastante remota(2). Plutarco menciona o lugar dos sacrifícios da gens dos
Licomedos, e Ésquino fala do altar da gens dos Butados(3).
Também em Roma cada gens tinha atos religiosos a cumprir; o dia, o lugar, os
ritos, eram fixados por sua religião particular(4). O Capitólio é bloqueado
pelos gauleses; surge um Fábio, e atravessa as linhas inimigas, vestindo o
hábito religioso, e carregando objetos sagrados; ele vai oferecer o sacrifício
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
sobre o altar de sua gens, que está situado sobre o Quirinal. Durante a segunda
guerra púnica, outro Fábio, a quem chamavam de broquel de Roma, enfrenta
Aníbal; é fora de dúvida que a república tem grande necessidade de que não
abandone o exército; contudo, ele o deixa nas mãos do imprudente Minúcio,
porque chegara o dia do aniversário de sua gens, e é necessário que corra a
Roma para realizar o ato sagrado(5).
O culto devia ser perpetuado de geração em geração; era dever de cada um
deixar filhos para continuá-los. Um inimigo pessoal de Cícero, Cláudio,
abandona sua gens para entrar em uma família plebéia; Cícero lhe diz: Por
que expões a religião da gens Cláudia, a se extinguir por tua causa(6)?
Os deuses da gens, dii gentiles, não protegiam senão a ela, e não queriam ser
invocados senão por ela. Nenhum estranho podia ser admitido às cerimônias
religiosas. Acreditava-se que, se um estranho recebia parte da vítima, ou
apenas assistia ao sacrifício, os deuses da gens ficavam ofendidos, e todos
seus membros estavam sob a ameaça de uma grave impiedade.
Assim como cada gens tinha seu culto e suas festas religiosas, possuía
também seu túmulo comum. Lemos em um discurso de Demóstenes: Este
homem, tendo perdido os filhos, enterrou-os no túmulo de seus pais, túmulo
comum a todos os de sua gens. A continuação do discurso mostra que
nenhum estranho podia ser enterrado no mesmo túmulo. Em outro discurso, o
mesmo orador fala de um túmulo onde a gens dos Busélidas enterra seus
membros, e onde celebra cada ano um sacrifício fúnebre: Esse lugar da
sepultura é um campo bastante vasto, cercado por um muro, de acordo com
antigo costume(7).
O mesmo acontecia entre os romanos. Veléio fala do túmulo da gens
Quintília, e Suetônio nos diz que a gens Cláudia tinha o seu túmulo na encosta
do monte Capitolino(8).
O antigo direito de Roma considera os membros de uma gens como aptos a
herdar uns dos outros. As Doze Tábuas afirmam que, na falta de filhos e de
agnados, o gentilis é o herdeiro natural. Nessa legislação, o gentilis é,
portanto, parente mais próximo que o cognado, isto é, mais próximo que o
parente pela parte das mulheres(9).
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Nada está mais estreitamente unido que os membros de uma gens. Unidos na
celebração das mesmas cerimônias sagradas, eles se ajudam mutuamente em
todas as necessidades da vida. Toda a gens responde pela dívida de qualquer
de seus membros; resgata os prisioneiros, e paga a multa dos condenados. Se
um dos seus se torna magistrado, ela se cotiza para pagar as despesas que
acarreta toda magistratura(10).
O acusado faz-se acompanhar ao tribunal por todos os membros de sua gens:
isso marca a solidariedade que a lei estabelece entre o homem e o corpo de
que faz parte. É ato contrário à religião queixar-se contra um homem de sua
gens, ou mesmo prestar testemunho contra ele. Um Cláudio, personagem
considerável, era inimigo pessoal de Ápio Cláudio, o decênviro; quando este
foi citado em justiça, e ameaçado de morte, Cláudio apresentou-se para
defendê-lo, e implorou ao povo em seu favor não, porém, sem antes advertir
de que, se dava esse passo, não o fazia por afeto, mas por dever(11).
Se um membro da gens não tinha direito de citar outro perante a justiça da
cidade, é porque na própria gens administrava-se justiça. Cada uma, com
efeito, tinha seu chefe, que era ao mesmo tempo juiz, sacerdote e comandante
militar(12). Sabe-se que quando a família sabina dos Cláudios veio
estabelecer-se em Roma, as três mil pessoas que a compunham obedeciam a
um único chefe. Mais tarde, quando os Fábios tomam sobre os ombros a
guerra contra os Veianos, vemos que essa gens tem um chefe que fala em seu
nome diante do senado, e que a conduz contra o inimigo(13).
Também na Grécia cada gens tinha um chefe; as inscrições no-lo afirmam, e
nos mostram que esse chefe usava geralmente o título de arconte(14). Enfim,
tanto em Roma como na Grécia a gens tinha suas assembléias, promulgava
decretos, aos quais seus membros deviam obedecer, e que eram respeitados
pela própria cidade(15).
Tal é o conjunto de costumes e de leis que encontramos em vigor em épocas
nas quais a gens já se achava enfraquecida e quase desnaturada. São estes os
vestígios dessa antiga instituição(16).
2.° Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana.
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Sobre esse assunto, de há muito entregue à disputa dos eruditos, vários
sistemas têm sido propostos. Uns dizem: a gens não é nada mais que uma
semelhança de nome. Segundo outros, a gens não é senão a expressão de certa
relação entre uma família que exerce o patronado e outras famílias suas
clientes. Cada uma dessas opiniões contém parte da verdade, mas nenhuma
corresponde a toda a série de fatos, de leis e costumes que acabamos de
enumerar.
De acordo com outra teoria, a palavra gens designa uma espécie de parentesco
artificial; a gens é a associação política de várias famílias, que em sua origem
eram estranhas umas às outras; na falta de laços de sangue, a cidade
estabelecera entre elas uma união fictícia, um parentesco convencional.
Mas uma primeira objeção se nos apresenta. Se a gens não é senão uma
associação fictícia, como explicar que seus membros tenham direito de herdar
uns dos outros? Por que o gentilis é preferido ao cognado? Vimos acima as
regras da hereditariedade, e declaramos a relação estrita e necessária que a
religião estabelecera entre o direito de herdar e o parentesco masculino.
Poderemos supor que a antiga lei se afastasse tanto desse princípio, a ponto de
conceder a sucessão aos gentiles, se estes fossem considerados estranhos?
O caráter mais evidente e melhor constatado da gens, é que ela possui culto
próprio, como a família. Ora, se procurarmos qual é o deus adorado por cada
uma, notaremos que é sempre um antepassado divinizado, e que o altar onde
oferece o sacrifício é um túmulo. Em Atenas os Eumólpidas veneram a
Eumolpos, tronco de sua raça; os Fitálidas, adoram ao herói Fitalos; os
Butadas, a Butos; os Busélidas, a Buselos; os Laquiadas, a Laquos; os
Aminandridos, a Cécrops(1). Em Roma, os Cláudios descendem de certo
Clausus; os Cecílios honram como chefe da raça, o herói Céculo; os
Calpúrnios, a Calpo; os Júlios, a um Júlio; os Clélios, a certo Clélio(2).
É verdade que bem podemos crer que muitas dessas genealogias foram
imaginadas mais tarde; mas devemos notar que esse embuste não tem razão de
ser, se não estivesse em constante uso entre as verdadeiras gentes reconhecer
um antepassado comum, e render-lhe culto. A mentira procura sempre imitar
a verdade.
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Aliás, o embuste não seria tão fácil como parece. O culto não era apenas uma
mera formalidade para se exibir. Uma das regras mais rigorosas da religião
era que não se deviam honrar como antepassados senão aqueles dos quais se
descendia realmente; oferecer culto a um estranho, era impiedade grave. Se,
portanto, a gens adorava em comum algum antepassado, é porque acreditava
sinceramente descender dele. Simular um túmulo, inventar aniversários e
banquetes fúnebres, seria mentir no que havia de mais sagrado, seria zombar
da religião. Tal ficção foi possível nos tempos de César, quando a velha
religião das famílias já não impressionava a ninguém. Mas, se nos
reportarmos aos tempos em que essas crenças eram poderosas, não podemos
imaginar que várias famílias, associando-se em uma mesma farsa, tenham dito
entre si: Vamos fingir ter um mesmo antepassado; nós lhes levantaremos um
túmulo, oferecer-lhe-emos banquetes fúnebres, e nossos descendentes o
adorarão pelos tempos afora. Tal pensamento não se devia apresentar aos
espíritos, de onde devia ser expulso como culposo.
Nos problemas difíceis que a história oferece freqüentemente, é bom
perguntar aos termos da língua todos os ensinamentos que ela nos pode dar.
Uma instituição é às vezes explicada pelo vocábulo que a designa. Ora, a
palavra gens exprime exatamente o mesmo que a palavra genus, a ponto de se
poder tomá-las uma pela outra, e dizer indiferentemente gens Fabia ou genus
Fabium(3); ambas correspondem ao verbo gignere, e ao substantivo genitor,
absolutamente como ghénos corresponde a ghennãn e a ghonéus. Todas essas
palavras trazem idéia de filiação. Também os gregos designavam os membros
de um ghonéus pela palavra homogálactes, que significa nutrido pelo mesmo
leite(4). Comparemos todas essas palavras com as que temos o costume de
traduzir por família, o latim familia e o grego õikos. Nem uma, nem outra
contêm em si o sentido de geração ou de parentesco. O verdadeiro significado
de familia é propriedade; designa o campo, a casa, o dinheiro, os escravos, e é
por isso que as Doze Tábuas dizem, falando do herdeiro, familiam nancitor: o
que aceita a sucessão. Quanto a õikos, é claro que não apresenta ao espírito
outra idéia que a de propriedade ou de domicílio. Eis aí contudo os vocábulos
que traduzimos ordinariamente por família. Ora, é admissível que palavras
cujo sentido intrínseco, é domicílio ou propriedade, tenham sido empregadas
tantas vezes para designar a família, e que outras palavras, cujo sentido
interno é filiação, nascimento, paternidade, jamais designassem mais que uma
associação artificial? Certamente isso não é conforme à nitidez e à precisão
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das línguas antigas. É fora de dúvida que gregos e romanos ligavam às
palavras gens e ghénos a idéia de uma origem comum. Essa idéia pode haver
desaparecido quando a gens foi alterada, mas a palavra ficou como
testemunho de sua existência.
O sistema que apresenta a gens como uma associação factícia tem, portanto, a
seu desfavor: 1.° a velha legislação, que dá aos gentiles direito de sucessão; 2.
° as crenças religiosas, que não admitem comunidade de culto senão onde há
comunidade de nascimento; 3.° Os termos da língua, que atestam na gens uma
origem comum. Outro defeito deste sistema é que supõe que as sociedades
humanas puderam começar por uma convenção, por um artifício, o que a
ciência histórica não pode admitir como verdade.
3.° A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua
unidade
Tudo nos apresenta a gens como unida por um laço de origem. Consultemos
ainda a linguagem: os nomes das gentes, tanto na Grécia como em Roma,
todos têm a forma que era usada em ambas as línguas para os nomes
patronímicos. Cláudio significa filho de Clausus, e Butadas filho de Butas.
Os que julgam ver na gens uma associação artificial, partem de uma idéia
falsa. Supõem que uma gens contava sempre várias famílias com nomes
diversos, e citam de bom grado o exemplo da gens Cornélia, que na verdade
teve entre seus membros alguns Cipiões, Lêntulos, Cossus e Silas. Estaria
certo, se tudo corresse sempre assim. A gens Márcia parece não ter tido
jamais senão uma única linhagem; o mesmo acontece com a gens Lucrécia e a
gens Quintília, durante muito tempo. Seria na verdade muito difícil dizer
quais são as famílias que formaram a gens Fábia, porque todos os Fábios
conhecidos na história pertencem manifestamente à mesma estirpe, e de
começo todos levam o mesmo sobrenome Vibulano; trocam-no logo depois
por Ambusto, que mais tarde substituem pelo sobrenome de Máximo ou de
Dorso.
Sabe-se que era costume em Roma que todo patrício tivesse três nomes.
Chamava-se, por exemplo, Públio Cornélio Cipião. Não é inútil saber qual
dessas três palavras era considerada nome verdadeiro. Públio não passava de
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um nome posto na frente, praenomen; Cipião era um nome ajuntado,
agnomen. O verdadeiro nome, nomen, era Cornélio: ora, esse nome era ao
mesmo tempo o nome de toda a gens. Se não tivéssemos acerca da antiga gens
nada mais além desse ensinamento, este só bastaria para afirmar que houve
Cornélios antes que existissem Cipiões, e não, como se costuma dizer, que a
família dos Cipiões se uniu a outras para formar a gens Cornélia.
Com efeito, vemos pela história, que a gens Cornélia foi por muito tempo
indivisa, e que todos seus membros ostentavam igualmente o cognome de
Malugenenses e o de Cossus. Somente no tempo do ditador Camilo é que um
de seus ramos adotou o sobrenome de Cipião; pouco mais tarde, outro ramo
toma o sobrenome de Rufo, substituído depois pelo de Sila. Os Lêntulos não
aparecem senão na época da guerra dos Samnitas, e os Cetegos apenas
durante a segunda guerra púnica. O mesmo acontece com a gens Cláudia. Os
Cláudios ficam por muito tempo unidos em uma única família, e todos levam
o sobrenome de Sabinos ou de Regilenses, sinal de sua origem. Durante sete
gerações não se distinguem ramos nessa família, aliás muito numerosa.
Somente na oitava geração, isto é, nos tempos da primeira guerra púnica, é
que vemos três ramos separarem-se, e adotar sobrenomes que se lhes tornam
hereditários: são os Claudius Pulcher, que continuam por dois séculos; os
Claudius Centho, que não demoram a desaparecer; e os Claudius Nero, que se
perpetuam até os tempos do império.
Disso tudo se conclui que a gens não era uma associação de famílias, mas a
própria família. Podia indiferentemente compreender uma única estirpe, ou
produzir ramos numerosos; mas nunca deixava de ser uma só família.
Todavia, torna-se fácil entender a formação da gens antiga, e de sua natureza,
se nos reportarmos às velhas crenças e instituições que observamos acima.
Reconhecer-se-á mesmo que a gens derivou-se naturalmente da religião
doméstica e do direito privado das antigas idades. Que prescreve, com efeito
essa religião primitiva? Que o antepassado, isto é, o homem que por primeiro
foi sepultado no túmulo familiar, seja honrado perpetuamente como deus, e
que seus descendentes, reunidos cada ano junto ao lugar sagrado onde
repousa, lhe ofereçam o banquete fúnebre. O lar sempre aceso, o túmulo
sempre honrado pelo culto, eis o centro ao redor do qual todas as gerações
vêm viver, e pelo qual todos os ramos da família, por mais numerosos que
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possam ser, continuam agrupados em um único feixe. Que diz ainda o direito
privado desses velhos tempos? Observando-se o que era a autoridade na
família antiga, vimos que os filhos não se separavam do pai; estudando-se as
regras da transmissão do patrimônio, constatamos que, graças ao princípio da
comunidade do domínio, os irmãos menores não se separavam do mais velho.
Lar, túmulo, patrimônio, tudo isso em sua origem era indivisível. A família o
era, por conseqüência. O tempo não a desmembrava. Essa família indivisível,
que se desenvolvia através das idades, perpetuando de século em século seu
culto e seu nome, era verdadeiramente a gens antiga. A gens era a família,
mas a família conservando a unidade ordenada pela religião e atingindo todo o
desenvolvimento que o antigo direito privado lhe permitia atingir(1).
Admitida essa verdade, tudo o que os antigos escritores nos dizem a respeito
da gens torna-se claro. A estreita solidariedade, que há pouco notamos entre
seus membros, nada tem mais de surpreendente; eles são parentes por
nascimento. O culto que praticam em comum não é uma ficção: vem-lhes de
seus antepassados. Como eles são uma mesma família, têm sepultura comum.
Pela mesma razão, a lei das Doze Tábuas declara-os aptos a herdar uns dos
outros. Como todos eles tinham, na origem, um mesmo patrimônio
indivisível, tornou-se costume e mesmo necessidade que a gens inteira
respondesse pela dívida de um de seus membros, que pagasse a ração do
prisioneiro ou a multa do condenado. Todas essas regras haviam sido
estabelecidas por si mesmas, quando a gens ainda estava unida; com seu
desmembramento, não puderam desaparecer completamente. Da unidade
antiga e santa da família ficaram marcas persistentes no sacrifício anual, que
tornava a congregar os membros dispersos; na legislação, que lhes reconhecia
direitos de hereditariedade; nos costumes, que lhes ordenava que se ajudassem
mutuamente.
Era natural que os membros de uma mesma gens usassem um mesmo nome, e
foi o que aconteceu. O uso dos nomes patronímicos data dessa antiguidade, e
se relaciona visivelmente com a velha religião. A unidade de nascimento e de
culto era indicada pela unidade do nome. Cada gens transmite de geração em
geração o nome do antepassado, e o perpetua com o mesmo cuidado que
demonstrava para com o culto. O que os romanos chamavam propriamente de
nomen era esse nome do antepassado, que todos os descendentes e todos os
membros da gens deviam levar. Dia veio em que cada ramo, tornando-se
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independente em algumas coisas, marcou sua individualidade adotando o
sobrenome (cognomen). Contudo, como cada pessoa devia distinguir-se por
uma denominação particular, cada um recebeu um agnomem, como Caius ou
Quintus. Mas o verdadeiro nome era o da gens; este era o usado oficialmente,
este era o nome sagrado, este era o que, remontando ao primeiro antepassado
conhecido, devia durar tanto quanto a família e seus deuses. O mesmo
acontecia na Grécia; romanos e helenos assemelham-se também nesse
pormenor. Cada grego, pelo menos se pertencia a uma família antiga e
regularmente constituída, tinha três nomes, como os patrícios romanos. Um
destes lhe era particular, outro era o nome do pai; e como esses dois nomes
alternavam-se ordinariamente entre si, o conjunto de ambos equivalia ao
cognome hereditário, que designava em Roma um ramo da gens; enfim, o
terceiro nome era o de toda a gens. Assim, dizia-se: Milcíades, filho de
Címon, Laquia; e na geração seguinte: Címon, filho de Milcíades, Laquiadas:
Kimõn Miltiádou Lakiádes. Os Laquiadas formavam um ghénos, como os
Cornélios uma gens. Assim acontecia com os Butados, os Filatidos, os
Britidos, os Aminandridos, etc. Podemos notar que Píndaro jamais faz o
elogio desses gregos, sem lembrar-lhes o nome de seu ghénos. Esse nome,
entre os gregos, ordinariamente terminava em ides ou ades, e tinha assim uma
forma de adjetivo, do mesmo modo que o nome da gens entre os romanos,
terminava invariavelmente em ius. Não era esse o verdadeiro nome; na
linguagem diária podia-se designar o homem por seu sobrenome individual,
mas na linguagem oficial, da política ou da religião, era necessário dar ao
homem sua denominação completa, e, sobretudo, não esquecer o nome do
ghénos(2). É digno de nota que a história dos nomes seguiu caminho
completamente diverso entre os antigos do que nas sociedades cristãs. Na
Idade Média, até o século doze, o verdadeiro nome era o nome de batismo, ou
nome individual, e os nomes patronímicos não apareceram senão muito tarde,
como nomes de terra, ou como sobrenomes. Entre os antigos deu-se
exatamente o contrário. Ora, essa diferença, se a observarmos bem, relacionase
à diferença das duas religiões. Para a antiga religião doméstica a família era
o verdadeiro corpo, o verdadeiro ser vivente, do qual o indivíduo era membro
inseparável; assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro
em importância. A nova religião, pelo contrário, reconhecia ao indivíduo uma
vida própria, uma liberdade completa, uma independência toda pessoal, e não
lhe repugnou de modo algum isolá-lo da família; destarte, o nome de batismo
foi o primeiro, e, por muito tempo, o único nome.
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4.° Extensão da família: a escravidão e a clientela
O que temos visto da família, sua religião doméstica, os deuses por ela
instituídos, as leis por ela estabelecidas, o direito de primogenitura, sobre o
qual se baseava, sua unidade, seu desenvolvimento de idade em idade, até
formar a gens, sua justiça, seu sacerdócio, seu governo interior, tudo isso leva
forçosamente nosso pensamento para uma época primitiva, em que a família
era independente de todo poder superior, e em que a cidade ainda não existia.
Vejamos essa religião doméstica: os deuses, que não que não pertenciam
senão a uma família, e não exerciam sua providência além dos muros de uma
casa; o culto secreto, a religião que não queria ser propagada; a antiga moral,
que prescrevia o isolamento das famílias; é claro que crenças dessa natureza
não puderam aparecer no espírito dos homens senão em épocas em que as
grandes sociedades ainda não estavam formadas. Se o sentimento religioso
contentou-se com uma concepção tão restrita da divindade, é porque a
associação humana era então proporcionalmente acanhada. Os tempos em que
o homem não acreditava senão nos deuses domésticos, é também o tempo em
que não existiam senão famílias. É bem verdade que essas crenças subsistiram
depois, e até por muito tempo, quando as cidades e nações já estavam
formadas. O homem não se liberta facilmente das opiniões que uma vez o
dominaram. Essas crenças, portanto, puderam durar, embora estivessem em
contradição com o estado social. Com efeito, que há de mais contraditório que
viver em sociedade civil, e ter em cada família deuses particulares? Mas é
claro que essa contradição não existiu sempre, e que na época em que essas
crenças se haviam estabelecido nos espíritos, e se haviam tornado tão
poderosas para formar uma religião, elas correspondiam exatamente ao estado
social dos homens. Ora, o único estado social que pode estar de acordo com
elas é aquele em que a família vive independente e isolada.
É nesse estado que toda a raça ariana parece ter vivido por muito tempo. Os
hinos dos Vedas o atestam para o ramo que deu nascimento aos hindus: as
velhas crenças e o velho direito privado o atestam para aqueles que depois se
tornaram os gregos e os romanos.
Se compararmos as instituições políticas dos árias do Ocidente com as dos
árias do Oriente, não encontraremos quase nenhuma analogia. Se
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compararmos, pelo contrário, as instituições domésticas desses diversos
povos, perceberemos que a família estava constituída de acordo com os
mesmos princípios tanto na Grécia como na Índia; esses princípios eram,
aliás, como constatamos acima, de natureza tão singular, que não devemos
supor que a semelhança fosse simples efeito do acaso; enfim, não somente
essas instituições oferecem evidente analogia, mas ainda as palavras que as
designam são muitas vezes as mesmas, nas diferentes línguas que essa raça
falou desde o Ganges até o Tibre. Daí podemos tirar duas conclusões: uma é
que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em
que seus diferentes ramos se separaram; outra é que, pelo contrário, o
nascimento das instituições políticas é posterior a essa separação. As
primeiras foram fixadas desde os tempos em que a raça vivia ainda em seu
antigo berço da Ásia central; as segundas se formaram pouco a pouco, nos
diversos lugares onde suas migrações a conduziram.
Pode-se, pois, entrever um longo período durante o qual os homens não
conheceram nenhuma outra forma de sociedade além da família. Foi então
que surgiu a religião doméstica, que não teria podido nascer em sociedade
constituída de modo diverso, e que por muito tempo serviu até de obstáculo ao
desenvolvimento social. Estabeleceu-se então o antigo direito privado, que
mais tarde achou-se em desacordo com os interesses de uma sociedade pouco
desenvolvida, mas que estava em perfeita harmonia com o estado da
sociedade na qual se formou.
Ponhamo-nos, portanto, com o pensamento no meio dessas antigas gerações,
cuja lembrança não pôde perecer por completo, e que legaram suas crenças e
leis às gerações seguintes. Cada família tem sua religião, seus deuses, seu
sacerdócio. O isolamento religioso é sua lei; seu culto é seu segredo. Na
mesma morte, e na existência que se lhe segue, as famílias não se confundem:
cada uma continua a viver à parte em seu túmulo, de onde os estranhos são
excluídos. Cada família tem também sua propriedade, isto é, a parte de terra
que lhe está ligada inseparavelmente pela religião; seus deuses Termos
guardam-lhe os limites, e seus manes a protegem. O isolamento da
propriedade é de tal modo obrigatório, que dois domínios não podem
avizinhar-se, e devem deixar entre si uma faixa de terra neutra, que se torna
inviolável. Enfim, cada família tem seu chefe, como uma nação teria um rei;
tem suas leis, que sem dúvida não são escritas, mas que a crença grava no
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coração de cada homem; tem sua justiça interior, acima da qual não há
nenhuma outra à qual possa apelar. Tudo aquilo de que o homem tem rigorosa
necessidade para sua vida material ou para sua vida moral, a família o possui
em si. Não precisa de coisa alguma de fora; é um estado organizado, uma
sociedade auto-suficiente.
Mas essa família das antigas idades não está reduzida às proporções da família
moderna. Nas grandes sociedades a família se desmembra, e diminui, mas na
ausência de qualquer outra sociedade ela se estende, se desenvolve, ramificase
sem se dividir. Os ramos mais novos continuam agrupados ao redor do
mais velho, perto do lar único e do túmulo comum.
Outro elemento ainda entra na composição dessa família antiga. A
necessidade recíproca que o pobre tem do rico, e que o rico tem do pobre,
criou os servos. Mas nessa espécie de regime patriarcal, servos ou escravos,
tudo é a mesma coisa. Com efeito, concebe-se que o princípio do serviço
livre, voluntário, podendo cessar à vontade do servidor, não se pode coadunar
com um estado social em que a família vive isolada. Aliás, a religião
doméstica não permite admitir na família nenhum estranho. É necessário,
portanto, que por algum meio o servo se torne membro e parte integrante da
família, o que se consegue por uma espécie de iniciação do recém-vindo no
culto doméstico.
Um costume curioso, que por muito tempo subsistiu nas casas atenienses,
mostra-nos como o escravo entrava para a família. Faziam-no aproximar do
lar, colocavam-no em presença da divindade doméstica, derramavam-lhe
sobre a cabeça a água lustral, e faziam-no compartilhar com a família de
alguns bolos e frutas(1). Essa cerimônia tinha analogia com a do casamento e
da adoção. Significava sem dúvida que o novo membro, outrora estranho, de
agora em diante passava a ser membro da família, cuja religião adotava.
Assim, o escravo assistia às preces e participava das festas(2). O lar o
protegia; a religião dos deuses lares pertencia-lhe tanto quanto a seu dono(3).
É por essa razão que o escravo devia ser enterrado na sepultura da família.
Mas, por isso mesmo que o servo adquiria o culto e o direito de orar, perdia a
liberdade. A religião era uma cadeia que o retinha. Estava ligado à família por
toda a vida, e mesmo para o tempo que se seguia à morte.
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Seu senhor podia libertá-lo, e tratá-lo como homem livre. Mas o servo não
deixava por isso a família. Como estava ligado a ela pelo culto, não podia sem
impiedade separar-se da mesma. Sob o nome de liberto ou de cliente,
continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono, e não deixava de
ter obrigações para com ele. Não se casava senão com sua autorização, e seus
filhos continuavam a dever-lhe obediência(4).
Formava-se assim, no seio da grande família, certo número de pequenas
famílias clientes e subordinadas. Os romanos atribuíam o estabelecimento da
clientela a Rômulo, como se uma instituição dessa natureza pudesse ser obra
de um só homem. A clientela é mais antiga que Rômulo. Aliás, existia em
toda parte, tanto na Grécia como em toda a Itália(5). Não foram as cidades
que estabeleceram regras: pelo contrário, como veremos mais adiante, elas
pouco a pouco diminuíram-nas, destruíram-nas. A clientela é uma instituição
do direito doméstico, e existiu nas famílias antes que existissem cidades.
Não devemos julgar a clientela dos tempos antigos pelos clientes que vemos
no tempo de Horácio. É claro que o cliente foi por muito tempo um servo
ligado ao patrão. Mas havia então algo que constituía sua dignidade: ele
tomava parte no culto, e estava associado à religião da família. Tinha o
mesmo lar, as mesmas festas, os mesmos sacra que o patrono. Em Roma, em
sinal dessa comunidade religiosa, tomava o nome da família. Era considerado
membro da mesma pela adoção. Daí um laço estreito, e uma reciprocidade de
deveres entre o patrono e o cliente. Ouvi a velha lei romana: Se o patrono
causou dano ao cliente, que seja maldito sacer esto que morra(6). O
patrono deve proteger o cliente por todos os meios e todas as forças de que
dispõe: por sua oração como sacerdote; por sua lança, como guerreiro; por sua
lei, como juiz. Mais tarde, quando a justiça da cidade chamar o cliente, o
patrono deverá defendê-lo, deverá mesmo revelar-lhe as fórmulas misteriosas
da lei que o farão ganhar a causa(7). Pode-se testemunhar em justiça contra
um cognado, mas nunca contra um cliente(8), e os deveres para com os
clientes continuarão a ser considerados muito acima dos deveres para com os
cognados(9). Por que? Porque um cognado, ligado somente pelas mulheres,
não é parente, e não toma parte na religião da família. O cliente, pelo
contrário, tem a comunidade do culto; goza, por mais inferior que seja, do
verdadeiro parentesco, que consiste, segundo expressão de Platão, em adorar
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os mesmos deuses domésticos.
A clientela é um laço sagrado que a religião formou, e que nada poderá
romper. Uma vez que se é cliente em uma família, não se pode mais separarse
dela. A clientela desses tempos primitivos não é relação voluntária e
passageira entre dois homens: é hereditária; é-se cliente por dever, de pai a
filho(10).
Por tudo isso vemos que a família nos tempos antigos, com seu ramo mais
velho e seus ramos mais novos, seus servos e clientes, podia formar um grupo
de homens muito numeroso. Uma família, graças à religião, que a mantinha
unida; graças a seu direito particular, que a tornava indivisível; graças às leis
da clientela, que mantinha seus servos, chegou a formar com o tempo uma
sociedade muito extensa, que tinha seu chefe hereditário. Foi de um número
indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece haver sido
composta durante uma longa série de séculos. Esses milhares de pequenos
grupos viviam isolados, com poucas relações entre si, sem necessidade uns
dos outros, sem estarem unidos por nenhum laço, nem religioso, nem político,
tendo cada um seu domínio, cada um seu governo interior, cada um seus
deuses particulares.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
LIVRO TERCEIRO
A CIDADE
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CAPÍTULO I
A FRATRIA E A CÚRIA. A TRIBO
Até aqui não apresentamos e não pudemos apresentar nenhuma data. Na
história dessas sociedades antigas, as épocas são mais facilmente marcadas
pela sucessão das idéias e das instituições que pela dos anos.
O estudo das antigas regras do direito privado fez-nos entrever, para além dos
tempos chamados históricos, um período de séculos, durante os quais a
família foi a única forma de sociedade. Essa família podia então conter em seu
extenso quadro vários milhares de criaturas humanas. Mas nesses limites a
associação humana era ainda muito acanhada; muito estreita para as
necessidades materiais, porque era difícil que a família fosse auto-suficiente
para todas as necessidades da vida; era também muito acanhada para as
necessidades morais de nossa natureza, porque vimos como nesse pequeno
mundo a inteligência do divino era insuficiente e a moral incompleta.
A pequenez dessa sociedade primitiva correspondia bem à pequenez da idéia
que se tinha da divindade. Cada família tinha seus deuses, e o homem não
concebia nem adorava senão divindades domésticas. Mas ele não devia
contentar-se por muito tempo com esses deuses, tão abaixo do que sua
inteligência podia atingir. Se lhe eram necessários ainda para chegar a
imaginar Deus como um ser único, incomparável, infinito, pelo menos devia
aproximar-se insensivelmente desse ideal, engrandecendo de geração em
geração sua concepção, e recuando pouco a pouco o horizonte cuja linha para
ele separa o Ser divino das coisas da terra.
A idéia religiosa e a sociedade humana, portanto, deviam crescer juntas.
A religião doméstica proibia a duas famílias unir-se ou confundir-se. Mas era
possível que várias famílias, sem nada sacrificar de sua religião particular, se
unissem pelo menos para a celebração de outro culto, que lhes fosse comum.
E foi o que aconteceu. Certo número de famílias formaram um grupo, que a
língua grega chamava fratria, e a latina cúria(1). Existiria entre as famílias de
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um mesmo grupo algum laço de nascimento? É impossível afirmá-lo. O que é
certo é que essa associação nova não se fez sem certo progresso da idéia
religiosa. No mesmo momento em que se uniam, essas famílias conceberam
uma divindade superior às divindades domésticas, um deus comum a todas, e
que velava sobre todo o grupo. Levantaram-lhe um altar, acenderam um fogo
sagrado, e instituíram um culto(2).
Não havia cúria ou fratria que não tivesse seu altar e seu deus protetor. O ato
religioso conservava as mesmas características que na família. Consistia
essencialmente em um banquete fúnebre, realizado em comum; o alimento era
preparado sobre o próprio altar, e, conseqüentemente, era sagrado, e era
consumido enquanto se recitavam preces; a divindade estava presente, e
recebia seu quinhão de alimentos e bebidas(3).
Essas refeições fúnebres da cúria subsistiram por tempo em Roma; Cícero fala
delas, Ovídio descreve-as(4). Nos tempos de Augusto ainda conservavam sua
forma antiga. Vi nessas moradas sagradas diz um historiador da época
a refeição servida diante do deus; as mesas eram de madeira, de acordo
com o uso dos antepassados, e a baixela de barro. Os alimentos eram pão,
bolos de flor de farinha, e algumas frutas. Vi que faziam libações, que não
caíam de cálices de ouro ou prata, mas de vasos de argila; e admirei os
homens de hoje, que continuam tão fiéis aos ritos e costumes de seus pais(5).
Em Atenas, em dias de festa, tais como as Apatúrias e as Targélias, cada
fratria se reunia ao redor do altar; imolava-se uma vítima; as carnes, cozidas
sobre o fogo sagrado, eram divididas entre todos os membros da fratria, e
cuidava-se muito para que nenhum estranho delas participasse(6).
Há costumes que duraram até os últimos tempos da história grega, e que
lançam alguma luz sobre a natureza da antiga fratria. Assim vemos que nos
tempos de Demóstenes, para se fazer parte de uma fratria, era necessário
nascer de casamento legítimo, em uma das famílias que a compõem. Porque a
religião da fratria, como a da família, não se transmitia senão pelo sangue. O
jovem ateniense era apresentado à fratria pelo pai, que jurava ser ele seu filho.
A admissão era realizada sob forma religiosa. A fratria imolava uma vítima,
cuja carne era cozida sobre o altar; todos os membros estavam presentes.
Recusavam admitir o novo candidato, como de direito, quando duvidavam da
legitimidade do nascimento, casos em que deviam tirar as carnes de sobre o
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altar. Se não o faziam, se depois de cozidas eles dividiam com o candidato as
carnes da vítima, o jovem era admitido, e se tornava irrevogavelmente
membro da associação(7). O que explica essas práticas é que os antigos
acreditavam que todo alimento preparado sobre o altar, e dividido entre várias
pessoas, estabelecia entre elas um laço indissolúvel, uma união santa, que não
cessava com a morte(8).
Cada fratria ou cúria tinha um chefe, curião ou fratriarca, cuja principal
função era presidir aos sacrifícios. Talvez suas atribuições a princípio tenham
sido mais extensas. A fratria tinha suas assembléias, suas deliberações, e
podia promulgar decretos(9). Nela, como na família, havia um deus, um culto,
um sacerdote, uma justiça e um governo. Era uma pequena sociedade,
modelada exatamente sobre a da família.
A associação, naturalmente, continuou a crescer, e da mesma maneira. Várias
cúrias ou fratrias agruparam-se, e formaram a tribo.
Esse novo círculo teve também sua religião; em cada tribo havia um altar e
uma divindade protetora(10).
O deus da tribo era ordinariamente da mesma natureza que o da fratria ou o da
família. Era um homem divinizado, um herói. Dele a tribo tirou seu nome:
também os gregos chamavam-nos heróis epônimos, com um dia consagrado à
sua festa anual. A parte principal da cerimônia religiosa era um banquete, do
qual toda a tribo participava(11).
A tribo, como a fratria, tinha assembléias e promulgava decretos, aos quais
todos os membros deviam submeter-se. Tinha um tribunal e direito de justiça
sobre seus membros. Tinha um chefe, tribunus, phylobasiléus(12). Pelo que
nos resta da instituição das tribos, vemos que havia sido constituída, em sua
origem, para ser uma sociedade independente, como se não tivesse nenhum
poder social sobre si(13).
CAPÍTULO II
NOVAS CRENÇAS RELIGIOSAS
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1.° Os deuses da natureza física
Antes de passar da formação das tribos para o nascimento das cidades,
devemos mencionar um elemento importante da vida intelectual desses povos
antigos.
Ao procurarmos conhecer as antigas crenças desses povos, encontramos uma
religião que tinha por objeto os antepassados, e por principal símbolo o lar;
ela é que constituiu a família e estabeleceu as primeiras leis. Mas essa raça
teve também, em todos seus ramos, uma outra religião, cujas principais
figuras foram Zeus, Hera, Atenas, Juno, a do Olimpo helênico e a do
Capitólio romano.
Dessas duas religiões, a primeira tomava seus deuses da alma humana, a
segunda da natureza física. Se o sentimento da força física, e da consciência
que leva consigo, inspirou ao homem a primeira idéia da divindade, a vista
dessa imensidão que o rodeia e que o esmaga deu outro curso a seu
sentimento religioso.
O homem dos primeiros tempos estava continuamente à frente da natureza; os
hábitos da vida civilizada ainda não haviam estendido um véu entre ela e o
homem. Seu olhar encantava-se com suas belezas, admirava-se por suas
grandezas. Gozava da luz, assustava-se com a noite, e quando via voltar a
santa claridade dos céus(1), sentia-se reconhecido. Sua vida estava nas mãos
da natureza: esperava a nuvem benfazeja, da qual dependia a colheita; temia a
tempestade, que podia destruir-lhe o trabalho e a esperança de todo um dia.
Sentia a todo momento a própria fraqueza, e a incomparável força de tudo o
que o rodeava. Sentia perpetuamente um misto de veneração, de amor e de
terror, por aquela natureza poderosa.
Esse sentimento, não o conduziu imediatamente à concepção de um deus
único, senhor de todo o universo, porque ele não tinha ainda a idéia de
universo. Não sabia que a terra, o sol, os astros, fossem partes de um mesmo
corpo, e não podiam pensar que pudessem ser governados por um mesmo ser.
Aos primeiros olhares que lançou sobre o mundo exterior, o homem o
imaginou como uma espécie de república confusa, na qual forças rivais
guerreavam entre si. Como julgava as coisas exteriores por si próprio, e sentia
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em si uma pessoa livre, viu também em cada parte da criação, no solo, nas
árvores, nas nuvens, nas águas dos rios, no sol, outras tantas pessoas
semelhantes a si; atribuiu-lhes pensamento, vontade, discernimento; como as
sentia poderosas, e como estava submetido a seu império, confessou-lhes sua
dependência; dirigiu-lhes preces e adorações, transformando-as em deuses.
Assim, nessa raça, a idéia religiosa se apresentou sob três formas muito
diversas. De uma parte, o homem ligou o atributo divino ao princípio
invisível, à inteligência, ao que entrevia da alma, ao que sentia de sagrado em
si. Por outra parte, aplicou sua idéia de divindade aos objetos exteriores que
contemplava, que amava e temia, aos agentes físicos, senhores de sua
felicidade e de sua vida.
Essas duas ordens de crenças deram lugar a duas religiões, que vemos durar
tanto quanto as sociedades grega e romana. Elas não se combateram, vivendo
até em muito boa inteligência, dividindo entre si o império sobre o homem;
mas jamais se confundiram. Sempre tiveram dogmas distintos, muitas vezes
contraditórios, cerimônias e práticas absolutamente diversas. O culto dos
deuses do Olimpo e o dos heróis e dos manes, jamais tiveram algo em
comum. Qual dessas duas religiões foi a primeira a aparecer, não saberíamos
dizer; não saberíamos nem mesmo afirmar que uma tenha sido anterior à
outra; o que é certo é que uma, a dos mortos, tendo sido fixada em época
muito longínqua, continuou imutável em suas práticas, enquanto seus dogmas
desapareciam aos poucos; a outra, a da natureza física, foi mais progressiva, e
se desenvolveu livremente através das idades, modificando pouco a pouco
suas fábulas e doutrinas, e aumentando continuamente sua autoridade sobre o
homem.
2.° Relação dessa religião com o desenvolvimento da sociedade humana
Podemos acreditar que os rudimentos dessa religião da natureza são muito
antigos, talvez tanto quanto o culto dos antepassados; mas, como correspondia
a concepções mais gerais e mais altas, foi-lhe necessário muito tempo para se
fixar em uma doutrina precisa(1). É bem verdade que ela não surgiu no
mundo em um dia, e que não nasceu completa do cérebro de um só homem.
Não vemos na origem dessa religião nem um profeta, nem um corpo de
sacerdotes. Aparece nas diferentes inteligências por efeito de sua força
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natural. Cada um a fez à sua moda. Entre todos esses deuses, nascidos de
espíritos diversos, houve semelhanças, porque as idéias se formavam no
homem de acordo com um modo quase uniforme; mas houve também grande
variedade, porque cada espírito era o autor de seus deuses, resultando daí que
essa religião por muito tempo foi confusa, e seus deuses foram inumeráveis.
Entretanto, os elementos que se podiam divinizar não eram muitos. O sol que
fecunda, a terra que alimenta, a nuvem ora benfazeja ora funesta, tais eram os
principais poderes com os quais se podiam fazer deuses. Mas de cada um
desses elementos nasceram milhares de deuses. É que o mesmo agente físico,
visto sob aspectos diversos, recebeu dos homens nomes diferentes. O sol por
exemplo, aqui chamava-se Héracles o glorioso; ali Febos o brilhante;
mais além Apolo aquele que afasta a noite ou o mal; um o chamou de
Ser elevado (Hipérion), outro de compassivo (Alexicacos), e, com o tempo, os
grupos de homens que haviam dado esses nomes ao astro brilhante, não
reconheceram que tinham o mesmo deus.
De fato, cada homem não adorava senão um número muito restrito de
divindades, mas os deuses de um não pareciam ser os deuses do outro. Os
nomes, na verdade, podiam assemelhar-se; muitos homens teriam podido dar
separadamente a seu deus o nome de Apolo ou de Hércules, porque essas
palavras pertenciam à língua usual, e não passavam de adjetivos que
designavam o Ser divino, por um ou outro de seus atributos mais evidentes.
Mas, sob esse mesmo nome, os diferentes grupos de homens não podiam
acreditar na existência de um só deus. Contavam-se milhares de Júpiteres
diferentes; havia uma multidão de Minervas, de Dianas, de Junos, que pouco
se assemelhavam. Como cada uma dessas concepções eram formadas pelo
trabalho livre de cada espírito, e sendo, de algum modo, propriedade sua,
aconteceu que esses deuses por muito tempo ficaram independentes uns dos
outros, e cada um teve sua fábula particular e seu culto(2).
Como a primeira aparição dessas crenças deu-se em época em que os homens
ainda viviam no estado de família, esses novos deuses tiveram a princípio,
como os demônios, os heróis e os lares, o caráter de divindades domésticas.
Cada família fizera seus deuses, e cada uma os guardava para si, como
protetores, cujas boas graças não podia dividir com estranhos. Este é um
pensamento que aparece freqüentemente nos hinos dos Vedas, e não há
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dúvida de que o mesmo acontecia com o espírito dos árias do Ocidente,
porque deixou vestígios visíveis em sua religião. À medida que uma família,
ao personificar um agente físico, criava um deus, ela o associava ao lar,
contava-o entre seus penates, e acrescentava em suas preces algumas palavras
a ele dirigidas. É por isso que freqüentemente encontramos entre os antigos
expressões como estas: Os deuses que residem junto de meu lar, o Júpiter de
meu lar, o Apolo de meus pais(3). Eu te conjuro diz Tecmesse a Ajax
em nome do Júpiter que mora junto de teu lar. Medéia, a mágica, diz
em Eurípides: Juro-o por Hecate, minha deusa principal, que venero, e que
habita o santuário de meu lar. Quando Virgílio descreve o que há de mais
velho na religião de Roma, mostra Hércules associado ao lar de Evandro, e
adorado por ele como divindade doméstica.
Daí se originaram aqueles milhares de cultos locais, entre os quais a unidade
jamais se pôde estabelecer. Daí as lutas de deuses, tão numerosas no
politeísmo, e que representam lutas de famílias, de cantões ou de cidades. Daí,
enfim, essa multidão inumerável de deuses e deusas, dos quais conhecemos
certamente a menor parte, porque muitos desapareceram sem deixar nem a
lembrança de seu nome, pois as famílias que os adoravam se extinguiram, ou
as cidades que lhes dedicaram culto foram destruídas.
Foi necessário muito tempo para que esses deuses saíssem do seio das
famílias que os haviam concebido, e que os encaravam como patrimônio.
Sabemos até que muitos deles nunca conseguiram sair dessa espécie de
círculo doméstico. Deméter, de Elêusis, ficou sendo a divindade particular da
família dos Eumólpidas; a Atenas da acrópole de Atenas pertencia à família
dos Butados. Os Potícios de Roma tinham um Hércules, e os Náutios uma
Minerva(4). É muito provável que o culto de Vênus tenha ficado por muito
tempo restrito à família dos Júlios, e que essa deusa não teve culto público em
Roma.
Com o tempo, à medida que a divindade de uma família ia adquirindo grande
prestígio sobre a imaginação dos homens, mostrando-se poderosa na
proporção da prosperidade da mesma família, toda uma cidade desejava adotála,
e render-lhe culto público para impetrar-lhe favores. Foi o que aconteceu
com a Deméter dos Eumólpidas, a Atenas dos Butados, o Hércules dos
Potícios. Mas, quando uma família consentia em tornar públicos seus deuses,
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reservava para si o respectivo sacerdócio. Pode-se notar que a dignidade do
sacerdócio, para cada deus em particular, foi por muito tempo hereditária, e
não pôde sair de determinadas famílias(5). É o vestígio de um tempo em que o
próprio deus era propriedade da família, não protegia senão a ela, e não
desejava ser obsequiado senão por ela.
É, portanto, certo dizer-se que essa segunda religião estava de inteiro acordo
com o estado social dos homens. Ela teve por berço a família, e ficou por
muito tempo confinada dentro desse horizonte restrito. Mas se prestava
melhor que o culto dos mortos para os futuros progressos da associação
humana. Com efeito, os antepassados, os heróis, os manes, eram deuses que,
por sua própria essência, não podiam ser adorados senão por pequeno número
de homens, traçando para sempre intransponíveis linhas de demarcação entre
as famílias. A religião dos deuses da natureza era campo mais vasto.
Nenhuma lei rigorosa se opunha a que cada um desses cultos se propagasse;
não estava na natureza íntima desses deuses serem adorados apenas por uma
família, rejeitando os estranhos. Enfim, os homens deviam chegar
insensivelmente a perceber que o Júpiter de uma família era, no fundo, o
mesmo ser, ou a mesma concepção que o Júpiter de outra, o que jamais
poderiam acreditar se se tratasse de dois manes, de dois antepassados ou de
dois lares.
Acrescentemos ainda que essa nova religião tinha também outra moral. Não
se limitava a ensinar ao homem os deveres da família. Júpiter era o deus da
hospitalidade; a ele se dirigiam os estrangeiros, os suplicantes, os veneráveis
indigentes, que deviam ser tratados como irmãos. Todos esses deuses
tomavam muitas vezes forma humana, e apareciam aos mortais. Às vezes
apareciam para assistir a suas lutas e tomar parte em seus combates; muitas
vezes também para prescrever-lhes a concórdia, e ensinar-lhes o auxílio
mútuo.
À medida que essa segunda religião se ia desenvolvendo, a sociedade cresceu.
Ora, é claro que essa religião, a princípio fraca, depois estendeu-se muito. Na
origem, quase que se havia abrigado no seio das famílias, sob a proteção do
lar doméstico. Lá o novo deus conseguira um pequeno lugar, uma exígua
cella, à vista e ao lado do altar venerado, a fim de que recebesse um pouco do
respeito que os homens tinham pelo lar. Pouco a pouco esse deus, tomando
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mais autoridade sobre a alma, renunciou a essa espécie de tutela, e deixou o
lar doméstico; teve um lugar a parte, e sacrifícios que lhe eram próprios. Esse
lugar (naós, de naio, habitar) foi, aliás, construído à imagem do antigo
santuário; foi, como a princípio, uma cella à frente do lar; mas a cella tornouse
mais espaçosa, mais bonita, transformou-se em templo. O lar continuou à
entrada da casa do deus, mas ficou bem pequeno em relação a ele. Ele que
fora o principal, tornou-se acessório. Deixou de ser o deus, e desceu para a
condição de altar, de instrumento para o sacrifício. Foi encarregado de
queimar a carne da vítima, e de levar a oferenda, juntamente com a prece do
homem, à divindade majestosa, cuja estátua residia no interior do templo.
Quando vemos levantarem-se esses templos, abrindo as portas diante de uma
multidão de adoradores, podemos ter a certeza de que a inteligência humana e
a sociedade cresceram.
CAPÍTULO III
FORMA-SE A CIDADE
A tribo, como a família e a fratria, estava constituída para ser um corpo
independente, porque tinha culto especial, do qual os estranhos eram
excluídos. Uma vez formado, nenhuma nova família podia ser nela admitida.
Duas tribos também não podiam fundir-se em uma: a religião opunha-se a
isso. Mas, assim como várias fratrias se haviam unido em uma tribo, várias
tribos puderam associar-se entre si, com a condição de que o culto de cada
uma fosse respeitado. No dia em que se fez essa aliança, a cidade começou a
existir.
Pouco importa procurar a causa que determinou a união de tribos vizinhas. Às
vezes a união foi voluntária, às vezes foi imposta pela força superior de uma
tribo, pela vontade poderosa de um homem. O que é certo é que foi ainda o
culto que constituiu o vínculo dessa nova associação. As tribos que se
agruparam, para formar uma cidade, jamais deixaram de acender o fogo
sagrado e de instituir uma religião comum.
Assim a sociedade humana, nessa raça, não cresceu como um círculo, que se
estenderia pouco a pouco, vencendo progressivamente. Pelo contrário, são
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pequenos grupos, há muito constituídos, que se agregaram uns aos outros.
Várias famílias formaram a fratria, várias fratrias formaram a tribo, várias
tribos formaram a cidade. Família, fratria, tribo, cidade, são, portanto,
sociedades exatamente semelhantes entre si, nascidas uma da outra, por uma
série de federações.
Convém notar que, à medida que esses diferentes grupos se associavam assim
entre si, nenhum deles, todavia, perdia sua individualidade ou independência.
Embora várias famílias se unissem em uma fratria, cada uma delas continuava
constituída como na época em que viviam isoladas; nada era mudado, nem o
culto, nem o sacerdócio, nem o direito de propriedade, nem a justiça interior.
As cúrias uniram-se depois, mas cada uma conservava seu próprio culto, suas
reuniões, suas festas, seu chefe. Da tribo passou-se à cidade, mas nem por isso
aquelas se dissolveram, e cada uma delas continuou a formar corpo à parte,
quase como se a cidade não existisse. Na religião subsistia uma multidão de
pequenos cultos, acima dos quais estabeleceu-se um culto comum; em
política, uma multidão de pequenos governos continuava a funcionar, e acima
deles levantou-se um governo comum.
A cidade era uma confederação. Por essa razão foi obrigada, pelo menos
durante muitos séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos,
das cúrias e das famílias; e por isso, a princípio, não teve o direito de intervir
nos negócios particulares dessas pequenas entidades. Ela nada tinha a ver com
o que se passava no interior de uma família; não era juiz do que acontecia;
deixava ao pai o direito de julgar a mulher, o filho, os clientes. É por essa
razão que o direito privado, que havia sido fixado na época de isolamento
entre as famílias. pôde subsistir nas cidades, e não foi modificado senão muito
mais tarde.
Esse modo de formação das cidades antigas é atestado por costumes que
duraram muito tempo. Se observarmos o exército da cidade, nos primeiros
tempos, vemo-lo distribuído em tribos, em cúrias, em famílias(1), de tal sorte
diz um antigo que o guerreiro tinha por vizinho no combate aquele com
quem, em tempos de paz, fazia a libação e oferecia sacrifícios no mesmo altar
(2). Se observarmos o povo reunido, nos primeiros séculos de Roma,
vemo-lo votar por cúrias e por gentes(3). Se observarmos o culto, vemos em
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Roma seis vestais, duas para cada tribo; em Atenas, o arconte faz a maior
parte dos sacrifícios em nome de toda a cidade, mas restam ainda algumas
cerimônias religiosas, que devem ser realizadas, em comum pelos chefes das
tribos(4).
Destarte a cidade não é um ajuntamento de indivíduos: é uma confederação de
vários grupos, constituídos antes dela, e que ela deixa subsistir. Lemos nos
oradores áticos que cada ateniense faz parte, ao mesmo tempo, de quatro
sociedades distintas: é membro de uma família, de uma fratria, de uma tribo e
de uma cidade. Não entra ao mesmo tempo e no mesmo dia em todas as
quatro, como o francês que, no momento do nascimento, pertence ao mesmo
tempo a uma família, a uma comuna, a um departamento e a uma pátria. A
fratria e a tribo não são divisões administrativas. O homem ingressa em
épocas diversas nessas quatro sociedades, e de um modo ou de outro passa de
uma para outra. A criança, a princípio, é admitida na família, pela cerimônia
religiosa celebrada dez dias depois do nascimento. Alguns anos depois,
ingressa na fratria por nova cerimônia, que descrevemos acima. Enfim, na
idade de dezesseis anos, ou de dezoito, apresenta-se para ser admitido na
cidade. Nesse dia, na presença do altar, e diante das carnes fumegantes de
uma vitima, faz um juramento, mediante o qual se obriga, entre outras coisas,
a respeitar para sempre a religião da cidade(5). A partir desse instante está
iniciado no culto público, e se torna cidadão(6). Observemos esse jovem
ateniense, subindo de degrau em degrau, de culto em culto, e teremos a
imagem das épocas pelas quais a sociedade humana passou. O caminho que
esse jovem é obrigado a trilhar é o mesmo que antes dele trilhou a sociedade.
Um exemplo tornará esta verdade mais clara. Restam-nos das antiguidades de
Atenas bastantes tradições e lembranças para que possamos ver com alguma
nitidez como se formou a cidade ateniense. Na origem, diz Plutarco, a Ática
estava dividida por famílias(7). Algumas dessas famílias da época primitiva,
como os Eumólpidas, os Cecrópidas, os Gefirenses, os Fitálidas, os
Laquiadas, perpetuaram-se até as idades seguintes. A cidade ateniense não
existia ainda; mas cada família, rodeada desses ramos mais novos, e de seus
clientes, ocupava um cantão, onde vivia em absoluta independência. Cada
uma tinha religião própria: os Eumólpidas, fixados em Elêusis, adoravam
Deméter; os Cecrópidas, que habitavam o rochedo onde mais tarde surgiu
Atenas, tinham como divindades protetoras Poséidon e Atenas. Ao lado, sobre
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a pequena colina do Areópago, o deus protetor era Ares; em Maratona, era um
Hércules; em Prásias, um Apolo; outro Apolo em Flias, os Dioscuros em
Cefalônia, e assim por todos os outros cantões(8).
Cada família, além do deus e do altar, tinha também um chefe. Quando
Pausânias visitou a Ática, encontrou nos pequenos burgos tradições antigas,
que se haviam perpetuado com o culto; ora, essas tradições ensinaram-lhe que
cada burgo tivera um rei antes da época em que Cécrops reinava em Atenas
(9). Não seria a lembrança de uma época longínqua, onde essas grandes
famílias patriarcais, semelhantes aos clãs célticos, tinham cada uma um chefe
hereditário, que era ao mesmo tempo juiz e sacerdote? Uma centena de
pequenas sociedades viviam, portanto, isoladas no país, sem haver entre elas
laço religioso ou político, cada uma com seu território, guerreando-se
freqüentemente; enfim, a tal ponto separadas umas das outras, que o
casamento entre seus membros nem sempre era permitido(10).
Mas as necessidades ou os sentimentos aproximaram-nas. Insensivelmente,
uniram-se em pequenos grupos, de quatro e de seis. Assim vemos nas
tradições que os quatro burgos da planície de Maratona se associaram para
adorar em conjunto a Apolo Delfiniano; os homens do Pireu, de Falera, e de
dois cantões vizinhos, uniram-se por sua vez, e construíram em comum um
templo dedicado a Hércules(11). Com os anos, essa centena de pequenos
estados reduziu-se a doze confederações. Essa mudança, pela qual a
população da Ática passou do estado de família patriarcal a sociedade um
pouco mais ampla, foi atribuído pela lenda aos esforços de Cécrops; por isso
devemos apenas entender que tal transformação só foi terminada na época em
que se colocou o reinado desse personagem, isto é, pelo século décimo sexto
de nossa era. Vemos, aliás, que Cécrops não reinou senão sobre uma das doze
associações, a que mais tarde foi Atenas; as outras onze eram completamente
independentes; cada uma tinha seu deus protetor, seu altar, seu fogo sagrado e
seu chefe(12).
Várias gerações se passaram, durante as quais o grupo dos Cecrópidas,
insensivelmente, adquiriu mais importância. Desse período ficou a lembrança
de uma luta sangrenta, que sustentaram contra os Eumólpidas de Elêusis, e
cujo resultado foi a submissão destes últimos, com a única condição de
conservar o sacerdócio hereditário de sua divindade(13). Cremos que houve
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outras lutas e outras conquistas, cuja lembrança se perdeu. O rochedo dos
Cecrópidas, onde aos poucos se desenvolveu o culto de Atenas, e que acabou
por adotar o nome de sua divindade principal, conquistou a supremacia sobre
os outros onze estados. Surgiu então Teseu, herdeiro dos Cecrópidas. Todas as
tradições concordam em dizer que ele reuniu os doze grupos em uma cidade.
Com efeito, Teseu conseguiu que toda a Ática adotasse o culto de Atenas
Polias, de modo que todo o país desde essa época passou a celebrar em
comum o sacrifício das Panatenéias. Antes dele, cada pequeno burgo tinha seu
fogo sagrado e seu pritaneu: ele fez com que o pritaneu de Atenas fosse o
centro religioso de toda a Ática(14). Desde então a unidade ateniense foi
fundada; religiosamente, cada cantão conservou seu antigo culto, mas todos
adotaram um culto comum; politicamente, cada um conservou seus chefes,
seus juízes, seus direitos de assembléia, mas, acima desses governos, tiveram
o governo central da cidade(15).
Dessas lembranças e tradições tão precisas, que Atenas conservou
religiosamente, parece-nos que surgem duas verdades igualmente manifestas:
uma é que a cidade era uma confederação de grupos constituídos antes dela;
outra é que a sociedade não se desenvolveu senão paralelamente à religião.
Não se saberia dizer se foi o progresso religioso que causou o progresso
social; o que é certo é que ambos apareceram ao mesmo tempo, e com notável
concórdia.
Devemos considerar atentamente a excessiva dificuldade que havia nas
populações primitivas para fundarem sociedades regulares. Não é fácil
estabelecer um vínculo social entre criaturas humanas tão diversas, tão livres,
tão inconstantes. Para dar-lhes regras comuns, para instituir decretos, e fazer
aceitar a obediência, para fazer ceder a paixão à razão, e a razão individual à
razão pública, é necessário certamente algo mais forte que a força material,
algo mais respeitável que o interesse, mais seguro que uma teoria filosófica,
mais imutável que uma convenção; algo que esteja igualmente no fundo de
todos os corações, algo que se imponha aos mesmos.
Isso é a crença. Não há nada mais poderoso sobre a alma. Uma crença é a obra
de nosso espírito, mas nós não temos liberdade para modificá-la a nosso belprazer.
É nossa criação, mas nós não o sabemos. É humana, e nós a julgamos
como um deus. É o efeito de nosso poder, e é mais forte do que nós. Está em
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nós, não nos abandona, fala-nos a cada instante. Se nos manda obedecer,
obedecemos; se nos traça deveres, submetemos-nos. O homem pode muito
bem domar a natureza, mas sujeita-se ao pensamento.
Ora, uma antiga crença mandava ao homem que honrasse os antepassados; o
culto dos antepassados reuniu a família ao redor de um altar. Daí a primeira
religião, as primeiras orações, a primeira idéia do dever, e a primeira moral;
daí também a propriedade estabelecida, a ordem de sucessão fixada. Daí
enfim, todo o direito privado, e todas as regras da organização doméstica.
Depois essa crença progrediu, acompanhada pela sociedade. À medida que os
homens sentem que têm divindades comuns, unem-se em grupos mais amplos.
As mesmas regras, encontradas e estabelecidas na família, aplicam-se
sucessivamente à fratria, à tribo, à cidade.
Abarquemos com o olhar o caminho percorrido pelos homens. Na origem, a
família vive isolada, e o homem não conhece senão deuses domésticos, theòi
patrõi, dii gentiles. Acima da família forma-se a fratria, com seu deus, theòs
phrátrios, Juno curialis. Em seguida vem a tribo, e o deus da tribo theòs
phylios. Chega-se, enfim, à cidade, e imagina-se um deus que abraça toda a
cidade, theòs polièus, penates publici. Hierarquia de crenças, hierarquia de
associações. A idéia religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e
organizador da sociedade.
As tradições dos hindus, dos gregos, dos etruscos, contavam que os deuses
haviam revelado aos homens as leis sociais. Sob essa forma legendária há
uma verdade. As leis sociais foram obra dos deuses; mas esses deuses, tão
poderosos e tão benfajezos, não eram nada mais que as crenças dos homens.
Essa foi a forma do nascimento do Estado entre os antigos; seu estudo era
necessário para podermos considerar em seguida a natureza e as instituições
da cidade. Mas devemos fazer aqui uma reserva. Se as primeiras cidades se
formaram pela confederação de pequenas sociedades constituídas
anteriormente, isso não quer dizer que todas as cidades que conhecemos se
formaram do mesmo modo. Uma vez encontrada a organização municipal,
não era mais necessário que cada nova cidade recomeçasse o mesmo caminho
longo e difícil. Pode muito bem ser que muitas vezes se seguisse a ordem
inversa. Quando um chefe, saindo de uma cidade já constituída, ia fundar
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outra, não levava de ordinário consigo mais que um pequeno número de
cidadãos; a eles se juntavam muitas outras pessoas, provenientes de diversos
lugares, e que podiam até pertencer a raças diferentes. Mas esse chefe nunca
deixou de constituir o novo Estado à imagem daquele que acabava de deixar.
Em conseqüência, dividia o povo em tribos e em fratrias. Cada uma dessas
pequenas associações teve um altar, sacrifícios, festas; cada uma imaginou até
um antigo herói, que honrou com um culto, e do qual, com o tempo, passou a
julgar-se descendente.
Muitas vezes sucedeu também, que os homens certo país viviam sem leis, sem
ordem, ou porque a organização social não conseguiu se estabelecer, ou por
ter sido corrompida e dissolvida por revoluções demasiado bruscas, como em
Cirene e em Thurii. Se um legislador se abalançasse a impor ordem a esses
homens, nunca deixava de começar por reparti-los em tribos e em fratrias,
como se não houvesse outro tipo de sociedade. Em cada um desses grupos,
instituía um herói epônimo, estabelecia sacrifícios, inaugurava tradições. Era
sempre por aí que se começava, se se queria fundar uma sociedade regular
(16). Assim procedeu o próprio Platão, ao imaginar a cidade modelo.
CAPÍTULO IV
A CIDADE
Cidade e urbe não eram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a
associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de
reunião, o domicílio, e, sobretudo, o santuário dessa associação(*).
Não devemos imaginar as cidades antigas de acordo com as que costumamos
ver nos dias de hoje. Constroem-se algumas casas, e temos uma aldeia.
Insensivelmente o número de casas aumenta, e temos a cidade; e, se for o
caso, acabamos por rodeá-la por um fosso e uma muralha. Uma cidade, entre
os antigos, não se formava com o tempo, pelo lento crescimento do número
dos homens e das construções. Fundava-se uma cidade de um só golpe,
inteiramente, em um dia.
Mas era necessário que a cidade fosse constituída antes, o que era a obra mais
difícil, e ordinariamente a mais longa. Uma vez que as famílias, as fratrias e
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as tribos concordavam em se unir, e em adotar o mesmo culto, logo se
fundava a cidade, para ser o santuário desse culto comum. Também a
fundação de uma cidade sempre constituiu ato religioso.
Por primeiro exemplo, tomaremos Roma, a despeito da reputação de
incredulidade que se liga a essa antiga história. Muito se repetiu que Rômulo
era chefe de aventureiros, que constituíra um povo chamando para junto de si
vagabundos e ladrões, e que todos esses homens, reunidos sem escolha,
haviam construído ao acaso algumas cabanas, para abrigar nelas o fruto de
suas rapinas. Mas os escritores antigos apresentam-nos o fato de maneira bem
diversa; parece-nos que, se queremos conhecer a antiguidade, devemos apoiarnos
sobre os testemunhos que a mesma nos apresenta. Esses escritores, na
verdade, falam de um asilo, isto é, de um recinto sagrado, no qual Rômulo
admitiu todos os que se apresentaram, no que seguiu o exemplo dado por
muitos dos fundadores de cidades(1). Mas esse asilo não era a cidade, e não
foi franqueado senão depois de fundada e completamente construída a cidade
(2). Era um apêndice acrescentado a Roma; não era Roma. Não fazia parte da
cidade de Rômulo, porque estava situado nas encostas do monte Capitolino,
enquanto a cidade ocupava o planalto do Palatino(3). É importante distinguir
nitidamente o duplo elemento da população romana. No asilo estão os
aventureiros sem eira nem beira; sobre o Palatino estão os homens vindos de
Alba, isto é, homens já organizados em sociedade, distribuídos em gentes e
em cúrias, com seus cultos domésticos e suas leis. O asilo não é nada mais
que uma espécie de aldeia ou subúrbio, onde as cabanas são levantadas ao
acaso, e sem regras; sobre o Palatino ergue-se uma cidade religiosa e santa.
Sobre a maneira pela qual essa cidade foi fundada, a antiguidade é pródiga em
informações; encontramo-las em Dionísio de Halicarnasso, que as busca em
autores mais antigos; encontramo-las em Plutarco, nos Fastos de Ovídio, em
Tácito, em Catão, o Antigo, que havia consultado os velhos anais, e em outros
escritores, que sobretudo nos devem inspirar grande confiança, o sábio Varrão
e o sábio Vérrio Flaco, que Festo nos conservou em parte, ambos muito
informados acerca das antiguidades romanas, amigos da verdade, nada
crédulos, e que conheciam muito bem as regras da crítica histórica. Todos
esses escritores nos transmitiram a lembrança da cerimônia religiosa que
havia marcado a fundação de Roma, e não temos direito de rejeitar tão grande
número de testemunhos.
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Não é raro encontrarmos entre os antigos fatos que nos espantam; seria isso
motivo para falar em fábulas, sobretudo se esses fatos, que tanto se afastam
das idéias modernas, concordam perfeitamente com as dos antigos? Vimos em
sua vida privada uma religião que regrava todos os atos; vimos em seguida
que essa religião os havia constituído em sociedade; depois disso, por que nos
deveremos admirar se a fundação de uma cidade constituiu ato sagrado, e que
o próprio Rômulo tenha obedecido a ritos que eram observados em toda parte?
O primeiro cuidado do fundador é escolher o local da nova cidade. Mas essa
escolha, coisa grave, e da qual se crê depender o destino do povo, sempre foi
deixada à decisão dos deuses. Se Rômulo fosse grego, teria consultado o
oráculo de Delfos; se fosse samnita, teria seguido o animal sagrado, o lobo ou
o picanço. Latino, muito vizinho dos etruscos, iniciado na ciência augural(4),
pede aos deuses que lhe revelem sua vontade pelo vôo dos pássaros. Os
deuses apontam-lhe o Palatino.
Chegado o dia da fundação, oferece primeiramente um sacrifício. Seus
companheiros enfileiram-se ao seu redor, acendem um fogo de ramos, e cada
um deles pula através das chamas(5). A explicação desse rito é que, para o ato
que se vai cumprir, é necessário que o povo esteja puro: ora, os antigos
julgavam purificar-se de toda mancha física ou moral pulando através da
chama sagrada.
Depois que essa cerimônia preliminar preparou o povo para o grande ato da
fundação, Rômulo cava um pequeno fosso de forma circular, onde lança um
torrão, por ele trazido da cidade de Alba(6). Depois, cada um de seus
companheiros, um por um, lança no mesmo lugar um pouco de terra, trazida
de seu país de origem. Esse rito é notável, e revela nesses homens um
pensamento que é preciso assinalar. Antes de chegar ao Palatino, eles
moravam em Alba, ou em alguma outra cidade vizinha. Lá estava seu lar, lá
seus pais haviam vivido, e estavam sepultados. Ora, a religião proibia
abandonar a terra onde o lar estava fixado e onde repousavam os antepassados
divinos. Era preciso, pois, para se livrarem de toda impiedade, que cada um
daqueles homens usasse de uma ficção, e que levasse consigo, sob o símbolo
de um torrão de terra, o solo sagrado em que seus antepassados estavam
sepultados, e ao qual estavam ligados os manes. O homem não podia mudarhttp://
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se sem levar consigo a terra e seus ancestrais. Era necessário que observasse
esse rito para que pudesse dizer, mostrando o novo lugar que adotara: Esta é
ainda a terra de meus pais: Terra patruum, patria, aqui é minha pátria, porque
aqui estão os manes de minha família.
O fosso onde cada um lançara um pouco de terra chamava-se mundus; ora,
essa palavra designava, especialmente na antiga língua religiosa, a região dos
manes(7). Desse mesmo lugar, segundo a tradição, os manes dos mortos
escapavam três vezes por ano, desejosos de rever a luz por um momento(8).
Não vemos ainda, nessa tradição, o verdadeiro pensamento dos homens
antigos? Lançando ao fosso um torrão de terra da antiga pátria, acreditavam
encerrar nela também as almas dos antepassados. Essas almas, ali reunidas,
deviam receber culto perpétuo, e velar sobre seus descendentes. Rômulo,
nesse mesmo lugar, levantou um altar, e acendeu o fogo. Este foi o fogo
sagrado da nova cidade(9).
Ao redor desse fogo devia erguer-se a cidade, como a casa se eleva ao redor
do lar doméstico. Rômulo traça um sulco, que marca os limites. Ainda aqui os
mínimos detalhes estão fixados pelo ritual. O fundador deve servir-se de uma
relha de cobre; a charrua é puxada por um touro branco e uma vaca da mesma
cor. Rômulo, de cabeça coberta, trajando vestes sacerdotais, segura ele mesmo
a rabiça da charrua, e a dirige, entoando preces. Seus companheiros o seguem,
observando religioso silêncio. À medida que a relha levanta torrões de terra,
lançam-nos cuidadosamente para o interior do recinto, a fim de que nenhuma
parcela daquela terra sagrada fique do lado do estrangeiro(10).
Esses limites traçados pela religião são invioláveis. Nem o estrangeiro, nem o
cidadão têm o direito de transpô-los. Pular por cima desse pequeno sulco é ato
de impiedade; a tradição romana diz que o irmão do fundador havia cometido
esse sacrilégio, e o havia pago com a vida(11).
Mas, para que se pudesse entrar na cidade, e sair dela, o sulco era
interrompido em alguns lugares; para isso Rômulo levantava a relha; esses
intervalos chamavam-se portae, as portas da cidade(12).
Sobre o sulco sagrado, ou um pouco atrás, levantam-se depois muralhas,
também sagradas(13). Ninguém poderá tocá-las, mesmo para restaurá-las,
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sem permissão dos pontífices. De ambos os lados dessa muralha, um espaço
de alguns pés é reservado à religião; chamam-no pomoerium; não se permite
passar por ali a charrua, nem levantar ali construção alguma(14).
Tal foi, de acordo com uma multidão de testemunhos antigos, a cerimônia da
fundação de Roma. Aos que perguntarem como a lembrança dessa cerimônia
pôde se conservar até os escritores que no-la transmitiram, responderemos que
ela era lembrada cada ano, à memória do povo, por uma festa de aniversário, a
que chamavam dia natal de Roma(15). Essa festa foi celebrada em toda a
antiguidade, de ano em ano, e o povo romano ainda a celebra na mesma data
de outrora, no dia 21 de abril: assim é que os homens, através de suas
incessantes transformações, ficam fiéis aos velhos costumes!
Não podemos supor razoavelmente que esses ritos tenham sido imaginados
pela primeira vez por Rômulo. Pelo contrário, é certo que muitas cidades
antes de Roma foram fundadas da mesma maneira. Varrão disse que esses
ritos eram comuns ao Lácio e à Etrúria. Catão, o Antigo, que, para escrever
seu livro Origines, havia consultado os anais de todos os povos italianos,
informa-nos que ritos análogos eram observados por todos os fundadores de
cidades. Os etruscos possuíam livros litúrgicos, onde estava consignado o
ritual completo dessas cerimônias(16).
Os gregos, como os italianos, acreditavam que o local de uma cidade devia ser
escolhido e revelado pela divindade. Assim, quando queriam fundar alguma,
consultavam o oráculo de Delfos(17). Heródoto assinala como ato de
impiedade ou de loucura o fato de o espartano Dória ter ousado construir uma
cidade sem consultar o oráculo, e sem praticar nenhuma das cerimônias
prescritas, e o piedoso historiador não se surpreende ao ver que uma cidade
assim construída, contra as regras, não tenha durado mais de três anos(18).
Tucídides, recordando o dia da fundação de Esparta, menciona os cantos
piedosos e os sacrifícios daquele dia(19). O mesmo historiador nos diz que os
atenienses possuíam ritual particular, e que jamais fundavam uma colônia sem
obedecê-lo(20). Pode-se ver em uma comédia de Aristófanes um quadro
bastante exato da cerimônia usada em tais casos. Quando o poeta imaginou a
alegre fundação da cidade das Aves, pensava certamente nos costumes que
eram observados na fundação das cidades dos homens; assim, pôs em cena
um sacerdote que acendia o fogo invocando os deuses, um poeta que cantava
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hinos, e um adivinho que recitava oráculos.
Pausânias percorria a Grécia nos tempos de Adriano. Chegando a Messênia,
fez com que os sacerdotes lhe contassem a história da fundação da cidade de
Messena, e assim nos transmitiu sua narrativa(21). O acontecimento não era
muito antigo; dera-se nos tempos de Epaminondas. Três séculos antes os
messênios haviam sido expulsos de seu país, e desde esse tempo viviam
dispersos entre os outros gregos, sem pátria, mas guardando com piedoso
cuidado seus costumes e sua religião nacional. Os tebanos queriam reconduzilos
ao Peloponeso, para estabelecer um inimigo ao lado de Esparta, mas o
mais difícil era fazer com que os messênios se decidissem. Epaminondas, que
os conhecia como homens supersticiosos, achou bom espalhar um oráculo,
que predizia a esse povo a volta para a antiga pátria. Aparições miraculosas
atestaram que os deuses nacionais dos messênios, que os haviam traído à
época da conquista, voltavam a ser-lhes favoráveis. Esse povo tímido decidiuse
então a voltar para o Peloponeso, atrás de um exército tebano. Mas tratavase
de saber onde levantariam a cidade, porque nem se podia pensar em
reocupar as antigas cidades do país: elas haviam sido manchadas pela
conquista. Para escolher o lugar em que se estabeleceriam, não tinham o
recurso ordinário de consultar o oráculo de Delfos, porque a Pítia estava do
lado de Esparta. Por felicidade, os deuses possuíam outros meios de revelar
suas vontades; um sacerdote dos messênios teve um sonho, no qual um dos
deuses de sua nação lhe apareceu, e lhe disse que ia estabelecer-se sobre o
monte Itoma, e que convidava o povo a segui-lo. Sendo assim indicado o local
da nova cidade, restava ainda conhecer os ritos necessários para a fundação,
mas os messênios os haviam esquecido; eles não podiam, aliás, adotar os dos
tebanos, nem de outro povo qualquer, e não sabiam como construir a cidade.
Muito a propósito, outro messênio sonhou que os deuses mandaram que se
dirigisse ao monte Itoma, procurasse um seixo, que se encontrava ao pé de um
mirto, e cavasse a terra nesse local. Ele obedeceu, e descobriu uma urna, e
nessa urna folhas de estanho, sobre as quais se encontrava gravado o ritual
completo da cerimônia sagrada. Os sacerdotes imediatamente fizeram cópias,
e o inscreveram nos livros sagrados. E ninguém deixou de acreditar que a urna
fora ali depositada por um antigo rei dos messênios, antes da conquista do
país.
Uma vez de posse do ritual, iniciou-se a fundação. Os sacerdotes, em primeiro
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lugar, ofereceram um sacrifício; invocaram os antigos deuses de Messênia, os
Dioscuros, o Júpiter de Itoma, os antigos heróis, os antepassados conhecidos e
venerados. Todos esses protetores do país, aparentemente o haviam
abandonado, de acordo com as crenças dos antigos, no dia em que o inimigo
tomou posse de suas terras; conjuraram-nos então a voltar. Pronunciaram-se
fórmulas, que deviam ter por efeito determiná-los a habitar a nova cidade em
comum com os cidadãos. Isso é que era importante: fixar os deuses em sua
companhia era o que mais lhes importava, e podemos acreditar que a
cerimônia religiosa não tivesse outra finalidade. Assim como os companheiros
de Rômulo cavaram um fosso, e acreditaram depositar nele seus antepassados,
assim os contemporâneos de Epaminondas chamavam a si seus heróis, seus
antepassados divinos, os deuses do país. Acreditavam assim, por meio de
fórmulas e de ritos, ligá-los ao solo que iam ocupar, e encerrá-los dentro dos
limites que iam traçar. Assim, diziam-lhes: Vinde conosco, ó seres divinos!
Habitai nesta cidade em nossa companhia. O primeiro dia transcorreu
com esses sacrifícios e essas preces. No dia seguinte traçaram-se os limites,
enquanto o povo cantava hinos religiosos.
Surpreendemo-nos, à primeira vista, quando vemos nos autores antigos que
não havia cidade, por mais antiga que fosse, que não pretendesse conhecer o
nome do fundador e a data da fundação. É que uma cidade não podia perder a
lembrança da cerimônia sagrada que havia marcado seu nascimento, porque
cada ano celebrava esse aniversário por um sacrifício. Atenas, como Roma,
também festejava seu dia natalício(22).
Muitas vezes acontecia que colonos ou conquistadores se estabeleciam em
uma cidade já construída. Não tinham necessidade de construir casas, porque
nada lhes impedia a que ocupassem as dos vencidos. Mas eram obrigados a
observar a cerimônia da fundação, isto é, tinham de assentar o próprio lar, e
fixar em sua nova morada os deuses nacionais. É por isso que lemos em
Tucídides e em Heródoto que os dórios fundaram Esparta, e os jônios Mileto,
embora esses dois povos tenham encontrado as cidades já construídas, e muito
antigas.
Esses costumes nos dizem claramente o que era uma cidade no pensamento
dos antigos. Fechada dentro de limites sagrados, estendendo-se ao redor do
altar, a cidade era o domicílio religioso, que recebia deuses e homens. Tito
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Lívio dizia de Roma: Não há nesta cidade lugar que não esteja impregnado
de religião, e que não esteja ocupado por alguma divindade... Os deuses têm
nela sua morada. O que Tito Lívio dizia de Roma, qualquer um podia
dizer da própria cidade, porque, se havia sido fundada de acordo com os ritos,
recebera em seu recinto os deuses protetores, que estavam como que
implantados em seu solo, e não deviam abandoná-lo jamais. Toda cidade era
um santuário; toda cidade podia ser chamada santa(23).
Como os deuses estavam para sempre ligados à cidade, o povo não devia
abandonar nunca o local onde seus deuses estavam fixados. A esse respeito
havia um acordo mútuo, uma espécie de contrato entre deuses e homens. Os
tribunos da plebe disseram certo dia que Roma, devastada pelos gauleses, não
era mais que um montão de ruínas, e que a cinco léguas dali havia uma cidade
completamente construída e bela, bem situada, e sem habitantes, desde que os
romanos a haviam conquistado; era necessário, pois, abandonar Roma
destruída, e mudar para Veios. Mas o piedoso Camilo respondeu-lhes: Nossa
cidade foi fundada religiosamente; os próprios deuses designaram seu lugar, e
nela se estabeleceram em companhia de nossos pais. Embora em ruínas, ela é
ainda a morada de nossos deuses nacionais. Os romanos ficaram em
Roma.
Algo de sagrado e de divino ligava-se naturalmente àquelas cidades que os
deuses haviam levantado(24), e que continuavam a impregnar, com sua
presença. Sabemos que as tradições romanas prometiam a Roma a eternidade.
Cada cidade tinha tradições semelhantes. Todas as cidades eram construídas
para serem eternas.
CAPÍTULO V
O CULTO DO FUNDADOR. A LENDA DE ENÉIAS
O fundador era o homem que realizava o ato religioso, sem o qual uma cidade
não podia existir. Era o fundador que assentava o lar, onde devia brilhar
eternamente o fogo sagrado; era ele que, com suas preces e ritos, chamava os
deuses, fixando-os para sempre na nova cidade.
Podemos imaginar o respeito que dedicavam a esse homem sagrado. Durante
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sua vida, os homens viam nele o autor do culto e o pai da cidade; morto,
tornava-se um antepassado comum para todas as gerações que se sucediam; o
fundador era para a cidade o que o primeiro antepassado era para a família,
um lar familiar. Sua lembrança perpetuava-se como o fogo do lar que havia
acendido. Dedicavam-lhe um culto, consideravam-no deus, e a cidade o
adorava como sua providência. Sacrifícios e festas renovavam-se cada ano
sobre seu túmulo(1).
Todos sabem que Rômulo era adorado, que tinha templo e sacerdotes. Os
senadores puderam matá-lo mas não puderam privá-lo de um culto ao qual
tinha direito como fundador(2). Cada cidade adorava do mesmo modo aquele
que a havia fundado: Cécrops e Teseu, considerados como sucessivos
fundadores de Atenas, tinham seus templos na cidade. Abdera oferecia
sacrifícios a seu fundador Timésios, Tera a Teras, Delos a Ânios, Cirene a
Batos, Mileto a Neléia, Anfípolis a Hagnon(3). Nos tempos de Pisístrato,
Milcíades fundou uma colônia no Quersoneso da Trácia; essa colônia instituiulhe
um culto depois de sua morte, de acordo com o costume. Hierão de
Siracusa, fundador da cidade de Etna, recebeu ali depois o culto dos
fundadores(4).
Não havia nada mais caro ao coração de uma cidade que a lembrança de sua
fundação. Quando Pausânias visitou a Grécia, no século segundo de nossa era,
cada cidade sabia dizer-lhe o nome do fundador, com sua genealogia, e os
principais fatos de sua existência. Esse nome e esses fatos não podiam ser
esquecidos, porque faziam parte da religião, e eram lembrados cada ano nas
cerimônias sagradas.
Conserva-se a memória de um grande número de poemas gregos que tinham
por tema a fundação de cidades. Filócoro, cantou a fundação de Salamina, Íon
a de Quios, Criton a de Siracusa, Zopiro a de Mileto; Apolônio, Hermógenes,
Helânico e Diocles, haviam composto sobre o mesmo tema poemas e
histórias. Talvez não houvesse uma cidade que não possuísse um poema, ou,
pelo menos, um hino sobre o ato sagrado que lhe dera origem.
Entre todos os antigos poemas que tinham por tema a fundação de uma
cidade, há um que ainda existe, porque, se o tema tornava-o caro a uma
cidade, suas belezas tornaram-no precioso para todos os povos e para todos os
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séculos. Sabemos que Enéias fundou Lavínio, de onde se originaram albanos
e romanos, e que, por conseqüência, era considerado o fundador de Roma.
Sobre ele estabeleceu-se um conjunto de tradições e lembranças, que
encontramos já consignadas nos versos do velho Névio e nas histórias de
Catão, o Antigo. Virgílio aproveitou-se desse tema, e escreveu o poema
nacional da cidade de Roma.
O tema da Eneida é a chegada de Enéias, ou melhor, o transporte dos deuses
de Tróia para a Itália. O poeta canta o homem que atravessou os mares para
fundar uma cidade, e levar seus deuses para o Lácio:
dum conderet urbem
Inferretque deos Latio.
Não devemos julgar a Eneida de acordo com nossas idéias modernas. Há
quem se queixe às vezes por não encontrar em Enéias audácia, arrojo, paixão,
cansado do epíteto de piedoso, que se repete continuamente. Admiramo-nos
por ver esse guerreiro consultar seus penates com cuidado tão escrupuloso,
invocar por qualquer motivo uma divindade, levantar os braços para o céu
quando se tratava de combater, deixar-se levar pelos oráculos através dos
mares, e derramar lágrimas à vista do perigo. Criticam-lhe até sua frieza para
com Dido, e chegam a acusá-lo de insensível:
Nullis ille movetur
Fletibus, aut voces ullas tractabilis audit.
Não se trata aqui de um guerreiro, ou de um herói de romance. O poeta quer
mostrar-nos um sacerdote. Enéias é o chefe de um culto, o homem sagrado, o
fundador divino, cuja missão é salvar os penates da cidade:
Sum pius Æneas raptos qui ex hoste Penates
Classe veho mecum.
Sua qualidade dominante deve ser a piedade, e o epíteto que o poeta lhe aplica
mais freqüentemente é também o que melhor lhe cabe. Sua virtude deve ser
uma fria e altiva impersonalidade, que faça dele, não um homem, mas um
instrumento dos deuses. Por que procurar nele paixões? Não tem direito a
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elas; deve recalcá-las no fundo do coração:
Multa gemens multoque animum labefactus amore,
Jussa tamen divum insequitur.
Em Homero Enéias já era um personagem sagrado, um grande sacerdote, que
o povo venerava como um deus, e que Júpiter preferia a Heitor. Em
Virgílio, é o guarda e salvador dos deuses de Tróia. Durante a noite que
consumou a ruína da cidade, Heitor apareceu-lhe em sonhos. Tróia dizlhe
este confia-te seus deuses; procura uma nova cidade. E ao mesmo
tempo entregou-lhe os objetos sagrados, estatuetas protetoras, e o fogo do lar
que não devia extinguir-se. Esse sonho não é uma simples figura, inventada
pela fantasia do poeta. Pelo contrário, é o fundamento sobre o qual repousa
todo o poema, porque é por ele que Enéias se tornou depositário dos deuses da
cidade, revelando-se-lhe então sua missão sagrada.
A cidade de Tróia desapareceu, mas não a cidade troiana; graças a Enéias, o
fogo sagrado não se extinguiu, e os deuses têm ainda um culto. A cidade e os
deuses fogem com Enéias, e percorrem os mares, à procura de um lugar onde
possam estabelecer-se:
Considere Teucros
Errantesque deos agitataque numina Trojae...
Enéias procura uma morada fixa, por pequena que seja, para os deuses de seus
pais:
Dis sedem exiguam patriis.
Mas a escolha dessa morada, à qual o destino da cidade estará ligado para
sempre, não depende dos homens, mas dos deuses. Enéias consulta os
adivinhos e interroga os oráculos. Não marca para si mesmo a rota e a meta:
deixa-se conduzir pela divindade:
Italiam non sponte sequor.
Gostaria de parar na Trácia, em Creta, na Sicília, em Cartago, com Dido: fata
obstant. Entre ele e seu desejo de repouso, entre ele e seu amor, sempre se
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
interpõe a vontade dos deuses, a palavra revelada, fata.
Não nos devemos enganar: o verdadeiro herói do poema são os deuses de
Tróia, aqueles mesmos deuses que um dia serão os deuses de Roma. O tema
da Eneida é a luta dos deuses romanos contra a divindade hostil. Obstáculos
de toda natureza procuram detê-los:
Tantae molis erat romanam condere gentem!
Pouco faltou para que a tempestade não os engolisse, ou para que o amor de
uma mulher não os cativasse. Mas eles triunfam de tudo, e chegam à meta
desejada:
Fata viam inveniunt.
Eis o que devia despertar singularmente o interesse dos romanos. Nesse
poema viam seu fundador, sua cidade, suas instituições, suas crenças, seu
império, porque sem esses deuses a cidade de Roma não existiria(5).
CAPÍTULO VI
OS DEUSES DA CIDADE
Não nos devemos esquecer de que, nos tempos antigos, o que constituía o
vínculo de toda sociedade era o culto. Assim como o altar doméstico
mantinha unidos a seu redor os membros de uma família, assim o culto de
uma cidade era a reunião daqueles que tinham os mesmos deuses protetores, e
que celebravam os atos religiosos no mesmo altar.
O altar da cidade estava fechado dentro de um edifício, que os gregos
chamavam pritaneu(1), e os romanos templo de Vesta(2).
Não havia nada mais sagrado em uma cidade que esse altar, sobre o qual o
fogo sagrado estava sempre aceso. É verdade que essa grande veneração logo
se enfraqueceu na Grécia, porque a imaginação grega deixou-se levar pela
beleza dos templos, a riqueza das lendas, a beleza das estátuas. Mas em Roma
não se deu o mesmo. Os romanos nunca perderam a convicção de que o
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destino da cidade estava ligado ao lar, que representava seus deuses(3). O
respeito que se dedicava às vestais prova a importância de seu sacerdócio(4).
Se um cônsul encontrasse uma no caminho, mandava abaixar diante dela as
armas. Em compensação, se uma vestal deixasse apagar o fogo, ou maculasse
o culto, faltando a seus deveres de castidade, a cidade, que então se julgava
ameaçada de perder seus deuses, vingava-se da mesma enterrando-a viva(5).
Certo dia o templo de Vesta esteve em risco de ser queimado por um incêndio
na redondeza, e Roma ficou alarmada, porque sentia que todo seu futuro
estava em perigo. Passado este, o senado ordenou ao cônsul que procurasse
descobrir os autores do incêndio, e o cônsul logo acusou a alguns habitantes
de Cápua, que se encontravam em Roma. Não porque houvesse alguma prova
contra eles, mas porque raciocinou desta maneira: Um incêndio ameaçou
nosso lar; esse incêndio, que devia destruir toda nossa grandeza, e cortar
nossos destinos, não poderia ser atiçado senão pela mão de nossos mais cruéis
inimigos. Ora, não temos inimigos mais encarniçados que os habitantes de
Cápua, cidade atualmente aliada de Aníbal, e que aspira ocupar nosso lugar,
como capital da Itália. Esses homens, portanto, é que quiseram destruir o
templo de Vesta, nosso eterno lar, penhor e garantia de nossa grandeza futura
(6). Assim um cônsul, dominado por idéias religiosas, julgava que os
inimigos de Roma não haviam encontrado meio mais seguro de vencê-la do
que destruir-lhe o lar. Vemos aí as antigas crenças: o lar público era o
santuário da cidade, que a fizera nascer e que a conservava.
Assim como o culto do lar doméstico era secreto, e somente a família podia
tomar parte no mesmo, assim o culto do lar público era interditado aos
estrangeiros. Ninguém, a não ser os cidadãos, podia assistir aos sacrifícios. O
simples olhar de um estranho manchava o ato religioso(7).
Cada cidade tinha deuses próprios, que não pertenciam senão a ela. Esses
deuses eram ordinariamente da mesma natureza que os da religião primitiva
das famílias. Como eles, chamavam-nos de lares, penates, gênios, demônios,
heróis(8); sob todos esses nomes havia almas humanas divinizadas pela
morte. Já vimos que, na raça indo-européia, o homem tivera a princípio o
culto da força invisível e imortal, que sentia em si mesmo. Aqueles gênios ou
heróis eram quase sempre antepassados do povo(9). Os corpos haviam sido
enterrados, quer na própria cidade, quer em seus arredores, e como, de acordo
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com as crenças que relatamos acima, a alma não abandonava o corpo, esses
mortos divinos ficavam ligados ao solo onde jaziam seus ossos. Do fundo de
seus túmulos, velavam sobre a cidade, protegiam o país, dos quais eram de
algum modo chefes e senhores, Essa expressão de chefes do país, aplicada aos
mortos, encontra-se em um oráculo dirigido pela Pítia a Sólon: Rende
culto aos chefes do país, os mortos que habitam debaixo da terra(10).
Essas opiniões provinham do grande poder que as antigas gerações haviam
atribuído à alma humana depois da morte. Todo homem que houvesse
prestado grandes serviços à cidade, desde o que a fundara, até o que lhe
alcançara uma vitória ou aperfeiçoara suas leis, tornava-se um deus para essa
cidade(11). Nem era necessário ter sido grande homem ou benfeitor; bastava
haver impressionado vivamente a imaginação dos contemporâneos, e ter-se
tornado objeto de uma tradição popular para se tornar herói, isto é, um morto
poderoso, cuja proteção era desejada e cuja cólera era temida. Os tebanos
continuaram durante dez séculos a oferecer sacrifícios a Etéocles e a Polinice
(12). Os habitantes de Acanto rendiam culto a um persa, morto entre eles
durante a expedição de Xerxes(13). Hipólito era venerado como deus em
Trezena(14). Pirro, filho de Aquiles, era deus em Delfos, unicamente porque
ali morrera, e ali fora enterrado(15). Crotona rendia culto a um herói, somente
porque, quando vivo, fora o homem mais belo da cidade(16). Atenas adorava
como um de seus protetores a Euristeu, que, no entanto, era argiano; Eurípides
explica-nos o nascimento desse culto, quando faz aparecer em cena Euristeu
prestes a morrer, e o faz dizer aos atenienses: Enterrem-me na Ática: eu vos
serei propício, e do seio da terra serei para vosso país um hóspede protetor
(17). Toda a tragédia de Édipo em Colônia repousa nessas crenças: Creon
e Teseu, isto é, Tebas e Atenas, disputam o corpo de um homem que vai
morrer e tornar-se deus; Édipo, de acordo com a fábula, decide-se por Atenas,
e marca o lugar onde quer ser enterrado: Morto, não serei diz ele um
habitante inútil para esta região(18); eu vos defenderei contra vossos
inimigos; serei para vós escudo mais forte que o de milhões de combatentes
(19); meu corpo, adormecido sob a terra, saciar-se-á com o sangue dos
guerreiros tebanos(20).
Os mortos, fossem quais fossem, eram os guardas do país, sob a condição de
lhes renderem culto. Os megarianos perguntaram um dia ao oráculo de
Delfos o modo pelo qual sua cidade poderia ser feliz; o deus respondeu que
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ela o seria se tivessem o cuidado de deliberar sempre de acordo com o maior
número; eles compreenderam que por essas palavras o deus designava os
mortos, que são, com efeito, mais numerosos que os vivos; em conseqüência,
construíram a sala de conselho no mesmo lugar onde se levantavam as
sepulturas dos heróis(21). Era grande felicidade para uma cidade possuir
mortos de algum modo notáveis. Mantinéia falava com orgulho dos ossos de
Arcas; Tebas fazia o mesmo a respeito de Gerião; o mesmo acontecia com
Messênia relativamente aos ossos de Arístômenes(22). Para conseguirem
essas preciosas relíquias às vezes usavam de astúcia. Heródoto conta as
artimanhas em as quais os espartanos roubaram os ossos de Orestes(23). É
verdade que esses ossos, aos quais estava unida a alma do herói, deram
imediata vitória aos espartanos. Desde que Atenas adquiriu poder, seu
primeiro ato foi apoderar-se dos ossos de Teseu, que haviam sido enterrados
na ilha de Siro, e levantar-lhe um templo na cidade, para aumentar o número
dos deuses protetores.
Além desses heróis e desses gênios, os homens possuíam deuses de outra
espécie, como Júpiter, Juno, Minerva, para os quais o espetáculo da natureza
havia atraído seus pensamentos. Mas vimos que essas criações da inteligência
humana tiveram por muito tempo o caráter de divindades domésticas ou
locais. A princípio esses deuses não foram imaginados como guardiões de
todo o gênero humano; acreditava-se que cada um deles pertencia
propriamente a uma família ou a uma cidade.
Destarte, era costume que cada cidade, além dos heróis, tivesse ainda um
Júpiter, uma Minerva, ou alguma outra divindade, que associava a seus
primeiros penates e ao primitivo lar. Na Grécia e na Itália havia uma multidão
de divindades políadas. Cada cidade tinha alguns deuses, que a habitavam(24).
Os nomes de muitas dessas divindades estão esquecidos; por acaso conservouse
a lembrança do deus Satranas, que pertencia à cidade de Elis; da deusa
Dindimenes, que pertencia a Tebas; de Soteria, de Ægium; de Britomartis, de
Creta; de Hibléia, de Hibla. Os nomes de Zeus, Atenas, Hera, Júpiter, Minerva
e Netuno, nos são mais conhecidos, e sabemos que às vezes eram aplicados às
divindades políadas. Mas não vamos concluir pela identidade dos nomes a
identidade dos deuses; havia uma Atenas em Atenas e uma em Esparta: eram
duas deusas diferentes(25). Grande número de cidades tinham Júpiter como
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divindade políada; eram tantos os Júpiteres quantas as cidades. Na lenda da
guerra de Tróia vemos uma Palas que combate pelos gregos, e entre os
troianos há outra Palas, que recebe culto, e que protege seus adoradores(26).
Dir-se-á que a mesma divindade figurava em ambos os exércitos? Não,
certamente, porque os antigos não atribuíam aos deuses o dom da ubiqüidade
(27). As cidades de Argos e de Samos tinham cada qual uma Hera políada;
não se tratava da mesma deusa, porque era representada nas duas cidades com
atributos diferentes. Roma tinha uma Juno; a cinco léguas de lá, na cidade de
Veios, havia outra Juno; e tanto uma não era a outra, que vemos o ditador
Camilo, no assédio de Veios, dirigir-se à Juno do inimigo, a fim de conjurá-la
a abandonar a cidade etrusca, e passar para seu lado. Senhor da cidade, ele
toma a estátua, muito persuadido de que arrebata uma deusa, e a transporta
devotamente para Roma. Roma teve desde então duas Junos protetoras. A
mesma história, alguns anos depois, deu-se com um Júpiter, que outro ditador
levou de Prenesta, quando Roma já possuía três ou quatro deles(28).
A cidade que possuía divindade própria não queria que esta protegesse os
estrangeiros, e não permitia que a mesma fosse adorada por eles. O templo,
quase sempre não era acessível senão aos cidadãos. Somente os argivos
tinham direito de entrar no templo da deusa Hera, de Argos. Para entrar no de
Atenas, era necessário ser ateniense(29). Os romanos, que adoravam a duas
Junos, não podiam entrar no templo de uma terceira Juno, que se erguia na
pequena cidade de Lanúvio(30).
Devemos reconhecer que os antigos, com exceção de algumas raras
inteligências de elite, jamais representaram a Deus como ser único, exercendo
sua ação sobre o universo. Cada um de seus inumeráveis deuses possuía um
pequeno domínio: a família, a tribo, a cidade; esse era o mundo que bastava à
providência de cada um. Quanto ao deus do gênero humano, alguns filósofos
conseguiram adivinhá-lo, os mistérios de Elêusis puderam fazê-lo entrever aos
mais inteligentes de seus iniciados, mas o povo jamais acreditou. Durante
muito tempo o homem não compreendeu o ser divino senão como uma força
que o protegia pessoalmente, e cada homem, ou cada grupo de homens, quis
ter deuses próprios. Ainda hoje, entre os descendentes dos gregos, vêem-se
rústicos camponeses rezando fervorosamente a seus santos, mas não se sabe
se eles têm idéia de Deus; cada um deles quer ter entre os santos um protetor
particular, uma providência especial. Em Nápoles, cada bairro tem sua
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Madona; o lazzarone ajoelha-se diante da Madona de sua rua e insulta a da
rua vizinha; não é raro encontrar-se dois facchini discutindo ou brigando a
facadas pelos méritos de suas respectivas madonas. Atualmente, isso constitui
exceção, que encontramos apenas entre alguns povos, e em determinadas
classes. Mas essa era a regra geral entre os antigos.
Cada cidade tinha seu corpo de sacerdotes, que não dependia de nenhuma
autoridade estrangeira. Entre os sacerdotes de duas cidades não havia nenhum
vínculo, nenhuma comunicação, nenhuma troca de ensinamentos ou de ritos.
Se se passava de uma cidade para outra, encontravam-se outros deuses, outros
dogmas, outras cerimônias. Os antigos tinham livros litúrgicos, mas os de uma
cidade não se assemelhavam aos de outra. Cada cidade tinha seu livro de
preces e de práticas, que eram mantidos no maior segredo, julgando
comprometer a religião, e seu próprio destino, se os deixassem nas mãos de
estrangeiros. Assim, a religião era absolutamente civil, tomando essa palavra
em seu sentido antigo, isto é, no de especial para cada cidade(31).
Em geral o homem não conhecia senão os deuses da própria cidade, e não
honrava ou respeitava senão a eles. Cada um podia repetir o que, em uma
tragédia de Ésquilo, um estranho diz aos argivos: Não temo os deuses de
vosso país, e nada devo a eles(32).
Cada cidade esperava a salvação desses deuses. Invocavam-nos nos perigos,
dizendo-lhes: Deuses desta cidade, não deixeis que ela seja destruída,
juntamente com nossas casas e lares... Ó tu que habitas há tanto tempo em
nossa terra, serias capaz de traí-la? Ó vós todos, guardas de nossas torres, não
as entregueis ao inimigo(33). Destarte, era para assegurar sua proteção
que os homens rendiam-lhes culto. Eram deuses ávidos de ofertas:
prodigavam-lhas, a fim de que cuidassem da salvação da cidade Não nos
esqueçamos de que a idéia de um culto puramente moral, de uma adoração
espiritual, não é muito antiga na humanidade. Nas idades antigas o culto
consistia em nutrir os deuses, em dar-lhes tudo o que lhes lisonjeasse os
sentidos: carnes, bolos, vinhos, perfumes, roupas, jóias, danças e música. Em
troca, exigiam deles benefícios e serviços. Assim, na Ilíada, Crises diz a seu
deus: Durante muito tempo queimei para ti touros gordos; hoje, ouve meus
votos, e lança tuas flechas contra meus inimigos. Algures, os troianos,
invocando sua deusa, oferecem-lhe uma bela veste, e prometem-lhe doze
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
bezerras, se ela salvar Ílion(34). Há sempre um contrato entre deuses e
homens; a piedade destes não é gratuita, e aqueles não dão nada por nada. Em
Ésquilo, os tebanos se dirigem a suas divindades políadas, e lhes dizem: Sede
nossa defesa; nossos interesses são comuns: se a cidade prospera, ela honra os
deuses. Mostrai que amais nossa cidade; pensai no culto que esse povo vos
rende, e lembrai-vos dos pomposos sacrifícios que vos são oferecidos(35).
Esse pensamento é expresso cem vezes pelos antigos; Teógnis diz que Apolo
salvou Mégara do ataque dos persas, a fim de que a cidade lhe oferecesse
cada ano brilhantes hecatombes(36).
Por isso as cidades não permitiam que os estranhos apresentassem ofertas às
divindades políadas, ou entrassem em seus templos(37). Para que os deuses
não velassem senão sobre elas, era necessário que não recebessem culto senão
dela. Os deuses não sendo honrados senão naquela cidade, se desejavam a
continuação dos sacrifícios e das hecatombes, que lhes eram caros, eram
obrigados a defender a cidade, a torná-la eterna, rica e poderosa.
Ordinariamente, com efeito, os deuses esforçavam-se muito por suas cidades;
vede em Virgílio, como Juno se esforça e trabalha para que Cartago alcance
um dia o império do mundo. Cada um desses deuses, como a Juno de Virgílio,
interessava-se apenas pela grandeza de sua cidade. Os deuses tinham os
mesmos interesses que os homens, seus concidadãos. Em tempos de guerra,
marchavam para as batalhas entre eles. Vemos em Eurípides um personagem
que diz à aproximação da batalha: Os deuses que combatem conosco não são
menos fortes que os que estão do lado de nossos inimigos(38). Os
eginetos jamais entraram em combate sem levar consigo as estátuas de seus
heróis nacionais, os eácidas. Os espartanos levavam a todas as expedições os
tindáridas(39). Na batalha, deuses e cidadãos auxiliavam-se mutuamente, e,
quando venciam, era porque todos haviam cumprido com seu dever. Se, pelo
contrário, eram vencidos, os deuses eram os culpados pela derrota;
repreendiam-nos, por terem desempenhado mal o papel de defensores da
cidade; chegavam às vezes até a destruir-lhes os altares, e a arremessar pedras
contra seus templos(40).
Se uma cidade era vencida, acreditava-se que seus deuses estavam vencidos
com ela(41). Se era conquistada, seus deuses também ficavam cativos.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
É verdade que sobre esse último ponto as opiniões eram incertas, e variavam.
Muitos estavam persuadidos de que uma cidade jamais podia ser conquistada
enquanto lá residissem os deuses; se sucumbia, é porque antes havia sido
abandonada por eles. Quando Enéias vê os gregos senhores de Tróia, grita que
os deuses da cidade haviam partido, desertando de seus templos e altares(42).
Em Ésquilo, o coro dos tebanos exprime a mesma crença à aproximação do
inimigo, e conjura os deuses a não abandonar a cidade(43).
Em virtude dessa opinião, para tomar uma cidade era indispensável fazer com
que saíssem antes os deuses. Os romanos usavam para isso de certa fórmula,
que tinham em seus rituais, e que Macróbio nos conservou: Ó poderoso, que
tens sob tua proteção a cidade, eu te adoro e te peço a graça de abandonar esta
cidade e este povo, de deixar estes templos, estes lugares sagrados, e de
afastar-se deles, vindo à minha casa, em Roma, entre os meus. Que nossa
cidade, nossos templos, nossos lugares sagrados te sejam mais agradáveis e
mais caros; toma-nos sob tua proteção. Se assim o fizeres, erguerei um templo
em tua honra(44). Ora, os antigos estavam convencidos de que havia
fórmulas de tal modo eficazes e poderosas que, se as pronunciassem
exatamente, e sem mudar uma só palavra, a divindade não podia resistir ao
pedido dos homens. O deus, assim chamado, passava para o lado do inimigo,
e a cidade era conquistada(45).
Encontramos na Grécia idênticas opiniões e idéias análogas. Ainda nos
tempos de Tucídides, quando se sitiava uma cidade, não se deixava de dirigir
uma invocação a seus deuses, para que permitissem que ela fosse capturada
(46). Muitas vezes, em vez de usar de uma fórmula para conquistar a
divindade, os gregos preferiam raptar habilmente sua estátua. Todos
conhecem a lenda de Ulisses roubando a Palas dos troianos. Em outra época,
os eginetas, querendo mover guerra a Epidauro, começaram por roubar duas
estátuas protetoras da cidade, transportando-as para seu país(47).
Heródoto conta que os atenienses queriam mover guerra contra os eginetas;
mas a empresa era arriscada, porque Egina tinha um herói protetor de grande
poder e de singular fidelidade: era Éaco. Os atenienses, depois de refletir
maduramente, adiaram por trinta anos a execução de seu intento, ao mesmo
tempo em que levantavam em seu país uma capela ao deus Éaco, e lhe
rendiam culto. Estavam persuadidos de que, se esse culto fosse prestado sem
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
interrupção durante trinta anos, o deus não pertenceria mais aos eginetas, mas
aos atenienses. Parecia-lhes, com efeito, que um deus não podia aceitar por
muito tempo gordas vítimas, sem se tornar obrigado para com aqueles que
lhas ofereciam. Éaco, portanto, seria enfim forçado a abandonar os interesses
dos eginetas, e a dar a vitória aos atenienses(48).
Em Plutarco encontramos outra história. Sólon queria que Atenas se tornasse
senhora da pequena ilha de Salamina, que pertencia então aos mégaros.
Consultou o oráculo. Este lhe respondeu: Se queres conquistar a ilha, é
preciso que antes conquiste o favor dos heróis que a protegem e que a
habitam. Sólon obedeceu; em nome de Atenas ofereceu sacrifícios aos
dois principais heróis salaminos. Os heróis não resistiram aos dons que lhes
faziam, passaram para o lado de Atenas, e a ilha, privada de seus protetores,
foi conquistada(49).
Em tempos de guerra, se os sitiantes procuravam apoderar-se das divindades
da cidade, os assediados, por sua vez, procuravam conservá-las o melhor que
podiam. Às vezes amarravam o deus com correntes, para não deixar que
desertassem. Outras vezes, escondiam-no de todos os olhares, para que o
inimigo não o pudesse encontrar. Ou ainda, opunham à fórmula, pela qual o
inimigo tentava subornar o deus, uma outra fórmula, que tinha a virtude de
retê-lo. Os romanos haviam imaginado um meio que lhes parecia mais seguro:
mantinham em segredo o nome do principal e mais poderoso de seus deuses
protetores; pensavam assim que o inimigo jamais poderia chamá-lo pelo
nome, que ele jamais passaria para seu lado, e que a cidade jamais seria
conquistada(50).
Por aí se vê a idéia singular que os antigos faziam de seus deuses. Por muito
tempo não conseguiram conceber a divindade como poder supremo. Cada
família tinha sua religião doméstica, cada cidade sua religião nacional. Uma
cidade era como uma pequena igreja completa, com seus deuses, seus
dogmas, seu culto. Essas crenças nos parecem assaz rústicas, mas foram as
crenças do povo mais espiritual daqueles tempos, e exerceram sobre esse
povo, e sobre o povo romano, uma ação tão forte, que nelas teve origem a
maior parte de suas leis, de suas instituições e de sua história.
CAPÍTULO VII
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A RELIGIÃO DA CIDADE
1.° Os banquetes públicos
Vimos acima que a principal cerimônia do culto doméstico era um banquete,
chamado sacrifício. Comer um alimento preparado sobre o altar foi, segundo
parece, a primeira forma dada pelo homem ao ato de religião. A necessidade
de se comunicar com a divindade era satisfeita por esse banquete, para o qual
a própria divindade era convidada, recebendo a parte que lhe cabia.
A principal cerimônia do culto da cidade consistia também em um banquete
semelhante; devia ser realizado em comum, por todos os cidadãos, em honra
das divindades protetoras. O costume desses banquetes públicos era universal
na Grécia; acreditava-se que a salvação da cidade dependia de sua realização
(1).
A Odisséia nos dá a descrição de um desses banquetes sagrados: nove longas
mesas são servidas para o povo de Pilos; em cada uma delas sentam-se
quinhentos cidadãos, e cada grupo imola nove touros em honra dos deuses.
Esse banquete, chamado o banquete dos deuses, começa e termina por
libações e preces(2). O antigo costume dos banquetes em comum é assinalado
também pelas mais antigas tradições atenienses; conta-se que Orestes,
assassino da própria mãe, chegara a Atenas no mesmo instante em que a
cidade, reunida ao redor do rei, ia realizar o ato sagrado(3). Encontram-se
ainda esses banquetes públicos nos tempos de Xenofonte; em determinados
dias do ano, a cidade imola numerosas vítimas, e o povo partilha de suas
carnes(4). Idênticos costumes existiam em toda parte(5).
Além desses imensos banquetes, onde todos os cidadãos se reuniam, e que
não podiam ser realizados senão nas festas solenes, a religião prescrevia que
cada dia houvesse uma refeição sagrada. Para isso, alguns homens escolhidos
pela cidade deviam comer juntos, em seu nome, no recinto do pritaneu, na
presença do lar e dos deuses protetores. Os gregos estavam convencidos de
que, se esse banquete deixasse de ser celebrado por um único dia, o Estado
ficava ameaçado de perder o favor dos deuses(6).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Em Atenas, a sorte designava os homens que tomar parte no banquete comum,
e a lei punia severamente os que se recusavam a cumprir com esse dever(7).
Os cidadãos que se sentavam à mesa sagrada ficavam revestidos
momentaneamente de caráter sacerdotal; chamavam-nos parasitas; essa
palavra, que depois se tornou pejorativa, começou a existir como título sagrado
(8). Nos tempos de Demóstenes, os parasitas haviam desaparecido, mas os
prítanes ainda eram obrigados a comer juntos no pritaneu. Em todas as
cidades havia salas destinadas às refeições em comum(9).
Observando-se como as coisas se passavam nessa refeição, se reconhece
perfeitamente tratar-se de cerimônia religiosa. Cada conviva tinha uma coroa
na cabeça; com efeito, era costume antigo coroar-se de folhas ou de flores
cada vez que se realizava algum ato solene de religião. Quanto mais ornado
de flores se estiver diziam mais se está seguro de agradar aos deuses;
mas, se sacrificas sem estar coroado, eles se afastam de ti(10). Uma
coroa dizia-se ainda é a mensageira de feliz augúrio que a prece envia à
sua frente até os deuses(11). Os convivas, pela mesma razão, estavam
vestidos de roupas brancas: o branco era a cor sagrada entre os antigos, a cor
que agradava aos deuses(12).
A refeição começava invariavelmente por uma oração e libações; cantavam-se
hinos(13). A natureza das iguarias e a espécie do vinho que se devia servir
eram regulados pelo ritual de cada cidade. Afastar-se o mínimo que fosse do
costume seguido pelos antepassados, apresentar um prato novo, ou alterar o
ritmo dos hinos sagrados, era impiedade grave, pela qual toda a cidade se
responsabilizava diante dos deuses. A religião chegava até a fixar a natureza
dos vasos que deviam ser usados, quer para o cozimento dos alimentos, quer
para o serviço da mesa. Numa cidade era necessário que os pães fossem
colocados em cestos de cobre; em outra não se deviam usar senão vasos de
terra. Até a forma dos pães estava minuciosamente marcada(14). Essas regras
da velha religião nunca deixaram de ser observadas, e os banquetes fúnebres
sempre conservavam sua primitiva simplicidade. Crenças, costumes, estado
social, tudo mudou; os banquetes continuaram invariáveis, porque os gregos
sempre foram muito escrupulosos observadores da religião nacional.
É justo acrescentar que, quando os convivas haviam satisfeito à religião,
comendo os alimentos prescritos, podiam imediatamente depois começar
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
outro banquete mais suculento, e mais de acordo com o gosto de cada um.
Isso acontecia muito em Esparta(15).
O costume dos banquetes sagrados estava em vigor tanto na Itália quanto na
Grécia. Aristóteles afirma que já existiam entre os antigos enótrios, oscos e
ausônios(16). Virgílio conservou sua lembrança por duas vezes na Eneida: o
velho Latino recebe os enviados de Enéias, não em sua casa, mas em um
templo consagrado pela religião dos antepassados, onde se realizam os
festins sagrados, após a imolação das vítimas, e onde todos os chefes de
família sentam-se juntos em longas mesas. Mais adiante, quando Enéias
chega à casa de Evandro, encontra-o celebrando o sacrifício; o rei está no
meio povo; todos, coroados de flores, e sentados à mesma mesa, cantam um
hino em louvor do deus da cidade(17).
Esse costume perpetuou-se em Roma, onde houve sempre uma sala destinada
aos banquetes dos representantes das cúrias. O senado, em determinados dias,
realizava um banquete sagrado no Capitólio(18). Nas festas solenes as mesas
eram preparadas nas ruas, e todo o povo nelas tomava lugar. No início, esses
banquetes foram presididos pelos pontífices; mais tarde confiou-se essa tarefa
a sacerdotes especiais, chamados epulones(19).
Esses costumes antigos dão-nos idéia do vínculo estreito que unia os membros
de uma cidade. A associação humana era uma religião; seu símbolo era o
banquete público.
Imaginemos uma daquelas pequenas sociedades primitivas reunidas, pelo
menos os chefes de família, em uma mesma mesa, vestidos de branco e
coroados de flores; todos fazem juntos a libação, recitam as mesmas preces,
cantam os mesmos hinos, comem a mesma comida, preparada sobre o mesmo
altar; no meio deles estão presentes os antepassados, e os deuses protetores
participam da refeição. Daí se originou a união íntima entre os membros da
cidade. Vem a guerra, e os homens se lembrarão, segundo uma expressão
antiga, de que não devem abandonar o companheiro de fileiras, com o qual
ofereceu os mesmos sacrifícios e as mesmas libações, e a cujo lado participou
dos banquetes sagrados(20). Com efeito, esses homens estão ligados por
algo mais forte que o interesse, a convenção, o costume, une-os a comunhão
sagrada, piedosamente realizada na presença dos deuses da cidade.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
2.° As festas e o calendário
Em todos os tempos e em todas as sociedades o homem sempre quis honrar
seus deuses com festas, e estabeleceu dias especiais, nos quais o sentimento
religioso reinaria sozinho em sua alma, sem distraí-la com pensamentos e
ocupações terrenas. No número de dias que deve viver, estabeleceu a parte
que caberia aos deuses.
Cada cidade havia sido fundada com ritos, que no pensamento dos antigos
tinham por efeito fixar dentro de seus limites os deuses nacionais. Era
necessário que a virtude desses ritos fosse rejuvenescida todos os anos por
nova cerimônia religiosa; chamavam a essa festa dia natalício; todos os
cidadãos deviam celebrá-la.
Tudo o que era sagrado dava lugar a uma festa. Havia a festa dos muros da
cidade amburbalia a dos limites do território ambarvalia. Nesses
dias os cidadãos formavam uma grande procissão, vestidos de branco e
coroados de folhas; davam a volta na cidade ou no território cantando preces;
à frente caminhavam os sacerdotes, conduzindo as vítimas, que eram imoladas
no fim da cerimônia(1).
Vinha em seguida a festa do fundador. Depois, cada um dos heróis da cidade,
cada uma daquelas almas que os homens invocavam como protetoras, passou
a reclamar um culto; Rômulo tinha o seu, assim como Sérvio Túlio, e muitos
outros, até a ama de Rômulo e a mãe de Evandro. Atenas, por sua vez, tinha a
festa de Cécrops, a de Erecteu, a de Teseu, e celebrava cada um dos heróis do
país, como o tutor de Teseu, Euristeu, Androgeu, e uma multidão de outros.
Havia ainda as festas dos campos, a do trabalho, a da semeadura, a da
floração, a das vindimas. Na Grécia, como na Itália, cada ato da vida do
agricultor era acompanhado de sacrifícios, e os trabalhos eram executados
enquanto se recitavam hinos sagrados. Em Roma, os padres fixavam, cada
ano, o dia em que deviam começar a vindima, e o dia em que se podia beber
vinho novo. Tudo era regulado pela religião. A religião mandava que se
podasse a vinha, porque afirmava que era impiedade oferecer aos deuses uma
libação com vinho de parreira não podada(2).
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Toda cidade tinha uma festa para cada uma das divindades que havia adotado
como protetoras, e que eram muitas. À medida que se introduzia o culto de
uma divindade nova, fazia-se necessário encontrar um dia do ano para
consagrar-lhe. O que caracterizava as festas religiosas era a proibição do
trabalho(3), a obrigação de se estar alegre, os cantos e jogos públicos. A
religião acrescentava: Guardai-vos nesses dias de vos maltratardes uns aos
outros(4).
O calendário não era outra coisa que a sucessão das festas religiosas. Também
havia sido organizado pelos padres. Em Roma, por muito tempo, não houve
calendário escrito; no primeiro dia do mês, o pontífice, depois de oferecer o
sacrifício, convocava o povo, e dizia quais festas haveria no correr do mês.
Essa convocação se chamava calatio, de onde vem o nome de calendas, que
se dava a esse dia(5).
O calendário não era regulado nem pelo curso da lua, nem pelo curso aparente
do sol, mas apenas pelas leis da religião, leis misteriosas, que somente os
padres conheciam. Às vezes a religião prescrevia o encurtamento do ano, e
outras vezes seu alongamento. Podemos fazer idéia dos calendários
primitivos, ao observarmos que entre os albanos o mês de maio tinha vinte e
dois dias, e que março tinha trinta e seis(6).
Compreende-se que o calendário de uma cidade não podia assemelhar-se em
nada ao de outra, porque a religião não era a mesma entre elas, e as festas,
como os deuses, diferiam. O ano não tinha a mesma duração em duas cidades.
Os meses não tinham os mesmos nomes; Atenas chamava-os diferentemente
de Tebas, e Roma de modo muito diverso de Lavínio. Isso porque o nome de
cada mês era tirado ordinariamente da festa principal que nele se celebrava:
ora, as festas não eram as mesmas. As cidades não concordavam em começar
o ano na mesma época, nem em contar a série dos anos a partir de uma mesma
data. Na Grécia, a festa de Olímpia tornou-se, com o tempo, uma data comum,
mas que não impediu que cada cidade tivesse seu ano particular. Na Itália,
cada cidade contava os anos a partir do dia da fundação.
3.° O censo e a lustração
Entre as cerimônias mais importantes da religião da cidade, havia uma que se
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chamava purificação(1). Celebrava-se todos os anos em Atenas(2); em Roma
só se realizava de quatro em quatro anos. Os ritos então observados, e o nome
que lhe davam indicam que essa cerimônia devia ter por virtude o resgate das
faltas cometidas pelos cidadãos contra o culto. Com efeito, religião tão
complicada era fonte de terror para os antigos; como a fé e a pureza de
intenções de nada valiam, e como toda a religião consistia na prática
minuciosa de inumeráveis prescrições, sempre se devia temer por alguma
negligência, por alguma omissão ou erro, e nunca se tinha certeza de estar ao
seguro dos golpes de cólera ou de rancor de algum deus. Era necessário,
portanto, para tranqüilizar o coração do homem, um sacrifício expiatório. O
magistrado encarregado de realizá-lo em Roma era o censor; antes do censor,
era o cônsul; antes do cônsul, o rei começava por certificar-se, com o
auxílio dos auspícios, de que os deuses aceitavam de bom grado a cerimônia.
Depois convocava o povo por intermédio do arauto, que se servia para esse
efeito de uma fórmula sacramental(3). Todos os cidadãos, no dia estabelecido,
reuniam-se fora dos muros; lá, todos em silêncio, o magistrado dava três
voltas em torno da assembléia, levando à frente três vítimas: um carneiro, um
porco e um touro (suovetaurile); a reunião desses três animais constituía, entre
gregos e romanos, o sacrifício expiatório. Sacerdotes e vitimários seguiam a
procissão; ao término da terceira volta, o magistrado pronunciava uma
fórmula de oração, e imolava as vítimas(4). A partir daquele momento
apagava-se qualquer mancha, reparava-se qualquer negligência no culto, e a
cidade ficava em paz com os deuses.
Para ato dessa natureza, e de tal importância, duas coisas eram necessárias:
uma, que nenhum estranho se introduzisse entre os cidadãos, o que perturbaria
e viciaria a cerimônia; outra, que todos os cidadãos estivessem presentes, sem
o que a cidade poderia continuar impura. Era necessário, portanto, que essa
cerimônia religiosa fosse precedida pelo recenseamento dos cidadãos. Em
Roma e em Atenas contavam-se os cidadãos com o maior cuidado; é provável
que seu número fosse declarado pelo magistrado na fórmula da oração, e em
seguida inscrito no relatório que o censor redigia sobre a cerimônia.
A perda do direito de cidadania era o castigo imposto a quem não se
inscrevesse no censo. Essa severidade tem uma explicação. O homem que não
tomava parte no ato religioso, que não havia sido purificado, em cujo proveito
não se dissera a oração e não se imolara a vítima, não podia mais ser membro
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da cidade. Para os deuses presentes à cerimônia ele não era mais cidadão(5).
Podemos julgar da importância dessa cerimônia pelo poder exorbitante do
magistrado que a presidia. O censor, antes de começar o sacrifício, dispunha o
povo de acordo com certa ordem: aqui os senadores, ali os cavaleiros, mais
adiante as tribos. Senhor absoluto daquele dia, ele fixava o lugar de cada
homem nas diferentes categorias. Depois, quando todos estavam colocados de
acordo com as prescrições, realizava o ato sagrado. Ora, resultava daí que a
partir desse dia, até a lustração seguinte, cada homem conservava na cidade a
categoria que o censor lhe havia consignado durante a cerimônia. Era senador,
se havia sido colocado entre os senadores; cavaleiro, se havia figurado entre
os cavaleiros. Simples cidadão, ele fazia parte da tribo em cujas fileiras havia
sido colocado; e destarte, se o magistrado recusara-se a admiti-lo na
cerimônia, deixava de ser cidadão. Assim, o posto que cada um havia ocupado
no ato religioso, e onde os deuses o haviam visto, era o posto que conservava
na cidade durante quatro anos. Daí se originou o imenso poder dos censores.
A essa cerimônia assistiam somente os cidadãos; mas suas mulheres, crianças,
escravos, bens, móveis e imóveis, eram, de algum modo, purificados na
pessoa do chefe da família. É por isso que, antes do sacrifício, cada um devia
declarar ao censor o número de pessoas e coisas que dependiam dele(6).
A lustração era realizada nos tempos de Augusto com a mesma exatidão e os
mesmos ritos que nos tempos mais antigos. Os pontífices encaravam-na ainda
como ato religioso; os homens de Estado nela viam, pelo menos, uma
excelente medida administrativa.
4.° A religião na assembléia, no senado, no tribunal e no exército. O triunfo
Não havia um só ato da vida pública no qual não fizessem intervir os deuses.
Como estavam sob o domínio da idéia de que os deuses ora eram excelentes
protetores, ora cruéis inimigos, o homem jamais ousava agir sem estar seguro
de seus favores.
O povo não se reunia em assembléia senão em dias permitidos pela religião.
Lembravam-se de que a cidade sofrera um desastre em determinado dia: sem
dúvida isso acontecera porque naquele dia os deuses estavam ou ausentes ou
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irritados; sem dúvida ainda, todos os anos, pela mesma época, eles deviam
estar irritados, por razões desconhecidas aos mortais(1). Esse dia, portanto,
era nefasto para sempre: não se faziam reuniões, não se realizavam
julgamentos, a vida pública ficava suspensa(2).
Em Roma, antes de se abrir a sessão, era necessário que os áugures
assegurassem que os deuses eram propícios. A assembléia começava por uma
oração, que o áugure pronunciava e o cônsul depois repetia(3).
O mesmo acontecia entre os atenienses: a assembléia sempre se iniciava por
um ato religioso. Os sacerdotes ofereciam sacrifícios; traçava-se depois um
grande círculo, espargindo a terra com água lustral, e era dentro desse círculo
sagrado que os cidadãos se reuniam(4). Antes que algum orador tomasse a
palavra, pronunciava-se uma prece diante do povo em silêncio(5).
Consultavam-se também os auspícios, e, se aparecesse no céu algum sinal
pouco propício, a assembléia era dissolvida imediatamente(6).
A tribuna era lugar sagrado; o orador só podia subir à mesma com uma coroa
na cabeça(7), e durante muito tempo quis o costume que começasse o discurso
invocando os deuses.
O lugar de reunião do senado de Roma era sempre um templo. Se se
realizasse alguma sessão fora de lugar sagrado, as decisões tomadas seriam
consideradas nulas, porque os deuses haviam estado ausentes(8). Antes de
qualquer deliberação o presidente oferecia um sacrifício e pronunciava uma
oração. Na sala havia um altar, onde cada senador, ao entrar, derramava a
libação, enquanto invocava os deuses(9).
O senado de Atenas assemelhava-se nisto ao de Roma. A sala tinha também
um altar, um lar. Antes de cada sessão realizava-se um ato religioso. Todo
senador, ao entrar, aproximava-se do altar, e pronunciava uma oração(10).
Em Roma, como em Atenas, só se administrava justiça na cidade em dias
determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal
era realizada junto a um altar, e se iniciava com um sacrifício(11). Nos
tempos de Homero, os juízes se reuniam em recinto sagrado.
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Festo diz que nos rituais dos etruscos encontrava-se indicado o modo pelo
qual se devia fundar uma cidade, consagrar templos, distribuir as cúrias e as
tribos em assembléia, e dispor o exército em ordem de batalha. Todas essas
coisas eram marcadas nos rituais, porque todas diziam respeito à religião.
Na guerra a religião era, pelo menos, mais poderosa que na paz. Havia nas
cidades italianas colégios de sacerdotes chamados feciais, que presidiam,
como os arautos entre os gregos, a todas as cerimônias sagradas inspiradas
pelas relações internacionais. Um fecial, com a cabeça coberta por um véu de
lã, de acordo com os ritos, tendo os deuses, como testemunhas, declarava a
guerra, pronunciando uma fórmula sacramental(12). Ao mesmo tempo, o
cônsul, em vestes sacerdotais, fazia um sacrifício, e abria solenemente o
templo da divindade mais antiga e mais venerada da Itália, o templo de Jano
(13). Antes de partir para uma expedição, reunido o exército, o general
pronunciava preces e oferecia sacrifícios. O mesmo acontecia em Atenas e em
Esparta(14).
O exército em campanha ostentava a insígnia da cidade; a religião o seguia.
Os gregos levavam consigo estátuas de suas divindades. Todo exército, grego
ou romano, carregava um lar, sobre o qual se alimentava dia e noite o fogo
sagrado(15). O exército romano fazia-se acompanhar de áugures e de
pulários; todo o exército grego tinha o seu adivinho.
Observemos um exército romano no momento em que se dispõe para o
combate. O cônsul manda vir uma vítima, e a fere com o machado; a vítima
cai: suas entranhas devem indicar a vontade dos deuses. Um arúspice as
examina, e, se os sinais são favoráveis, o cônsul dá o sinal da batalha. As mais
hábeis disposições, as circunstâncias mais felizes de nada servem, se os
deuses não permitem o combate. A base da arte militar entre os romanos
consistia em jamais travar luta contra a vontade, quando os deuses fossem
contrários à batalha. É por isso que os romanos faziam de seu campo, todos os
dias, uma espécie de cidadela.
Observemos agora um exército grego, e tomemos por exemplo a batalha de
Platéias. Os espartanos estão dispostos em linhas, cada um em seu posto de
combate; todos ostentam coroas na cabeça; os tocadores de flauta fazem ouvir
hinos religiosos. O rei, um pouco atrás das fileiras, sacrifica vítimas. Mas as
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entranhas não dão sinais favoráveis, e o sacrifício tem que ser recomeçado.
Duas, três, quatro vítimas são sucessivamente imoladas. Durante esse tempo,
a cavalaria persa se aproxima, lança suas flechas, mata grande número de
espartanos. Os espartanos continuam imóveis, o escudo apoiado nos pés, sem
nem sequer defender-se do ataque inimigo. Eles esperam o sinal dos deuses.
Enfim, as vítimas apresentam sinais favoráveis: então os espartanos levantam
os escudos, empunham as espadas, combatem, e saem vencedores(16).
Depois de cada vitória oferecia-se outro sacrifício; essa é a origem do triunfo,
tão conhecido entre os romanos, e que não era menos usado entre os gregos.
Esse costume era conseqüência da opinião que atribuía a vitória aos deuses da
cidade. Antes da batalha o exército dirigia-lhes prece análoga a esta, que
lemos em Ésquilo: A vós, deuses, que habitais e possuis nosso território, se
nossas armas forem felizes, se nossa cidade for salva, eu vos prometo regar
vossos altares com o sangue dos cordeiros, imolar touros, e depor em vossos
templos sagrados os troféus conquistados pela lança(17). Em virtude
dessa promessa, o vencedor devia um sacrifício. O exército voltava à cidade
para cumpri-lo, e se dirigia ao templo, em longa procissão, cantando o hino
sagrado, thríambos(18).
Em Roma, a cerimônia era quase idêntica. O exército dirigia-se
processionalmente ao principal templo da cidade; os padres iam à frente do
cortejo, conduzindo vítimas para o sacrifício. Chegando ao templo, o general
imolava vítimas aos deuses. Enquanto caminhavam, os soldados ostentavam
coroas, como convinha a uma cerimônia sagrada, e cantavam um hino, como
na Grécia. Na verdade, tempo houve em que os soldados não tiveram
escrúpulo de substituir o hino sagrado por canções de caserna, ou por
zombarias contra o general. Mas, pelo menos, conservaram o costume de
repetir de quando em quando o antigo refrão: Io triumphe(19). E era esse
refrão sagrado que dava nome à cerimônia.
Assim, em tempo de paz como em tempo de guerra, a religião intervinha em
todos os atos. Achava-se presente em toda parte, como que envolvendo o
homem. A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, os banquetes, as
festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o império da
religião da cidade. A religião regulava todas as ações do homem, dispunha
todos os instantes de sua vida, fixava todos os seus hábitos. A religião
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
governava a criatura humana com autoridade tão absoluta, que nada lhe
escapava.
Seria fazer idéia bem falsa da natureza do homem acreditar que essa religião
dos antigos era uma impostura, e, por assim dizer, uma comédia. Montesquieu
pretende que os romanos inventaram o culto apenas para refrear o povo.
Nunca uma religião teve semelhante origem, e toda religião que surgiu apenas
em razão da utilidade pública não se manteve por muito tempo. Montesquieu
diz ainda que os romanos submetiam a religião ao Estado; o contrário é mais
verdadeiro; é impossível ler algumas páginas de Tito Lívio sem nos
impressionarmos com a absoluta dependência em que estavam os homens em
relação aos deuses. Nem romanos, nem gregos conheceram esses tristes
conflitos, tão comuns em outras sociedades, entre a Igreja e o Estado. Mas isto
deveu-se unicamente ao fato de, tanto em Roma, como em Esparta e em
Atenas, o Estado achar-se a serviço da religião; não que houvesse um colégio
de sacerdotes que impunha seu domínio. O Estado antigo não obedecia a um
sacerdote, mas estava submetido à própria religião. Estado e religião estavam
de tal modo unidos, que era impossível, não somente ter idéia de conflito
entre eles, mas mesmo distingui-los um do outro.
CAPÍTULO VIII
OS RITUAIS E OS ANAIS
O caráter e a virtude da religião dos antigos não era elevar a inteligência
humana à concepção do absoluto, ou abrir ao espírito ávido um caminho
brilhante, em cuja extremidade o homem pudesse entrever a Deus. A religião
era um conjunto mal concatenado de pequenas crenças, de pequenas práticas,
de ritos minuciosos. Não era necessário buscar-lhes o sentido; não era
necessário refletir ou considerar. A palavra religião não significava o que
significa para nós; sob essa palavra entendemos um corpo de dogmas, uma
doutrina sobre Deus, um símbolo de fé sobre os mistérios que estão em nós e
ao nosso redor; essa mesma palavra, entre os antigos, significava ritos,
cerimônias, atos de culto exterior. A doutrina não tinha muita importância: as
práticas é que eram importantes, obrigatórias e imperiosas. A religião era um
vínculo material, uma cadeia que mantinha o homem em escravidão. O
homem a inventara, e era governado por ela. Ele a temia, e não ousava nem
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
raciocinar, nem discutir, nem olhá-la de frente. Deuses, heróis, mortos, todos
exigiam dele um culto material, que ele observava, para torná-los amigos, e,
mais ainda, para não torná-los inimigos.
O homem pouco contava com sua amizade. Eram deuses invejosos, irritáveis,
sem afeições nem benevolência, amantes de guerrear com os homens(1). Nem
os deuses amavam o homem, nem o homem amava os deuses. O homem
acreditava em sua existência, mas às vezes preferia que não existissem. Temia
até os deuses domésticos ou nacionais, com medo de ser por eles traído. Sua
grande inquietação era cair no ódio desses seres invisíveis. Toda a vida
ocupavam-se em apaziguá-los paces deorum quaerere diz o poeta. Mas
como contentá-los? Como conquistar-lhes os favores? Julgaram achar a
solução no emprego de certas fórmulas. Tal oração, composta de tais palavras,
conseguira ser atendida; o que sem dúvida aconteceu porque fora ouvida pela
divindade, agira sobre ela, fora poderosa, mais poderosa que o próprio deus,
que não soubera resistir. Conservaram-se então os termos sagrados e
misteriosos dessa oração. Depois do pai, o filho passou a repeti-la.
Aparecendo o alfabeto, passaram a escrevê-la. Cada família, pelo menos cada
família religiosa, tinha um livro que continha as fórmulas das quais se
serviram os antepassados, e às quais os deuses haviam atendido. Era uma
arma que o homem usava contra a inconstância dos deuses. Mas não devia
mudar nem uma palavra, nem uma sílaba, nem, sobretudo, o ritmo segundo o
qual devia ser cantada, porque então a prece perderia a força, e os deuses
continuariam livres(2).
Mas a fórmula não era suficiente: havia ainda atos exteriores, cujos
pormenores eram minuciosos e imutáveis. Os menores gestos do sacrificador
e as menores partes de suas vestes eram determinados. Para se dirigir a um
deus, era necessário ter a cabeça coberta; para um outro, devia-se ter a cabeça
descoberta; para um terceiro, a bainha da toga devia estar levantada nos
ombros. Para certos atos, devia-se estar descalço. Havia orações que só eram
eficazes se o homem, depois de pronunciá-las, piruetasse sobre os
calcanhares, da esquerda para a direita. A natureza da vítima, a cor do pêlo, a
maneira de matá-la, a forma da faca, a espécie de madeira que se devia usar
para queimar as carnes, tudo isso estava determinado para cada deus pela
religião de cada família ou de cada cidade. Em vão os corações mais
fervorosos ofereciam aos deuses gordas vítimas; se um dos inumeráveis ritos
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
do sacrifício fosse negligenciado, tornar-se-ia nulo. A menor falta fazia de um
ato sagrado um ato sacrílego. A mais ligeira alteração perturbava e
transtornava a religião da pátria, e transformava os deuses protetores em
outros tantos inimigos cruéis. É por isso que Atenas era severa para com o
sacerdote que mudasse algo dos ritos antigos(3); é por isso que o senado de
Roma degradava os cônsules e ditadores que cometessem algum erro durante
os sacrifícios.
Todas essas fórmulas e práticas haviam sido legadas pelos antepassados, que
haviam experimentado sua eficácia. Não se deviam inventar inovações, mas
confiar no que haviam feito os antepassados; a suprema piedade consistia em
fazer como eles. Pouco importava que a crença se transformasse: ela podia
modificar-se à vontade através das idades, e tomar mil formas diversas, de
acordo com a reflexão dos sábios e a imaginação popular. Mas era da maior
importância que as fórmulas não fossem esquecidas, e que os ritos não fossem
modificados. Assim cada cidade tinha um livro, onde tudo isso era conservado.
O uso dos livros sagrados era universal entre os gregos, entre os romanos,
entre os etruscos(4). Às vezes o ritual era escrito sobre tabuletas de madeira,
outras vezes sobre tela; Atenas gravava seus ritos sobre placas de cobre, ou
em estelas de pedra, a fim de que não se deteriorassem(5). Roma tinha o livro
dos pontífices, o livro dos augúrios, o livro das cerimônias e a coletânea das
Indigitamenta. Não havia cidade que não possuísse uma coleção de velhos
hinos em honra de seus deuses(6); em vão a língua se transformava,
juntamente com os costumes e as crenças: as palavras e o rito continuavam
imutáveis, e nas festas continuavam a cantar os mesmos hinos, sem
compreendê-los.
Esses livros e cânticos, escritos pelos sacerdotes, eram guardados com grande
cuidado. Nunca, eram mostrados a estranhos. Revelar um rito ou uma fórmula
seria trair a religião da cidade, e entregar os próprios deuses ao inimigo. Para
maior precaução, escondiam-nos dos próprios cidadãos; somente os padres
podiam consultá-los.
No pensamento desses povos tudo o que era antigo era sagrado. Quando um
romano queria dizer que algo lhe era caro, dizia: Isto para mim é antigo.
Os gregos tinham uma expressão semelhante(7). As cidades agarravam-se ao
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
passado, porque no passado é que encontravam todos os motivos como todas
as regras da religião. Tinham necessidade de recordar, porque nas lembranças
e nas tradições é que se baseava todo o culto. Também a história tinha para os
antigos muito mais importância do que tem para nós. Ela existiu muito antes
que os Heródotos e os Tucídides; escrita ou não, simples tradição ou livro, a
história foi contemporânea do nascimento das cidades. Não havia cidade, por
mais pequena e obscura que fosse, que não desse a maior atenção em
conservar a lembrança do que se passava. Não se tratava de vaidade, mas de
religião. Uma cidade não se julgava com direitos de esquecer coisa alguma,
porque tudo em sua história estava ligado ao culto.
A história começava, com efeito, pelo ato da fundação, e declarava o nome
sagrado do fundador. Continuava com a lenda dos deuses da cidade e dos
heróis protetores. Ensinava as datas, a origem, a razão de cada culto, cujos
ritos obscuros explicava. Nela se enumeravam os prodígios que os deuses do
país haviam operado, e pelos quais haviam manifestado seu poder, sua
bondade ou sua cólera. Nela se descreviam as cerimônias pelas quais os
sacerdotes haviam contornado habilmente um mau presságio, ou apaziguado
as iras dos deuses. Nela se contavam as epidemias que haviam atacado a
cidade, e as fórmulas sagradas que as haviam debelado; o dia em que um
templo havia sido consagrado, e os motivos de um sacrifício ou de uma festa.
Nela se inscreviam todos os acontecimentos que podiam referir-se à religião,
as vitórias que provavam a assistência dos deuses, e nas quais viram muitas
vezes os deuses combater; as derrotas que indicavam sua cólera, e pelas quais
tiveram que instituir sacrifícios expiatórios. Tudo isso estava escrito para
ensinamento e piedade dos descendentes. Toda a história era a prova material
da existência dos deuses nacionais, porque os acontecimentos nela contidos
eram a forma visível sob a qual os deuses se haviam revelado de tempos em
tempos. Entre esses fatos, havia muitos que davam lugar a aniversários, isto é,
a sacrifícios, a festas, a jogos sagrados. A história da cidade declarava ao
cidadão o que ele devia acreditar, e tudo o que devia adorar.
A história também era escrita pelos sacerdotes. Roma tinha os anais dos
pontífices; os sacerdotes sabinos, samnitas e etruscos tinham outros
semelhantes(8). Entre os gregos, ficou-nos a lembrança dos livros ou anais
sagrados de Atenas, de Esparta, de Delfos, de Naxos, de Tarento(9). Quando
Pausânias percorreu a Grécia, nos tempos de Adriano, os sacerdotes de cada
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cidade contaram-lhe velhas histórias locais; eles não as inventaram; tinhamnas
aprendido em seus anais.
Essa espécie de história era apenas local. Começava na fundação, porque o
que era anterior a essa data não interessava em nada à cidade; é por isso que
os anciãos ignoravam tão completamente as origens de suas raças. A história
também não relatava senão os acontecimentos de que a cidade participara, e
não se preocupava com o resto do mundo. Cada cidade tinha sua história
especial, como tinha sua religião, seu calendário.
Podemos supor que esses anais das cidades eram muito secos, muito
estranhos, tanto pelo fundo quanto pela forma. Não eram obra de arte, mas
obra de religião. Mais tarde surgiram os escritores, narradores como
Heródoto, pensadores como Tucídides. A história saiu então da mão dos
sacerdotes, e se transformou. Desgraçadamente, esses belos e brilhantes
escritos nos deixam ainda saudosos dos velhos arquivos das cidades, e de tudo
o que eles continham sobre a vida íntima e as crenças dos antigos. Aqueles
inapreciáveis documentos, que pareciam mantidos em segredo, que não saíam
dos santuários, dos quais não se faziam cópias, e que somente os sacerdotes
podiam ler, desapareceram, deixando apenas uma fraca lembrança.
É verdade que essa lembrança tem grande valor para nós. Sem ela talvez
estivéssemos no direito de rejeitar tudo o que a Grécia e Roma nos contam de
suas antiguidades; todas essas narrativas, que nos parecem pouco verossímeis,
porque se afastam de nossos hábitos e de nossa maneira de pensar e de agir,
poderiam passar por produto da imaginação dos homens. Mas a lembrança
que nos ficou dos velhos anais, mostra-nos, pelo menos, o piedoso respeito
que os antigos nutriam pela história. Sabemos que naqueles arquivos os fatos
eram religiosamente guardados, à medida que iam sucedendo. Naqueles livros
sagrados cada página era contemporânea do acontecimento que relatava. Era
materialmente impossível alterar aqueles documentos, porque os padres
tinham-nos sob sua guarda, e a religião estava grandemente interessada em
que permanecessem inalteráveis. Nem era fácil ao pontífice, à medida que
escrevia as linhas, inserir entre elas, conscientemente, fatos contrários à
verdade, porque acreditava-se então que tudo o que acontecia era por vontade
dos deuses, que revelavam suas vontades, provocando nas gerações seguintes
recordações piedosas e atos sagrados; todo acontecimento que se dava na
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cidade passava imediatamente a fazer parte da religião do futuro. Com tais
crenças, compreende-se que tenham havido muitos erros involuntários,
resultado da credulidade, da predileção pelo maravilhoso, da fé nos deuses
nacionais; mas não podemos conceber mentiras voluntárias, porque teria sido
impiedade, seria violar a santidade dos anais, alterando a religião. Podemos
portanto afirmar que nesses velhos livros, se nem tudo era verdade, pelo
menos nada havia que o sacerdote não julgasse como tal. Ora, para o
historiador que procura desvendar a obscuridade desse tempo, é poderoso
motivo de confiança saber que, se tem de lidar com erros, pelo menos não tem
de lutar contra a impostura. Esses mesmos erros, tendo ainda a vantagem de
ser contemporâneos das antigas idades que estuda, podem revelar-lhe, senão
os pormenores dos acontecimentos, pelo menos as crenças sinceras dos
homens.
Havia também, ao lado dos anais, documentos escritos e autênticos, uma
tradição oral que se perpetuava por entre o povo de uma cidade; não tradições
vagas e indiferentes como as nossas, mas tradições amadas pela cidade, que
não variavam de acordo com a imaginação, e que não tinham liberdade para
modificar, porque fazia parte do culto, e se compunha de narrativas e cantos,
que se repetiam de ano em ano nas festas religiosas. Esses hinos sagrados e
imutáveis fixavam as lembranças, e reavivavam perpetuamente a tradição.
Sem dúvida, não se pode crer que essa tradição fosse tão exata quanto os
anais. O desejo de louvar os deuses podia ser mais forte que o amor à verdade.
Contudo, ela devia ser, pelo menos, o reflexo dos anais, e estar geralmente de
acordo com eles, porque os sacerdotes, que redigiam e liam esses anais, eram
os mesmos que presidiam às festas, onde essas velhas narrativas eram
cantadas.
Posteriormente, houve tempo em que esses anais foram divulgados. Roma
acabou por publicar os seus; tornaram-se conhecidos os de outras cidades da
Itália: os sacerdotes das cidades gregas não tiveram mais escrúpulos de contar
o que os seus livros continham(10). Esses documentos autênticos foram
estudados e compulsados. Formou-se uma escola de eruditos, desde Varrão e
Vérrio Flaco, até Aulo Gélio e Macróbio. Fez-se luz por toda a antiga história.
Corrigiram-se alguns erros, que se haviam introduzido na tradição, e que os
historiadores da época precedente haviam repetido; soube-se, por exemplo,
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que Porsena havia tomado Roma, e que se havia pago ouro aos gauleses. Teve
início então a idade da crítica histórica. Ora, é bem digno de nota que essa
crítica, que remontava às fontes e estudava os anais, nada encontrasse que lhe
desse o direito de rejeitar o conjunto histórico que os Heródotos e os Tito
Lívios haviam construído.
CAPÍTULO IX
GOVERNO DA CIDADE. O REI
1.° Autoridade religiosa do rei
Não é necessário imaginar uma cidade, ao nascer, deliberando sobre o
governo que vai escolher, procurando e discutindo leis, combinando suas
instituições. Não é assim que se formaram as leis ou que se estabeleceram os
governos. As instituições políticas da cidade nasceram com a própria cidade,
no mesmo dia; cada membro da cidade trazia-os consigo, porque elas estavam
em germe nas crenças e na religião de cada homem.
A religião prescrevia que o lar tivesse sempre um sacerdote supremo. Não
admitia que a autoridade sacerdotal fosse dividida. O lar doméstico tinha um
grão-sacerdote, que era o pai de família; o lar da cúria tinha seu curião ou
fratriarca; cada tribo tinha seu chefe religioso, que os atenienses chamavam de
rei da tribo. A religião da cidade devia também ter um pontífice.
Esse sacerdote do lar público usava o nome de rei; as vezes davam-lhe outros
títulos: como, entre os gregos, ele era antes de tudo sacerdote do pritaneu,
estes o chamavam de prítane; às vezes ainda chamavam-no de arconte. Sob
esses nomes diversos, rei, prítane e arconte, devemos ver um personagem que
é sobretudo chefe do culto, cuidando do lar. oferecendo sacrifícios,
pronunciando orações, presidindo a banquetes religiosos.
É visível que os antigos reis da Itália e da Grécia eram tão sacerdotes quanto
reis. Lemos em Aristóteles: O cuidado dos sacrifícios públicos da cidade
pertence de acordo com o costume religioso, não a sacerdotes especiais, mas a
esses homens, que velam pela dignidade do lar, chamados, de acordo com os
lugares, de reis, prítanes ou arcontes(1). Assim fala Aristóteles, o homem
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que melhor conheceu as instituições das cidades gregas. Essa passagem tão
precisa prova antes de mais nada que os três vocábulos, rei, prítane e arconte,
por muito tempo foram sinônimos; e isso é tão verdade que um historiador,
Charon de Lâmpsaco, escrevendo um livro sobre os reis da Lacedemônia,
intitulou-o: Arcontes e prítanes dos Lacedemônios(2). Acontece ainda que
o personagem que se chamava indiferentemente por um desses três nomes,
talvez pelos três ao mesmo tempo, era o sacerdote da cidade, e que o culto do
lar público era a fonte de sua dignidade e poder.
Esse caráter sacerdotal da realeza primitiva está claramente indicado pelos
escritores antigos. Em Ésquilo, as filhas de Dânao dirigem-se ao rei de Argos
nestes termos: Tu és o prítane supremo, tu, que velas sobre o lar deste país
(3). Em Eurípides, Orestes, assassino da própria mãe, diz a Menelau: É
justo que, como filho de Agamenon, eu reine sobre Argos. E Menelau
responde: E tu, assassino, estarás à altura de tocar os vasos sagrados da água
lustral para os sacrifícios? És digno de sacrificar as vítimas(4)? A
principal tarefa de um rei era, portanto, celebrar as cerimônias religiosas. Um
antigo rei de Sicion foi deposto, porque, manchando as mãos com um
assassínio, não estava mais em condições de oferecer sacrifícios(5). Não
podendo mais ser sacerdote, deixava de ser rei.
Homero e Virgílio, mostram-nos os reis continuamente ocupados com as
cerimônias sagradas. Sabemos por Demóstenes que os antigos reis da Ática
ofereciam eles próprios todos os sacrifícios prescritos pela religião da cidade,
e Xenofonte afirma que os reis de Esparta eram os chefes da religião
lacedemoniana(6). Os lucumons etruscos eram ao mesmo tempo magistrados,
chefes militares e pontífices(7).
Em Roma aconteceu o mesmo. A tradição representa seus reis sempre como
sacerdotes. O primeiro foi Rômulo, instruído na ciência augural(8), e que
fundou a cidade de acordo com os ritos da religião. O segundo foi Numa; ele
desempenhava diz Tito Lívio a maior parte das funções sacerdotais;
mas previu que seus sucessores, ocupados com muitas guerras, não poderiam
cuidar sempre dos sacrifícios, e instituiu os flâmines, para substituir os reis
quando estes se ausentassem de Roma. Assim, o sacerdócio romano não
era senão uma espécie de emanação da primitiva realeza(9).
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Aqueles reis-sacerdotes eram entronizados com cerimonial religioso. O novo
rei, conduzido sobre o cimo do monte Capitolino, sentava-se em um banco de
pedra, com o rosto voltado para o sul. À sua esquerda sentava-se um áugure,
com a cabeça coberta de fitas sagradas, empunhando o bastão augural. Este
traçava no espaço algumas linhas, pronunciava uma prece, e, pousando a mão
sobre a cabeça do rei, suplicava aos deuses que mostrasse com um sinal
visível se aquele chefe lhes convinha. Depois, quando um relâmpago, ou o
vôo dos pássaros manifestassem o assentimento dos deuses, o novo rei tomava
posse do cargo. Tito Lívio descreve essa cerimônia para a posse de Numa;
Dionísio afirma que ela se repetia para todos os reis, e, depois dos reis, para
todos os cônsules, e acrescenta ainda que em seu tempo era observada(10).
Tal costume tinha sua razão de ser: como o rei ia ser o chefe supremo da
religião, e como a cidade iria depender de suas preces e de seus sacrifícios,
todos tinham o direito de certificar-se de que o novo rei era aceito pelos
deuses.
Os antigos não nos relatam a maneira pela qual os reis de Esparta tomavam
posse de suas funções; apenas nos dizem que então se realizava uma
cerimônia religiosa(11). Podemos até observar, por velhos costumes, que
duraram até o fim da história de Esparta, que a cidade queria ter certeza de
que seus reis eram do agrado dos deuses. Para isso, interrogavam os deuses,
pedindo um sinal, seméion. Eis qual era este sinal, de acordo com Plutarco:
Cada nove anos, os éforos escolhiam uma noite bem clara, mas sem lua, e
sentavam-se em silêncio, os olhos fixos no céu. Se vissem uma estrela
atravessar o céu de um lado para outro, seus reis seriam culpados de alguma
falta para com os deuses. Privam-nos então da realeza, até que o oráculo de
Delfos lhes revele sua prescrição(12).
2.° Autoridade política do rei
Assim como na família a autoridade estava inerente ao sacerdócio, e o pai,
como chefe do culto doméstico, era ao mesmo tempo juiz e mestre, assim o
grão-sacerdote da cidade era também seu chefe político. O altar, de acordo
com expressão de Aristóteles(1), conferia-lhe a dignidade. Essa confusão de
sacerdócio e de poder nada tem de surpreendente. Encontramo-la na origem
de quase todas as sociedades, ou porque, na infância dos povos, somente a
religião era capaz de conseguir obediência, ou porque nossa natureza sente
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necessidade de não se submeter nunca a outro império, a não ser ao de uma
idéia moral.
Já dissemos como a religião da cidade estava presente em todas as coisas. O
homem sentia-se continuamente dependente dos deuses, e, por conseqüência,
do sacerdote colocado entre o céu e a terra. O sacerdote é que velava sobre o
fogo sagrado; era, como diz Píndaro, seu culto cotidiano que salvava cada dia
a cidade(2). Ele é que conhecia as fórmulas sagradas de oração, às quais os
deuses não sabiam resistir; no momento do combate, era ele que sacrificava a
vítima, e que atraía para o exército a proteção dos deuses. Era muito natural
que um homem armado de tal poder fosse aceito e reconhecido como chefe.
Como a religião se envolvia com o governo, a justiça, a guerra, resultou
necessariamente que o sacerdote se tornasse ao mesmo tempo magistrado, juiz
e chefe militar. Os reis de Esparta diz Aristóteles(3) têm três
atribuições: fazem os sacrifícios, comandam na guerra, administram a
justiça. Dionísio de Halicarnasso expressa-se nos mesmos termos a
respeito dos reis de Roma.
As regras que constituíram essa monarquia eram muito simples, e não foi
necessário procurá-las por muito tempo; derivaram das próprias regras do
culto. O fundador, que havia assentado o lar sagrado, era naturalmente seu
primeiro sacerdote. A hereditariedade era a regra constante, na origem, para a
transmissão do culto; quer o lar pertencesse a uma família ou a uma cidade, a
religião prescrevia que o cuidado de mantê-lo passasse sempre de pai para
filho. O sacerdócio foi, portanto hereditário, o mesmo acontecendo com o
poder(4).
Um fato bem conhecido da antiga história da Grécia prova de maneira
evidente que a realeza pertencia, em sua origem, ao homem que havia
assentado o lar da cidade. Sabe-se que as populações das colônias jônias não
se compunham de atenienses, mas era uma mistura de pelasgos, de eólios, de
abanteus, de cadmeanos. No entanto, todos os lares das novas cidades foram
assentados por membros da família religiosa de Codro. Daí resultou que esses
colonos, em vez de terem por chefes homens de suas raças, os pelasgos um
pelasgo, os abanteus um abanteu, os eólios um eólio, todos deram a realeza
em suas doze cidades aos codridas(5). Certamente esses personagens não
haviam adquirido sua autoridade pela força, porque eram quase os únicos
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atenienses que havia naquela numerosa aglomeração. Mas como haviam
construído os lares, a eles pertencia a tarefa de mantê-los. A realeza, portanto,
foi-lhes entregue sem contestação, e continuou hereditária em suas famílias.
Bato fundou Cirene, na África: os batíadas mantiveram-se por muito tempo na
posse da dignidade real. Proto fundara Marselha: os protíadas, de pai a filho,
aí exerceram o sacerdócio, e gozaram de grandes privilégios.
Não foi, portanto, a força que constituiu os chefes e reis nessas cidades
antigas. Nem seria verdade dizer-se que o primeiro rei foi apenas um soldado
feliz. A autoridade derivava, como o diz formalmente Aristóteles, do culto do
lar. A religião fez o rei na cidade, assim como constituíra o chefe de família
em cada casa. A crença, a indiscutível e imperiosa crença, dizia que o
sacerdote hereditário do lar era o depositário das coisas sagradas e o guarda
dos deuses. Como hesitar em obedecer a tal homem? O rei era um ser
sagrado; basiléis hierói diz Píndaro. Nele se vê, não um deus
propriamente, mas, pelo menos, o homem mais poderoso para conjurar a
cólera dos deuses(6), o homem sem cuja assistência nenhuma prece seria
eficaz, nenhum sacrifício seria aceito.
Essa realeza semi-religiosa e semi-política estabeleceu-se em todas as cidades,
desde seu nascimento, sem esforços da parte dos reis, sem resistência da parte
dos súditos. Na origem dos povos antigos não vemos as flutuações e lutas que
assinalam o doloroso nascimento das sociedades modernas. Sabemos quanto
tempo foi necessário, depois da queda do império romano, para que se
reencontrassem as regras de uma sociedade regular. A Europa viu durante
séculos, princípios opostos disputando o governo dos povos, e os povos às
vezes recusando qualquer organização social. Tal espetáculo não se vê nem na
antiga Grécia, nem na antiga Itália; sua história não se inicia por conflitos; as
revoluções somente apareceram no fim. Entre essas populações a sociedade
formou-se lentamente, gradualmente, longamente, passando da família à tribo,
e da tribo à cidade, mas sem choques, sem lutas. A realeza estabeleceu-se
naturalmente, primeiro na família, depois na cidade. Não foi imaginada pela
ambição de alguns, mas nasceu de uma necessidade que era manifesta aos
olhos de todos. Durante longos séculos ela foi pacífica, honrada e obedecida.
Os reis não tinham necessidade de força material; não tinham exércitos nem
finanças; mas, sustentados por crenças que tinham grande poder sobre a alma,
sua autoridade era santa e inviolável.
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Mais tarde, uma revolução, de que falaremos adiante, derrubou a realeza em
todas as cidades. Mas, ao cair, ela não deixou nenhum ódio no coração dos
homens. Esse desprezo mesclado de rancor, que ordinariamente se liga às
grandezas abatidas, jamais a feriu. Embora decaída, o respeito e o afeto dos
homens continuaram ligados à sua memória. Viu-se mesmo na Grécia algo
que não é muito comum na história: nas cidades em que a família real não se
extinguiu, não somente ela não foi expulsa, mas os próprios homens que a
haviam derrubado do poder continuaram a honrá-la. Em Éfeso, em Marselha,
em Cirene, a família real, privada do poder, continuou cercada pelo respeito
dos povos, conservando até o título e as insígnias da realeza(7).
Os povos estabeleceram o regime republicano, mas o nome de rei, longe de se
tornar injurioso, continuou a ser venerado. Costuma-se dizer que essa palavra
era odiada e desprezada: grande erro! Os romanos aplicavam-na aos deuses
em suas orações. Se os usurpadores jamais ousaram tomar esse título, não o
fizeram porque era odioso, mas porque era sagrado(8). Na Grécia, a
monarquia foi por muitas vezes restabelecida nas cidades; mas os novos
monarcas jamais se julgaram com o direito de se chamarem reis, e se
contentaram com a denominação de tiranos(9). O que constituía a diferença
desses dois nomes não eram as maiores ou menores qualidades morais que se
encontravam no soberano; não chamavam de rei um bom príncipe, e de tirano
um mau; era principalmente a religião que os distinguia um do outro. Os reis
primitivos haviam cumprido suas funções de sacerdotes, e recebiam sua
autoridade do lar; os tiranos da época posterior não passavam de chefes
políticos, e não deviam seu poder senão à força e à eleição.
CAPÍTULO X
O MAGISTRADO
A confusão da autoridade política e do sacerdócio na mesma pessoa não
cessou com a realeza. A revolução, que estabeleceu o regime republicano, não
dividiu funções cuja união parecia muito natural, e constituía então lei
fundamental da sociedade humana. O magistrado que substituiu o rei foi,
como ele, sacerdote e chefe político simultaneamente.
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Às vezes esse magistrado anual conservava o título sagrado de rei(1). Em
outros lugares, o nome de prítane, que lhe foi conservado, indicava sua
principal função(2). Em outras cidades prevaleceu o título de arconte. Em
Tebas, por exemplo, o primeiro magistrado era assim denominado, mas o que
Plutarco diz dessa magistratura mostra que ela pouco diferia do sacerdócio. O
arconte, enquanto estava no cargo, devia ostentar uma coroa(3), como
convinha a um sacerdote; a religião proibia-lhe deixar crescer os cabelos e
carregar objetos de ferro sobre sua pessoa, prescrições essas que o fazem
assemelhar-se um pouco aos flâmines de Roma. A cidade de Platéias tinha
também um arconte, e a religião dessa cidade ordenava que, durante sua
magistratura, se vestisse de branco(4), isto é, da cor sagrada.
Os arcontes atenienses, no dia em que tomavam posse do cargo, subiam à
acrópole com a cabeça coroada de mirto, e ofereciam sacrifício à divindade
políada(5). Era também costume que no exercício de suas funções usassem
uma coroa de folhas na cabeça(6). Ora, é certo que a coroa, que com o tempo
se tornou e se conservou como insígnia do poder, não era então mais que um
símbolo religioso, um sinal exterior, que acompanhava a oração e o sacrifício
(7). Entre os nove arcontes, o que era chamado rei era antes de tudo chefe da
religião; mas cada um de seus colegas também tinha alguma função sacerdotal
a cumprir, algum sacrifício a oferecer aos deuses(8).
Os gregos tinham uma expressão geral para designar os magistrados; eles
diziam oi en télei, que significa literalmente: aqueles que devem realizar o
sacrifício(9) velha expressão que indica a idéia que se fazia primitivamente
do magistrado. Píndaro diz desses personagens que, pelas dádivas que fazem
ao lar, asseguram a salvação da cidade.
Em Roma, o primeiro ato do cônsul era oferecer sacrifícios no foro. As
vítimas eram conduzidas para a praça pública; quando o pontífice as declarava
dignas de serem oferecidas, o cônsul as imolava com suas mãos, enquanto um
arauto ordenava à multidão um silêncio religioso, e um tocador de flauta fazia
ouvir a melodia sagrada(10). Poucos dias depois, o cônsul dirigia-se a
Lavinium, de onde procediam os penates romanos, e oferecia novo sacrifício.
Quando examinamos com um pouco de atenção o caráter do magistrado entre
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os antigos, vemos como se assemelha pouco aos chefes de Estado das
sociedades modernas. Sacerdócio, justiça e comando confundem-se em uma
só pessoa. O magistrado representa a cidade, que é tanto uma associação
religiosa quanto política. Tem nas suas mãos os auspícios, os ritos, as preces,
a proteção dos deuses. O cônsul é algo mais que um homem; é o intermediário
entre o homem e a divindade. À sua sorte está ligada a sorte de todos; é como
que o gênio tutelar da cidade. A morte de um cônsul é funesta à república(11).
Quando o cônsul Cláudio Nero abandona o exército para ir em socorro de seu
colega, Tito Lívio nos mostra como Roma está alarmada com a sorte do
exército; é que, privado do chefe, o exército ficava ao mesmo tempo privado
da proteção celeste; com o cônsul partiram os auspícios, isto é, a religião e os
deuses(12).
As demais magistraturas romanas, que foram, de algum modo, membros
sucessivamente destacados do consulado, reuniam como ele atribuições
sacerdotais e políticas. Em determinados dias, via-se o censor, com a coroa na
cabeça, oferecer sacrifício em nome da cidade, e ferir a vítima com suas mãos.
Os pretores, os edis curuis presidiam às festas religiosas(13). Não havia
magistrado que não realizasse algum ato sagrado, porque, no pensamento dos
antigos, toda autoridade devia ser de algum modo religiosa. Os tribunos da
plebe eram os únicos que não ofereciam sacrifícios, e por isso não eram
considerados verdadeiros magistrados. Veremos mais adiante que sua
autoridade era de natureza absolutamente excepcional.
O caráter sacerdotal que era inerente ao magistrado mostra-se sobretudo na
maneira pela qual era eleito. Aos olhos dos antigos os sufrágios dos homens
não pareciam suficientes para eleger o chefe da cidade. Enquanto durou a
realeza, parecia natural que esse chefe fosse designado pelo nascimento, em
virtude da lei religiosa que prescrevia que o filho sucedesse ao pai em todo
sacerdócio; o nascimento parecia revelar satisfatoriamente a vontade dos
deuses. Quando as revoluções suprimiram a realeza por toda parte, os homens
pareciam procurar, para suprir ao nascimento, um modo de eleição que os
deuses não pudessem desaprovar. Os atenienses, como muitos dos povos
gregos, não viram melhor meio que a escolha por sorteio. Mas importa que
não se faça idéia falsa a respeito desse processo, que se transformou em
motivo de acusação para a democracia ateniense, e para isso é necessário que
penetremos no pensamento dos antigos. Para eles o sorteio não era acaso: era
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a revelação da vontade divina. Assim como os templos tinham recursos para
adivinhar os segredos divinos, assim a cidade ia ao templo para escolher seu
magistrado. Os antigos estavam persuadidos de que os deuses designavam o
mais digno, fazendo sair seu nome da urna. Platão exprimia o pensamento dos
antigos quando afirmava: O homem designado pela sorte, nós dizemos que é
caro à divindade, e achamos justo que ele governe. Para todas as magistraturas
que diziam respeito às coisas sagradas, deixando à divindade a escolha dos
que lhe são agradáveis, confiamos na sorte. A cidade julgava assim
receber os magistrados dos deuses(14).
No fundo, e sob formalidades diferentes, as coisas se passavam do mesmo
modo em Roma. A designação do cônsul não cabia aos homens. A vontade ou
o capricho do povo não podia criar legitimamente um magistrado. Eis,
portanto, como se escolhia um cônsul. O magistrado em exercício, isto é, um
homem já na posse do caráter sagrado e dos auspícios, indicava entre os dias
fastos aquele em que o cônsul devia ser nomeado. Durante a noite precedente,
ele velava, ao ar livre, com os olhos fixos no céu, observando os sinais
enviados pelos deuses, ao mesmo tempo em que pronunciava mentalmente o
nome de alguns candidatos à magistratura. Se os presságios fossem
favoráveis, era sinal de que os deuses aprovavam os candidatos. No dia
seguinte, o povo se reunia no campo de Marte; a mesma pessoa que havia
consultado os deuses presidia à assembléia. Dizia em voz alta o nome dos
candidatos, sobre os quais tomara os auspícios; se entre os que pediam o
consulado encontrava-se alguém para quem os auspícios não fossem
favoráveis, ele omitia seu nome. O povo não votava senão nos nomes
pronunciados pelo presidente(15). Se o presidente não nomeava senão dois
candidatos, o povo tinha que votar neles necessariamente; se nomeava três, o
povo escolhia entre eles. A assembléia nunca podia votar em outras pessoas
além das designadas pelo presidente, porque os auspícios haviam sido
favoráveis somente para eles, e o assentimento dos deuses estava assegurado
(16).
Esse modo de eleição, escrupulosamente observado nos primeiros séculos da
república, explica alguns traços da história romana, que podem surpreendernos
à primeira vista. Vemos, por exemplo, muito freqüentemente, que o povo
é quase unânime em querer elevar dois homens ao consulado, sem contudo
poder fazê-lo; isso porque o presidente não interrogou os auspícios sobre
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ambos, ou porque os auspícios não se mostraram favoráveis. Pelo contrário,
muitas vezes vemos o povo nomear como cônsules dois homens que detesta
(17), e isso porque o presidente não pronunciou senão dois nomes. Era
inevitável votar neles, porque o voto não se exprimia pelo sim ou pelo não:
cada sufrágio devia conter dois nomes próprios, sem que fosse possível
escrever outros que não os dos designados. O povo, a quem se apresentam
candidatos que lhe são odiosos, pode expressar sua cólera retirando-se sem
votar; sempre ficarão no recinto cidadãos suficientes para a votação(18).
Por aí se vê qual era a autoridade do presidente dos comícios, e não nos
admiraremos mais da expressão consagrada creat consules, que se aplicava,
não ao povo, mas ao presidente dos comícios. Era dele, e não do povo que se
podia dizer: Ele cria os cônsules porque era ele que descobria a vontade
dos deuses. Se o presidente não criava os cônsules, os deuses os criavam por
seu intermédio. O poder do povo apenas ratificava a eleição, ou, quando
muito, não ia além da escolha entre três ou quatro nomes, quando os auspícios
se mostravam igualmente favoráveis a três ou quatro candidatos.
É fora de dúvida que essa maneira de proceder foi muito vantajosa à
aristocracia romana; mas estaremos enganados se quisermos ver em tudo isso
simples artimanha previamente imaginada, o que não se pode conceber,
pudesse existir nos séculos em que se acreditava em tal religião.
Politicamente, nos primeiros tempos, isso seria inútil, porque os patrícios de
então tinham a maioria dos votos, e qualquer ardil podia voltar-se contra eles,
investindo um só homem de um poder exorbitante. A única explicação
razoável para esses costumes, ou antes, esses ritos de eleição, é que todos
acreditavam sinceramente que a escolha do magistrado não cabia ao povo,
mas aos deuses. O homem que ia dispor da religião e da fortuna da cidade
devia ser revelado pela voz divina.
A primeira regra para a eleição de um magistrado era a dada por Cícero: Que
seja nomeado de acordo com os ritos(19). Se, muitos meses depois, o
senado viesse a saber que algum rito havia sido negligenciado ou mal
observado, o senado ordenava aos cônsules que abdicassem, e eles
obedeciam. Os exemplos são bastante numerosos; e se, por dois ou três dentre
eles, nos é permitido supor que o senado quis desembaraçar-se de um cônsul
inábil ou incapaz, a maior parte das vezes, pelo contrário, não se pode pensar
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em outro motivo que o escrúpulo religioso.
É verdade que, quando a sorte, em Atenas, ou os auspícios, em Roma,
designavam o arconte ou o cônsul, havia uma espécie de prova, pela qual se
examinava o mérito do novo eleito(20). Mas essa mesma prova serve para nos
mostrar o que a cidade desejava encontrar no magistrado; ela não procurava o
homem mais corajoso para a guerra, o mais hábil e o mais justo na paz, mas o
mais amado pelos deuses. Com efeito, o senado ateniense exigia do novo
eleito que possuísse um deus doméstico(21), fizesse parte de uma fratria,
possuísse um túmulo de família, e cumprisse todos os seus deveres para com
os mortos(22), Por que todas essas perguntas? Porque o que não tinha culto
familiar não devia tomar parte no culto nacional, e não estava apto a oferecer
sacrifícios em nome da cidade. Aquele que negligenciava o culto de seus
mortos estava exposto à sua temível ira, e era perseguido por inimigos
invisíveis. A cidade seria bastante temerária em confiar sua fortuna a
semelhante homem. Ela queria que o novo magistrado, segundo expressão de
Platão, fosse de uma família pura(23). Isso porque, se um de seus
antepassados houvesse cometido algum ato que ofendesse à religião, o lar
familiar ficava manchado para sempre, e os descendentes eram detestados
pelos deuses. Tais eram as principais perguntas que se faziam a quem
desejava ser magistrado. Parece que não se preocupavam nem com o caráter,
nem com a inteligência do candidato. Cuidavam, sobretudo, de que este fosse
apto a desempenhar suas funções sacerdotais, e que a religião da cidade não
ficasse comprometida em suas mãos.
Essa espécie de exame parece que também esteve em uso em Roma. É
verdade que não temos informação alguma a respeito das perguntas que o
cônsul devia responder; mas sabemos, pelo menos, que esse exame era feito
pelos pontífices, e podemos muito bem acreditar que não dizia respeito senão
à aptidão religiosa do magistrado(24).
CAPÍTULO XI
A LEI
Entre os gregos, entre os romanos, como entre os hindus, a lei era a princípio
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parte da religião. Os antigos códigos das cidades eram um conjunto de ritos,
de prescrições litúrgicas, de preces, ao mesmo tempo que de disposições
legislativas. As regras do direito de propriedade e do direito de sucessão
estavam dispersas no meio de regras relativas aos sacrifícios, à sepultura e ao
culto dos mortos.
O que nos restou das mais antigas leis de Roma, chamadas leis reais, aplica-se
tanto ao culto como às relações da vida civil. Uma delas proibia à mulher
culpada aproximar-se dos altares; outra proibia certos alimentos nos
banquetes sagrados; uma terceira mencionava as cerimônias religiosas que um
general vencedor devia celebrar ao entrar na cidade. O código das Doze
Tábuas, embora mais recente, continha ainda prescrições minuciosas a
respeito dos ritos religiosos da sepultura. A obra de Sólon era ao mesmo
tempo código, constituição e ritual; a ordem dos sacrifícios e o preço das
vítimas eram por ele regulamentados, assim como os ritos das núpcias e o
culto dos mortos.
Cícero, em seu tratado das leis, traça o plano de uma legislação que não é de
todo imaginária. Pelo fundo como pela forma de seu código, ele imita os
antigos legisladores. Ora, eis as primeiras leis que Platão escreve: Que
ninguém se aproxime dos deuses com as mãos impuras; que se cuide dos
templos dos pais e da morada dos lares domésticos; que os sacerdotes não
usem nos banquetes fúnebres senão os alimentos prescritos; que se preste
aos deuses manes o culto que lhes é devido. Com certeza o filósofo
romano pouco se preocupava com essa velha religião dos lares e dos manes,
mas traçava um código à imagem dos códigos antigos, e se julgava obrigado a
nele inserir regras relativas ao culto.
Em Roma, era verdade reconhecida que não se podia ser bom pontífice sem
conhecer o direito(1), e, reciprocamente, que não se podia conhecer o direito
se não se conhecia a religião. Os pontífices foram, por muito tempo, os únicos
jurisconsultos. Como não havia quase nenhum ato da vida que não tivesse
relação com a religião, resultava daí que quase tudo estava submetido às
decisões desses sacerdotes, considerados os únicos juízes competentes em um
número infinito de processos. Todas as contestações relativas ao casamento,
ao divórcio, aos direitos civis e religiosos das crianças, eram levadas a seu
tribunal. Eles eram juízes tanto do incesto como do celibato. Como a adoção
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dizia respeito à religião, não podia ser feita senão com o consentimento do
pontífice. Fazer testamento, era romper a ordem que a religião estabelecera
para a sucessão dos bens e a transmissão do culto; assim também o
testamento, em sua origem, devia ser autorizado pelo pontífice. Como os
limites de qualquer propriedade eram marcados pela religião, quando dois
vizinhos estavam em litígio, deviam queixar-se perante o pontífice ou diante
dos sacerdotes chamados irmãos arvais(2). Eis por que os mesmos homens
eram pontífices e jurisconsultos; direito e religião eram a mesma coisa(3).
Em Atenas, o primeiro arconte e o rei tinham quase as mesmas atribuições
judiciárias que o pontífice romano, pois o arconte tinha a missão de velar pela
perpetuidade dos cultos domésticos(4), e o rei, muito semelhante ao pontífice
de Roma, tinha a direção suprema da religião da cidade. Assim, o primeiro
julgava todas as questões que diziam respeito ao direito de família, e o
segundo todos os crimes que atingiam a religião(5).
O processo de geração das leis antigas é muito claro. Não foram inventadas
por um homem. Sólon, Licurgo, Minos, Numa podem ter escrito as leis de
suas cidades, mas não as fizeram. Se entendemos por legislador um homem
que cria um código pelo poder de seu gênio, que o impõe a outros homens,
esse legislador não existiu jamais entre os antigos. Tampouco a lei antiga
originou-se do voto do povo. O pensamento segundo o qual o número dos
sufrágios podia promulgar uma lei não apareceu senão muito tarde nas
cidades, e somente depois que duas revoluções as haviam transformado. Até
então as leis apresentam-se como algo antigo, imutável e venerável. Tão
velhas quanto a cidade, o fundador é que as estabelecia, ao mesmo tempo em
que estabelecia o lar: moresque viris et moenia ponit. O fundador as
instituía, ao mesmo tempo em que instituía a religião. Mas ainda não podemos
afirmar que ele as imaginasse por si mesmo. Qual é, portanto, o verdadeiro
autor das leis? Quando falamos acima da organização da família, e das leis
gregas ou romanas que regulamentavam a propriedade, a sucessão, o
testamento, a adoção, observamos como essas leis correspondiam exatamente
às crenças das gerações antigas Se colocarmos essas leis em confronto com a
eqüidade natural, descobriremos muitas contradições, e parece assaz evidente
que os antigos não as foram procurar na noção do direito absoluto e no
sentimento de justiça. Mas ponhamo-las em confronto com o culto dos mortos
e do lar, comparemo-las com as diversas prescrições dessa religião primitiva,
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e reconheceremos que estão em perfeito acordo com tudo isso.
O homem não esteve a estudar sua consciência dizendo: Isto é justo, isto não.
Não foi assim que apareceu o direito antigo. Mas o homem acreditava que o
lar sagrado, em virtude da lei religiosa, passava de pai para filho; daí resultou
que a casa se tornou bem hereditário. O homem que havia sepultado o pai em
seu campo acreditava que o espírito do morto tomava posse perpétua do
mesmo, e exigia de sua posteridade um culto perpétuo; daí resultou que o
campo, domínio do morto e lugar dos sacrifícios, tornou-se propriedade
inalienável da família. A religião dizia: O filho, e não a filha, é o continuador
do culto; e a lei diz, conformando-se à religião: O filho herda, a filha não; o
sobrinho pela linha masculina herda; o sobrinho pela linha feminina, não. Eis
como se fez a lei; ela se apresentou por si mesma, sem que a precisassem
procurar. A lei era conseqüência direta e necessária da crença; era a própria
religião aplicando-se às relações dos homens entre si.
Os antigos diziam que suas leis tinham vindo dos deuses. Os cretenses
atribuíam sua legislação, não a Minos, mas a Júpiter; os lacedemônios
acreditavam que seu legislador não era Licurgo, mas Apolo. Os romanos
diziam que Numa havia escrito as leis de Roma sob ditado de uma das
divindades mais poderosas da antiga Itália, a deusa Egéria. Os etruscos
receberam suas leis do deus Tages. E em todas essas tradições há um pouco
de verdade. O verdadeiro legislador dos antigos não foi o homem, mas a
crença religiosa que o homem guardava dentro de si.
As leis por muito tempo constituíram coisa sagrada. Mesmo na época em que
se passou a admitir que a vontade de um homem, ou os sufrágios de um povo,
podiam fazer uma lei, era ainda necessário que a religião fosse consultada, ou
que, ao menos, desse seu consentimento. Em Roma não se acreditava que a
unanimidade de sufrágios fosse suficiente para estabelecer uma lei: era
necessário ainda que a decisão do povo fosse aprovada pelos pontífices, e que
os áugures atestassem que os deuses eram favoráveis à lei proposta(6). Uma
ocasião em que os tribunos da plebe queriam fazer adotar uma lei por uma
assembléia das tribos, um patrício lhes disse: Que direito tendes para fazer
uma lei nova, ou modificar as já existentes? Vós, que não possuis os
auspícios, vós, que em vossas assembléias não realizais atos de religião, que
tendes de comum com a religião, e todas as coisas sagradas, entre as quais se
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deve contar a lei(7)?
Por aí podemos avaliar o respeito e acatamento que os antigos, por muito
tempo, sentiram por suas leis. Eles não viam nelas obra humana. Sua origem
era sagrada. O que afirma Platão, que obedecer às leis é obedecer aos deuses,
não é simples expressão privada de sentido. Platão apenas exprime o
pensamento grego quando, em Críton, mostra Sócrates dando a vida porque as
leis assim o exigem. Antes de Sócrates, haviam escrito sobre os rochedos das
Termópilas: Viandante, vai dizer a Esparta que morremos aqui para obedecer
às suas leis. A lei entre os antigos sempre foi santa; nos tempos da realeza
ela era a rainha dos reis; nos tempos da república, ela foi a rainha dos povos.
Desobedecer-lhe era cometer sacrilégio.
Em princípio, a lei era imutável, porque era divina. Deve-se notar que as leis
nunca eram ab-rogadas. Podia-se fazer novas, mas as antigas sempre
subsistiam, por maiores contradições que houvesse entre elas. O código de
Drácon não foi abolido pelo de Sólon(8), nem as Leis Reais pelas das Doze
Tábuas. A pedra onde a lei era gravada era inviolável; quando muito os menos
escrupulosos julgavam-se no direito de interpretá-las a seu modo. Esse
princípio foi a causa principal da grande confusão que se nota no direito
antigo. Leis opostas, e de épocas diferentes, achavam-se reunidas, e todas
deviam ser igualmente respeitadas. Em um discurso de Iseu, vemos dois
homens disputando uma herança; cada um deles alega uma lei em seu favor;
as duas leis são absolutamente contrárias e igualmente sagradas. É por isso
que o código de Manu conserva a antiga lei que estabelece o direito de
primogenitura, e traz uma outra que ordena a divisão dos bens em partes
iguais entre os irmãos.
A lei antiga nunca teve considerandos. Por que haveria de tê-los? Ela não
tinha necessidade de explicar suas razões; existe porque os deuses a fizeram.
A lei não se discute, impõe-se; não é obra da autoridade; os homens lhe
obedecem por que crêem nela.
Durante longas gerações as leis eram apenas orais; transmitiam-se de pai a
filho, juntamente com a crença e as fórmulas de oração. Eram uma tradição
sagrada que se perpetuava ao redor do lar da família ou do lar da cidade.
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No dia em que começaram a ser escritas, consignaram-nas nos rituais, em
meio de cerimônias e preces. Varrão cita uma lei antiga da cidade de Túsculo,
e acrescenta que a leu nos livros sagrados dessa cidade(9). Dionísio de
Halicarnasso, que havia consultado os documentos originais, disse que em
Roma, antes da época dos decênviros, o pouco que havia de leis escritas
encontrava-se nos livros sagrados(10). Mais tarde, a lei saiu dos rituais;
escreveram-na à parte; mas continuou o costume de guardá-la em um templo,
sob a custódia dos sacerdotes.
Escritas ou não, essas leis eram sempre formuladas em breves sentenças, que
se podem comparar, pela fórmula, aos livros sagrados de Moisés, aos clocas
dos livros de Manu. Parece até que as palavras da lei eram ritmadas(11).
Aristóteles afirma que, antes que as leis fossem escritas, costumavam ser
cantadas(12). A língua conservou alguns vestígios desse costume; os romanos
chamavam as leis de carmina(13), versos, e os gregos diziam nómoi, cantos
(14).
Esses antigos versos eram textos invariáveis. Mudar uma letra, deslocar uma
palavra, alterar o ritmo, seria destruir a própria lei, destruindo a forma sagrada
sob a qual fora revelada aos homens. A lei era como a oração, que não era
agradável à divindade senão com a condição de ser recitada exatamente,
tornando-se ímpia pela mudança de uma única palavra. No direito primitivo, o
exterior, a letra é tudo; não é necessário procurar o sentido ou o espírito da lei.
A lei não vale pelo princípio moral que contém, mas pelas palavras incluídas
em sua fórmula. Sua força está nas palavras sagradas que a compõem.
Entre os antigos, e sobretudo em Roma, a idéia do direito era inseparável do
emprego de algumas palavras sacramentais. Se, por exemplo, tratava-se de um
contrato, um dos contratantes devia dizer: Dari spondes? e o outro devia
responder: Spondeo. Se essas palavras não fossem pronunciadas, não havia
contrato. Em vão o credor reclamaria o pagamento de uma dívida, porque o
devedor nada lhe deve, pois o que obrigava o homem no direito antigo não era
a consciência nem o sentimento de justiça, mas a fórmula sagrada. Essa
fórmula, pronunciada entre dois homens, estabelecia entre ambos um vínculo
de direito. Onde não houvesse fórmula não havia direito.
As formas estranhas do antigo processo romano não nos causarão surpresa, se
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considerarmos que o direito antigo era uma religião, a lei um texto sagrado, a
justiça um conjunto de ritos. O requerente procede legalmente, de acordo com
a lei: agit lege. Pelo enunciado da lei, apodera-se do adversário. Mas que tome
cuidado; para ter a lei a seu favor é necessário conhecer os termos, e
pronunciá-los com exatidão. Se diz uma palavra por outra, a lei deixa de
existir, e não poderá defendê-lo. Gaio conta a história de um homem cujas
vinhas haviam sido cortadas por um vizinho; o fato era comprovado; ele citou
a lei, mas a lei dizia árvores, e ele disse vinhas; perdeu a causa(15).
O enunciado da lei não bastava. Era necessário ainda um conjunto de sinais
exteriores, que eram como que os ritos da cerimônia religiosa chamada
contrato, ou processo judicial. É por essa razão que em qualquer venda deviase
usar um pedaço de cobre e a balança; para comprar um objeto era
necessário tocá-lo com a mão, manei patio; se havia disputa por uma
propriedade, travava-se um combate fictício, manuum consertio. Daí as
formas de alforria, de emancipação, de ações judiciais, e toda a pantomima
dos processos.
Como a lei fazia parte da religião, participava também do caráter misterioso
de toda a religião das cidades. As fórmulas da lei eram mantidas em segredo,
como as do culto. Não eram reveladas ao estrangeiro, nem sequer aos plebeus.
Não porque os patrícios haviam calculado auferir grande força com a posse
exclusiva das leis; mas é que a lei, por sua origem e natureza, pareceu por
muito tempo um mistério, no qual só podiam ser iniciados os que já o fossem
no culto nacional e no culto doméstico.
A origem religiosa do direito antigo explica-nos ainda um dos principais
caracteres desse direito. A religião era puramente civil, isto é, especial para
cada cidade; e só poderia dar origem a um direito igualmente civil. Mas é
importante distinguir o sentido dessa palavra entre os antigos. Quando diziam
que o direito era civil, jus civile, nómoi politikói, eles não entendiam com isso
apenas que cada cidade tinha seu código, como em nossos dias cada Estado
tem o seu. Eles queriam dizer que suas leis não tinham valor ou ação senão
entre os membros de uma mesma cidade. Não bastava morar em uma cidade
para se estar sujeito às suas leis, e ser protegido por elas; era necessário ser
cidadão. A lei não existia para o escravo, como não existia para o estrangeiro.
Veremos mais adiante que o estrangeiro, domiciliado em uma cidade, não
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podia ser proprietário, nem herdeiro, nem testar, nem fazer contrato algum,
nem aparecer diante dos tribunais ordinários dos cidadãos. Em Atenas, se o
estrangeiro fosse credor de um cidadão, não podia processá-lo judicialmente
pelo pagamento de uma dívida, pois a lei não reconhecia a validade de seu
contrato.
Essas disposições do antigo direito eram de uma lógica perfeita. O direito não
nascera da idéia de justiça, mas da religião, e não podia ser concebido fora
dela. Para que houvesse relação de direito entre dois homens, era necessário
que antes houvesse entre eles uma relação religiosa, isto é, que ambos
rendessem culto ao mesmo lar, e oferecessem os mesmos sacrifícios. Quando
não existia essa comunhão religiosa entre dois homens, parece que não podia
existir nenhuma relação de direito. Ora, nem o escravo, nem o estrangeiro
participavam da religião da cidade. O estrangeiro e o cidadão podiam viver
lado a lado durante longos anos, sem que se pensasse em estabelecer um
vínculo de direito entre os mesmos. O direito não era nada mais que uma das
faces da religião. Sem comunidade de religião não podia haver comunidade de
lei
CAPÍTULO XII
O CIDADÃO E O ESTRANGEIRO
O cidadão era reconhecido por sua participação no culto da cidade, e dessa
participação provinham todos os seus direitos políticos e civis. Renunciar ao
culto era renunciar aos direitos. Falamos acima dos banquetes públicos, que
era a principal cerimônia do culto nacional. Ora, em Esparta, o que não o
assistisse, mesmo por motivos alheios à sua vontade, deixava imediatamente
de ser contado entre os cidadãos(1). Cada cidade exigia que todos os seus
membros tomassem parte nos festejos de seu culto(2). Em Roma, para gozar
de direitos políticos, era necessário assistir à cerimônia sagrada da lustração
(3). O homem que não observasse essa regra, isto é, que não tomasse parte na
oração comum e no sacrifício, deixava de ser cidadão até o lustro seguinte.
Se quisermos definir os cidadãos dos tempos antigos por seu atributo mais
essencial, é necessário dizer-se que cidadão é o homem que observa a religião
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da cidade. É o que honra os mesmos deuses da cidade(4). É aquele para o qual
o arconte ou o prítane oferece o sacrifício de cada dia(5), que tem o direito de
se aproximar dos altares, que pode penetrar no recinto sagrado em que se
realizam as assembléias, que assiste às festas, que acompanha as procissões e
participa dos panegíricos, que se assenta nos banquetes sagrados, e recebe a
parte que lhe cabe das vítimas. Assim esse homem, no dia em que foi inscrito
no registro dos cidadãos, jurou que renderia culto aos deuses da cidade, e que
combateria para defendê-los(6). Eis os termos usados: ser admitido entre os
cidadãos dizia-se em grego pelas palavras meteínai tõn hierõn: entrar na
partilha das coisas sagradas(7).
O estrangeiro, pelo contrário, é o que não tem acesso ao culto, aquele a quem
os deuses da cidade não protegem, e que não tem nem mesmo o direito de
invocá-los, porque os deuses nacionais não queriam receber preces ou dádivas
senão dos cidadãos; eles repelem o estrangeiro; a entrada de seus templos lhes
é proibida, e sua presença durante as cerimônias de um sacrifício era
considerada sacrílega. Um testemunho desse antigo sentimento de repulsa foinos
conservado em um dos principais ritos do culto romano: o pontífice,
quando sacrifica ao ar livre, deve velar a cabeça, para que, diante do fogo
sagrado, no ato religioso que é oferecido aos deuses nacionais, não apareça
aos olhos do pontífice o rosto de algum estrangeiro, o que perturbaria os
auspícios(8). Um objeto sagrado que caísse momentaneamente nas mãos
de um estrangeiro tomava-se imediatamente profano, e não podia recuperar
seu caráter religioso senão mediante cerimônia expiatória(9). Se o inimigo se
havia apoderado de uma cidade, e os cidadãos conseguiam reconquistá-la, era
necessário antes de mais nada que os templos fossem purificados, e todos os
lares apagados e renovados: pois estavam manchados pelo contato com
estrangeiros(10).
É assim que a religião estabelecia entre o cidadão e o estrangeiro uma
distinção profunda e indelével(11). Essa mesma religião, enquanto exerceu
poder sobre as almas, proibiu que se concedesse aos estrangeiros o direito de
cidadania. Nos tempos de Heródoto, Esparta ainda não o havia concedido a
ninguém, com exceção de um adivinho; mas para isso foi ainda necessária a
ordem formal de um oráculo(12). Atenas concedeu-o algumas vezes, mas com
que precauções! Era necessário, em primeiro lugar, que o povo reunido
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votasse pela admissão do estrangeiro; e isso ainda não era nada: era necessário
ainda que, nove dias depois, uma segunda assembléia votasse no mesmo
sentido no escrutínio secreto, e que houvesse pelo menos seis mil sufrágios
favoráveis, cifra que parecerá enorme, se considerarmos que muito raramente
uma assembléia ateniense reunia esse número de cidadãos. Enfim, qualquer
um entre os atenienses podia opor uma espécie de veto, atacar o decreto diante
dos tribunais, como contrário às velhas leis, e fazê-lo anular. Não havia,
certamente, nenhum ato público que o legislador cercasse de tantas
dificuldades e precauções como o de conferir a um estrangeiro o direito de
cidadão, o que talvez não acontecesse nem mesmo para declarar guerra ou
promulgar novas leis. Qual a razão para se oporem tantos obstáculos ao
estrangeiro que desejava ser cidadão? Por certo, não se temia que nas
assembléias políticas seu voto fizesse pender a balança. Demóstenes nos
declara o verdadeiro motivo e o verdadeiro pensamento dos atenienses: É
que se deve pensar nos deuses, e conservar a pureza dos sacrifícios.
Excluir o estrangeiro era velar pelas cerimônias sagradas. Admitir um
estrangeiro entre os cidadãos era dar-lhe direito de participar da religião e
dos sacrifícios(13). Ora. para semelhante ato, o povo não se sentia
inteiramente livre, e era assaltado por um escrúpulo religioso, porque sabia
que os deuses nacionais eram inclinados a repelir o estrangeiro, e que os
sacrifícios talvez seriam alterados pela sua presença. Facultar o direito de
cidade a um estrangeiro era verdadeira violação dos princípios fundamentais
do culto nacional, e é por isso que a cidade, a princípio, se mostrou tão avara.
Ainda devemos notar que o homem tão custosamente admitido como cidadão
não podia ser nem arconte, nem sacerdote. A cidade permitia que assistisse ao
culto, mas presidi-lo já seria demais.
Ninguém podia tornar-se cidadão ateniense quando cidadão de outra cidade
(14). Porque nesse caso havia impossibilidade religiosa em se ser
simultaneamente membro de duas cidades, como acontecia quando se tratava
de duas famílias. Ninguém podia pertencer a duas religiões ao mesmo tempo.
A participação ao culto, conseqüentemente, dava outros direitos. Como o
cidadão podia assistir ao sacrifício que precedia às assembléias, também podia
votar, Como podia oferecer sacrifícios em nome da cidade, também podia ser
prítane ou arconte. Adotando a religião da cidade, podia invocar a lei, e
cumprir todos os ritos do processo.
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O estrangeiro, pelo contrário, não tendo nenhuma parte na religião, não tinha
direito algum. Se entrava no recinto sagrado, que o sacerdote traçara para a
assembléia, era punido com a morte. As leis da cidade não existiam para ele.
Se cometesse algum crime, era tratado como escravo e punido sem processo,
pois a cidade não lhe devia nenhuma justiça(15). Quando se sentiu a
necessidade de uma justiça para o estrangeiro, foi necessário estabelecer um
tribunal de exceção. Roma tinha um pretor para julgar o estrangeiro (praetor
peregrinus). Em Atenas o juiz dos estrangeiros era o polemarco, isto é, o
mesmo magistrado encarregado das guerras e de todas as relações como o
inimigo(16).
Nem em Roma, nem em Atenas o estrangeiro podia ser proprietário(17). Não
podia contrair matrimônio, ou, pelo menos, seu casamento não era
reconhecido; os filhos nascidos da união de um cidadão com uma estrangeira
eram considerados bastardos(18). Não podia firmar contratos com cidadãos,
ou, pelo menos a lei não lhes dava nenhum valor. A princípio, não teve o
direito de exercer o comércio(19). A lei romana proibia-lhe herdar de um
cidadão, e mesmo um cidadão herdar de um estrangeiro(20). Levava-se tão
longe o rigor desse princípio que, se um estrangeiro obtinha o direito de
cidadania romana, sem que seu filho, nascido antes dessa época, gozasse do
mesmo favor, o filho tornava-se estranho aos olhos do pai, e não podia herdar
(21). A distinção entre cidadão e estrangeiro era mais forte que o vínculo
natural entre pai e filho.
Pareceria à primeira vista que os antigos se esforçavam por estabelecer um
sistema de afronta contra o estrangeiro, mas isso não é verdade. Atenas e
Roma, pelo contrário, acolhiam-nos bem, e os protegiam, por razões
comerciais ou políticas. Mas sua boa vontade, e mesmo seu interesse não
podiam abolir as antigas leis que a religião havia estabelecido. Essa religião
não permitia que o estrangeiro se tornasse proprietário, porque ele não podia
possuir parte do solo religioso da cidade. Ela não permitia nem ao cidadão
herdar do estrangeiro, nem ao estrangeiro herdar do cidadão, porque toda
transmissão de bens acarretava a transmissão do culto, e era tão impossível
para o cidadão obedecer ao culto do estrangeiro como ao estrangeiro obedecer
ao culto do cidadão.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Podia-se acolher o estrangeiro, velar por ele, até mesmo estimá-lo, se fosse
rico ou honrado; mas não se podia dividir com ele a religião ou o direito. O
escravo, de certo modo, era mais bem tratado, porque, sendo membro de uma
família, de cujo culto participava, estava ligado à cidade por intermédio do
dono; os deuses o protegiam. Por isso a religião romana afirmava que o
túmulo do escravo era sagrado, e que o mesmo não acontecia com o do
estrangeiro(22).
Para que o estrangeiro fosse considerado algo aos olhos da lei, para que
pudesse exercer o comércio, fazer contratos, usufruir com segurança de seus
bens, para que a justiça da cidade o pudesse defender eficazmente, era
necessário que se tornasse cliente de um cidadão. Roma e Atenas exigiam que
todo estrangeiro adotasse um patrono(23). Fazendo parte da clientela, e sob a
dependência de um cidadão, o estrangeiro ligava-se por esse intermediário à
cidade. Participava então de alguns dos benefícios do direito civil, e a
proteção das leis lhe era concedida. As antigas cidades puniam a maior parte
das faltas cometidas contra as mesmas negando ao culpado sua qualidade de
cidadão. Essa pena chamava-se atimía(24). O homem assim castigado não
podia mais ser investido de qualquer magistratura, nem fazer parte dos
tribunais, nem falar nas assembléias. Ao mesmo tempo a religião lhe era
interditada; a sentença dizia que ele não entraria mais em nenhum dos
santuários da cidade, que não teria mais o direito de se coroar de flores nos
dias em que os cidadãos se coroavam, que não poria mais os pés no recinto
que a água lustral e o sangue das vítimas traçavam no ágora(25). Os deuses
da cidade não existiam mais para ele. Ele perdia ao mesmo tempo todos os
direitos civis; não comparecia mais diante dos tribunais, nem mesmo como
testemunha; lesado, não lhe era permitido apresentar queixa; podiam matá-lo
impunemente(26); as leis da cidade não o protegiam mais. Para ele não havia
mais nem compra, nem venda, nem contrato de nenhuma espécie(27). Tornarase
estrangeiro na própria cidade. Direitos políticos, religião, direitos civis,
tudo isso lhe era tirado de uma só vez. Todo esse conjunto estava
compreendido no título de cidadão, e perdia-se com o mesmo.
CAPÍTULO XIII
O PATRIOTISMO. O EXÍLIO
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A palavra pátria entre os antigos significa a terra dos pais, terra patria. A
pátria de cada homem era a porção do solo que sua religião doméstica ou
nacional havia santificado; a terra onde estavam depositados os ossos dos
antepassados, a terra ocupada por suas almas. A pequena pátria era o círculo
da família, com seu túmulo e seu lar. A grande pátria era a cidade, com seu
pritaneu e seus heróis, com seu recinto sagrado e seu território marcado pela
religião. Terra sagrada da pátria diziam os gregos. Não era essa uma
expressão vazia. Aquela terra era verdadeiramente sagrada para o homem,
porque era habitada por seus deuses. Estado, cidade, pátria, essas palavras não
eram uma abstração, como entre os modernos; elas representavam realmente
todo um conjunto de divindades locais, com um culto cotidiano, e crenças que
tinham grande poder sobre as almas.
Desse modo é que se explica o patriotismo dos antigos, sentimento enérgico
que era para eles a virtude suprema, e para a qual tendiam todas as demais.
Tudo o que o homem podia ter de mais caro confundia-se com a pátria. Nela
encontrava seu bem, sua segurança, seu direito, sua fé, seu deus. Perdendo-a,
perdia tudo. Era quase impossível que o interesse privado estivesse em
desacordo com o interesse público. Platão diz: É a pátria que nos gera, que
nos alimenta, que nos educa. E Sófocles: É a pátria que nos conserva.
A pátria não foi para o homem somente domicílio. Transpondo suas santas
muralhas, ultrapassando os limites sagrados do território, ele não encontra
mais nem religião, nem vínculo social de espécie alguma. Por toda parte, fora
da pátria, ele está excluído da vida regular e do direito; por toda parte está sem
deus, e fora da vida moral. Somente na pátria ele tem sua dignidade de
homem e seus deveres. O cidadão não pode ser homem em outro lugar.
A pátria conserva o homem ligado por um vínculo santo. Deve amá-la como
se ama uma religião, obedecer-lhe como se obedece a um Deus. É necessário
que se dê a ela inteiramente, entregando-lhe tudo, dedicando-lhe tudo.
Deve amá-la gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada. Deve amá-la por
seus benefícios, e amá-la ainda por seus rigores. Sócrates, condenado por ela
sem razão, não deve amá-la menos por isso. É necessário amá-la, como
Abraão amava a seu Deus, até sacrificar-lhe o filho. É necessário, sobretudo,
saber morrer por ela. O grego ou o romano não morre apenas por devotamento
a um homem, ou por questões de honra, mas deve sua vida à pátria, porque, se
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a pátria é atacada, a religião é a atacada. O cidadão combate verdadeiramente
por seus altares, por seu lar: pro aris et focis(1); porque, se o inimigo se
apoderar de sua cidade, seus altares serão derrubados, seus lares extintos, seus
sepulcros profanados, seus deuses destruídos, seu culto, esquecido. O amor da
pátria é a piedade dos antigos.
A posse da pátria devia ser muito preciosa, porque os antigos não imaginavam
talvez castigo mais cruel do que privar alguém do solo pátrio. A punição
ordinária dos grandes crimes era o exílio.
O exílio não era apenas a proibição de permanência na cidade e o afastamento
da pátria: era ao mesmo tempo a interdição do culto, e continha o que os
modernos chamam de excomunhão. Exilar um homem, era, de acordo com a
fórmula usada pelos romanos, vedar o uso do fogo e da água(2). Pelo fogo,
devemos entender o fogo dos sacrifícios; pela água, a água lustral(3). O exílio,
portanto, colocava um homem fora da religião. Também em Esparta, quando
o cidadão era privado de seus direitos, o fogo lhe era vedado(4). Um poeta
ateniense põe na boca de um de seus personagens a fórmula terrível que feria
o acusado: Que ele fuja, dizia a sentença, e que jamais se aproxime dos
templos. Que nenhum cidadão lhe dirija a palavra, nem o receba; que ninguém
o admita em suas orações, nem em seus sacrifícios; que ninguém lhe
apresente a água lustral(5). Toda casa ficava manchada por sua presença. O
homem que o acolhesse tornava-se impuro com seu contacto. Quem comer
ou beber em sua companhia, ou quem o tocar dizia a lei deverá
purificar-se(6). Sob o golpe dessa excomunhão, o exilado não podia tomar
parte em nenhuma cerimônia religiosa; não havia mais culto, não havia mais
banquetes sagrados, não havia mais preces; estava deserdado de sua parte de
religião.
É preciso que consideremos que, para os antigos, Deus não estava em toda
parte. Se tinham alguma vaga idéia de uma divindade universal, essa não era
considerada como sua providência, a que eles invocavam. Os deuses de cada
homem eram os que moravam em sua casa, em seu cantão, em sua cidade. O
exilado, deixando a pátria, deixava também seus deuses. Não via em nenhum
lugar religião que o pudesse consolar e proteger; não sentia mais a
providência velando por ele; a felicidade de rezar lhe era negada. Tudo o que
pudesse satisfazer às necessidades de sua alma estava longe dele.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Ora, a religião era a fonte de onde emanavam os direitos civis e políticos. O
exilado, portanto, perdia tudo ao perder a religião da pátria. Excluído do culto
da cidade, via-se privado de um só golpe de seu culto doméstico, e devia
apagar o fogo sagrado(7). Não tinha mais direito de propriedade, e todos seus
bens eram confiscados em proveito dos deuses ou do Estado(8). Não
possuindo mais culto, não tinha mais família; deixava de ser esposo e pai.
Seus filhos não estavam mais sob sua autoridade(9), sua mulher deixava de
ser sua, e podia imediatamente casar-se com outro(10). Vede, por exemplo,
Régulo: prisioneiro do inimigo, a lei romana considera-o exilado; se o senado
lhe pede sua opinião, ele recusa dar-lha, porque o exilado não é mais senador;
se sua mulher e filhos correm até ele, ele recusa seus abraços, porque para o
exilado não há mais filhos nem esposa:
Fertur pudicae conjugis osculum
Parvosque natos, ut capitis minor
A se removisse(11).
Desse modo, o exilado perdia, com a religião e direitos de cidadania, a
religião e os direitos de família; não tem mais lar, nem mulher, nem filhos.
Morto, não pode ser enterrado nem no solo da cidade, nem no túmulo de seus
antepassados(12), porque se tornou estrangeiro.
É surpreendente ver como as repúblicas antigas permitiam quase sempre que
o culpado escapasse à morte pela fuga. O exílio não parecia suplício mais
suave que a morte(13). Os jurisconsultos romanos chamavam-no de pena
capital.
CAPÍTULO XIV
O ESPIRITO MUNICIPAL
O que vimos até aqui sobre as antigas instituições, e, sobretudo, a respeito das
antigas crenças, pode dar-nos idéia da profunda distinção que sempre existia
entre duas cidades. Por mais vizinhas que fossem, elas formavam sempre duas
sociedades completamente separadas. Entre elas havia bem mais que a
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
distância que hoje separam duas cidades, mais que a fronteira que divide dois
Estados; os deuses não eram os mesmos, nem as cerimônias, nem as preces. O
culto de uma cidade era proibido aos habitantes da cidade vizinha. Acreditavase
que os deuses de uma cidade rejeitavam as homenagens e as preces de
quem quer que não fosse seu concidadão.
É verdade que as velhas crenças com o tempo se modificaram, se abrandaram;
mas elas estavam em seu pleno vigor na época em que as sociedades se
haviam formado, e seus vestígios ficaram fortemente marcados.
Compreendemos facilmente duas coisas: em primeiro lugar, que essa religião,
própria de cada cidade, deve tê-la constituído de maneira muito forte, e quase
indestrutível; com efeito, é maravilhoso constatar-se como essa organização
social, apesar de seus defeitos, e de todas as suas possibilidades de ruína,
tenha durado tanto tempo; em segundo lugar, que o efeito dessa religião deve
ter sido, durante longos séculos, tornar impossível o estabelecimento de
qualquer outra forma de vida social que não a cidade.
Cada cidade, por exigência da própria religião, devia ser absolutamente
independente. Era necessário que cada uma tivesse seu código particular,
porque cada uma tinha sua religião, e a lei era o resultado da religião. Cada
uma devia ter sua justiça soberana, e não podia haver nenhuma justiça
superior à da cidade. Cada uma tinha suas festas religiosas e seu calendário;
os meses e o ano não podiam ser idênticos em duas cidades, porque a série
dos atos religiosos era diferente. Cada cidade tinha sua moeda particular, que,
nos primeiros tempos, era ordinariamente marcada por seu emblema religioso.
Cada cidade tinha medidas e pesos próprios. Não se admitia nada comum
entre duas cidades. A linha de demarcação era tão profunda, que apenas se
imaginava que o casamento fosse permitido entre habitantes de duas cidades
diferentes. Tal união sempre pareceu estranha, e foi por muito tempo
considerada ilegítima. A legislação de Roma e a de Atenas repugnam
visivelmente admiti-la. Quase em toda parte as crianças que nasciam de tais
casamentos eram confundidos com os bastardos, e privados dos direitos de
cidadão(1). para que o casamento fosse legítimo entre os habitantes de duas
cidades, era necessário que entre elas houvesse uma convenção particular (jus
conubii, epigamia)(2).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Cada cidade tinha ao redor de seu território uma de limites sagrados. Era o
horizonte de sua religião nacional e de seus deuses. Além desses limites
outros deuses reinavam, outros cultos eram praticados(3).
O caráter mais evidente da história da Grécia e da Itália, antes da conquista de
Roma, é a excessiva divisão e o espírito de isolamento de cada cidade. A
Grécia jamais conseguiu formar um só Estado; nem as cidades latinas nem as
etruscas, nem as tribos samnitas jamais conseguiram formar um corpo
compacto. Atribuiu-se a incurável divisão dos gregos à natureza de região,
afirmando-se que as montanhas que a entrecortam estabeleciam entre os
homens linhas naturais de demarcação. Mas não havia montanhas entre Tebas
e Platéias, entre Argos e Esparta, entre Síbaris e Crotona. E também não as
havia entre as cidades do Lácio, nem entre as doze cidades da Etrúria. A
natureza física, sem dúvida, tem certa influência sobre a história dos povos,
mas as crenças do homem influíram com muito mais força. Entre duas cidades
vizinhas havia algo mais intransponível que uma montanha: era a série de
limites sagrados, a diferença de cultos, a barreira que cada cidade levantava
entre o estrangeiro e seus deuses. Ela proibia ao estrangeiro a entrada nos
templos de suas divindades políadas; exigindo das mesmas que odiassem e
combatessem o estrangeiro(4).
Por esse motivo, os antigos não puderam estabelecer nem mesmo conceber
nenhuma outra organização que não fosse a cidade. Nem os gregos, nem os
italianos, nem os próprios romanos, nunca pensaram, durante muito tempo,
que várias cidades se pudessem unir, e viver em igualdade de condições sob
um mesmo governo. Entre duas cidades bem podia haver aliança, associação
momentânea, visando algum proveito ou para evitar algum perigo, mas jamais
havia união completa, porque a religião fazia de cada cidade um corpo que
não se podia agregar a nenhum outro. O isolamento era a lei da cidade.
Com as crenças e os costumes religiosos que vimos, de que modo várias
cidades poderiam fundir-se em um só Estado? Não se compreendia a
associação humana, e esta não parecia regular senão se baseasse sobre a
religião. O símbolo dessa associação devia ser um banquete sagrado realizado
em comum. Alguns milhares de cidadãos podiam muito bem, a rigor, reunirse
ao redor de um mesmo pritaneu, recitar a mesma oração, e participar das
mesmas iguarias sagradas. Mas tentemos, com esses costumes, fazer um só
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
estado de toda a Grécia! Como realizar os banquetes públicos, e todas as
cerimônias sagradas que deviam ser assistidas por todos os cidadãos? Onde
situar-se-ia o pritaneu? Como fazer a lustração anual dos cidadãos? Que seria
dos limites invioláveis que marcavam desde a origem o território da cidade, e
que a separava para sempre do resto da região? Que fazer de todos os cultos
locais, das divindades políadas, dos heróis que habitavam cada cantão? Atenas
tem sobre suas terras o herói Édipo, inimigo de Tebas: como reunir Atenas e
Tebas em um mesmo culto, e sob um mesmo governo?
Quando essas superstições se enfraqueceram o que aconteceu muito tarde
no espírito do povo não havia mais tempo para estabelecer nova forma de
Estado. A divisão estava consagrada pelo costume, pelo interesse, pelo ódio
inveterado, pela lembrança das velhas lutas. Não se podia mais voltar sobre o
passado.
Cada cidade cuidava zelosamente de sua autonomia; ela assim chamava um
conjunto que compreendia seu culto, seu direito, seu governo, toda sua
independência religiosa e política.
Era mais fácil a uma cidade sujeitar-se a outra do que unir-se a ela. A vitória
podia fazer de todos os habitantes de uma cidade conquistada outros tantos
escravos; mas nunca concidadãos do vencedor. Confundir duas cidades em
um só Estado, unir a população vencida à população vitoriosa, e associá-las
sob o mesmo governo, é o que nunca se vê entre os antigos, com uma única
exceção de que falaremos mais adiante. Se Esparta conquista a Messênia, não
o faz para transformar espartanos e messênios em um só povo; ela expulsa ou
escraviza os vencidos, e toma suas terras. Atenas faz o mesmo em relação a
Salamina, a Egina e a Melos.
Levar os vencidos para a cidade dos vencedores era pensamento que não
podia vir à cabeça de ninguém. A cidade possuía deuses, hinos, festas, leis,
que constituíam seu patrimônio precioso, e cuidava para que os vencidos não
participassem do mesmo. Nem mesmo tinha direito a isso: poderia Atenas
admitir que o habitante de Egina entrasse no templo de Atenas políada? Ou
que rendesse culto a Teseu? Ou que tomasse parte nos banquetes sagrados?
Ou que cuidasse, como prítane, do fogo sagrado da cidade? A religião o
proibia. Desse modo a população vencida da ilha de Egina não podia formar
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
um mesmo Estado com a população de Atenas. Não tendo os mesmos deuses,
eginos e atenienses não podiam ter as mesmas leis nem os mesmos
magistrados.
Mas Atenas não poderia, ao menos, deixando de pé a cidade vencida, mandar
magistrados que a governassem? Era absolutamente contrário ao espírito dos
antigos que uma cidade fosse governada por um homem que não fosse
cidadão da mesma. Com efeito, o magistrado devia ser ao mesmo tempo chefe
religioso, e sua função principal era oferecer sacrifícios em nome da cidade. O
estranho, que não tinha direito de oferecer sacrifícios, não podia, portanto, ser
magistrado. Não podendo celebrar nenhuma função religiosa, ele não tinha
aos olhos dos homens nenhuma autoridade regular. Esparta tentou introduzir
nas cidades os seus harmostes; mas esses homens não eram magistrados, não
julgavam, não compareciam às assembléias. Sem ter nenhuma relação regular
com o povo das cidades, não puderam subsistir por muito tempo.
Resultava daí que todo vencedor ficava na alternativa ou de destruir a cidade
vencida, e ocupar o território, ou de lhe deixar toda sua independência. Não
havia meio-termo. Ou a cidade deixava de existir, ou permanecia como
Estado soberano. Tendo culto próprio, ela devia ter seu governo; só podia
perder um se perdesse o outro, e então deixava de existir.
Essa independência absoluta da cidade antiga não cessou senão quando as
crenças nas quais se baseava desapareceram por completo. Depois que as
idéias se transformaram, depois que muitas revoluções passaram sobre essas
antigas sociedades, então chegou-se a conceber e a estabelecer um Estado
maior, regido por outras regras. Mas para isso foi necessário que os homens
descobrissem outros princípios e outro vínculo social, diferentes dos das
antigas idades.
CAPÍTULO XV
RELAÇÕES ENTRE AS CIDADES. A GUERRA. A PAZ. A ALIANÇA
DOS DEUSES
A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da cidade,
intervinha com igual autoridade em todas as relações que as cidades tinham
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
entre si. É o que se pode ver observando como os homens daqueles tempos
declaravam guerra, faziam as pazes e celebravam alianças.
Duas cidades eram duas associações religiosas que não tinham os mesmos
deuses. Quando estavam em guerra, não eram apenas os homens que
combatiam; os deuses também tomavam parte na luta. E não se julgue que
isso seja mera ficção poética. Houve entre os antigos uma crença muito
arraigada e viva, em virtude da qual cada exército carregava consigo seus
deuses. Estavam convencidos que eles combatiam com os soldados, que os
defendiam, e eram por eles protegidos. Lutando contra o inimigo, cada um
julgava lutar também contra os deuses da outra cidade; era permitido detestar,
injuriar, agredir os deuses estranhos; podiam até fazê-los prisioneiros.
Destarte a guerra tinha um aspecto estranho. Imaginemos dois pequenos
exércitos armados enfrentando-se: cada um tem em seu meio suas estátuas,
seu altar, suas insígnias, que são emblemas sagrados(1); cada um tem seus
oráculos prometendo êxitos, seus áugures e adivinhos, que lhes asseguram
vitória. Antes da batalha, cada soldado nos dois exércitos pensa e diz como
este grego em Eurípides: Os deuses que combatem conosco são mais fortes
que os que combatem ao lado de nossos inimigos. Cada exército
pronuncia contra o exército inimigo uma imprecação no gênero daquela cuja
fórmula nos foi conservada por Macróbio: Ó deuses! espalhai o medo e o
terror entre nossos inimigos. Que esses homens, e todos os que habitam seus
campos e cidades, sejam por vós privados da luz do sol. Que esta cidade e
seus campos, suas cabeças e suas pessoas vos sejam sacrificadas(2). Dito
isto, de ambos os lados combate-se com aquele furor selvagem inspirado pelo
pensamento de se ter os deuses a seu lado, e de que se combate contra deuses
estrangeiros. Não há misericórdia para com o inimigo; a guerra é implacável;
a religião preside à luta e excita os combatentes. Não pode ali haver nenhuma
regra superior que modere o desejo de matar; é permitido degolar os
prisioneiros e acabar com os feridos.
Mesmo fora do campo de batalha não se tem idéia de nenhum dever, seja lá
qual for, em relação ao inimigo. Não existem direitos para o estrangeiro,
nunca, e com muito mais razão em tempo de guerra. A seu respeito não se
deve distinguir o que é justo do que é injusto. Múcio Cévola, e todos os
romanos, acreditavam que era belo matar um inimigo. O cônsul Márcio
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
vangloriava-se publicamente de haver enganado o rei da Macedônia. Paulo
Emílio vendeu como escravos cem mil epirotas, que se haviam entregue
voluntariamente às suas mãos(3).
O lacedemônio Fébidas, em plena paz, apoderara-se da cidadela dos tebanos.
Perguntaram a Agesilau a respeito da justiça dessa ação: Examinai apenas se
ela é útil diz o rei porque desde que uma ação é útil à pátria, é belo
praticá-la. Eis o direito das gentes das cidades antigas. Outro rei de
Esparta, Cleômenes, dizia que todo o mal se podia fazer aos inimigos era
sempre justo aos olhos dos deuses e dos homens(4).
O vencedor podia usar sua vitória como melhor lhe agradasse. Nenhuma lei
divina ou humana podia deter-lhes a vingança ou a cobiça. No dia em que
Atenas decretou que todos os mitilenos, sem distinção de idade ou de sexo,
deviam ser exterminados, não julgou ultrapassar seu direito; quando, no dia
seguinte, anulou o decreto, e se contentou com matar a mil cidadãos, e
confiscar todas as terras, Atenas julgou-se humana e indulgente. Depois da
tomada de Platéias, os homens foram mortos, as mulheres vendidas, e
ninguém acusou os vencedores de violação do direito(5).
Não se fazia guerra somente aos soldados, mas a toda a população: homens,
mulheres, crianças, escravos. Não a faziam somente às criaturas humanas,
mas aos campos e às messes. Queimavam casas, derrubavam árvores; a
colheita do inimigo quase sempre era dedicada aos deuses infernais, e,
conseqüentemente, queimada(6). Exterminavam os animais, e destruíam até
as sementeiras, que iriam produzir no ano seguinte. Uma guerra podia fazer
desaparecer de um só golpe o nome e a raça de todo um povo, e transformar
uma região fértil em deserto. É em virtude desse direito de guerra que Roma
estendeu a solidão a seu redor; do território onde os volscos tinham vinte e
três cidades, ela fez os pântanos pontinos; as cinqüenta e três cidades do Lácio
desapareceram; no Sâmnio, por muito tempo podiam ser reconhecidos os
lugares por onde os exércitos romanos haviam passado, menos pelos vestígios
de seus campos do que pela solidão que reinava nos arredores(7).
Quando o vencedor não exterminava os vencidos, tinha direito de suprimir sua
cidade, isto é, de exterminar sua associação religiosa e política. Então os
cultos se extinguiam, e os deuses eram esquecidos(8). Destruída a religião da
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
cidade, desaparecia simultaneamente a religião de cada família. Os lares se
apagavam. Com o culto caíam as leis, o direito civil, a família, a propriedade,
tudo o que se apoiava na religião(9). Escutemos o vencido a quem se fez
mercê da vida; obrigam-no a pronunciar a seguinte fórmula: Dou minha
pessoa, minha cidade, minha terra, a água que nela corre, meus deuses termos,
meus templos, meu móveis e utensílios, todas as coisas que pertencem aos
deuses, dou tudo ao povo romano(10). A partir desse momento os deuses,
os templos, as casas, as terras, as pessoas, pertenciam ao vencedor. Diremos
mais adiante que acontecia a tudo isso sob o domínio de Roma.
Para concluir um tratado de paz, era necessário um ato religioso. Já vemos na
Ilíada os arautos sagrados carregando as ofertas destinadas ao juramento dos
deuses, isto é, cordeiros e vinho; o chefe do exército, colocando as mãos sobre
a cabeça das vítimas, dirige-se aos deuses, e faz suas promessas; depois imola
os cordeiros e faz a libação, enquanto o exército pronuncia esta fórmula de
prece: Ó deuses imortais! Fazei com que, assim como esta vítima foi ferida
com o ferro, assim seja esmagada a cabeça do primeiro que quebrar seu
juramento(11). Os mesmos ritos são encontrados em todo o decorrer da
história grega. Ainda nos tempos de Tucídides concluiu-se um tratado por
sacrifício. Os chefes do povo, com a mão sobre a vítima imolada(12),
pronunciam uma fórmula de oração, obrigando-se perante os deuses. Cada
povo invoca seus deuses particulares(13) e pronuncia a fórmula de juramento
que lhe é própria(14). Essa oração e esse juramento feito aos deuses é que
obrigam as partes contratantes. Os gregos não dizem: assinar um tratado;
dizem: degolar a vítima do juramento: órkia témnein ou fazer a libação:
spéndesthai; e quando o historiador quer dar o nome daqueles que em
linguagem moderna chamaríamos de signatários do tratado, diz: Eis os nomes
daqueles que fizeram a libação(15).
Virgílio, que descreve com tão escrupulosa exatidão os costumes e ritos
romanos, não se afasta muito de Homero quando este nos mostra como se faz
um tratado: Coloca-se entre os dois exércitos um lar, levanta-se um altar às
divindades que lhes são comuns. Um sacerdote vestido de branco conduz a
vítima; os dois chefes fazem a libação, invocam os deuses, e enunciam sua
promessa; depois a vítima é sacrificada e as carnes são colocadas sobre a
chama do altar(16). Tito Lívio é de notável clareza sobre esse ponto do
direito público de Roma: Um tratado não pode ser concluído sem os feciais e
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
sem a realização dos ritos sacramentais, porque um tratado não é uma
convenção, uma sponsio, como entre os homens: um tratado se conclui pelo
enunciado de uma prece, precatio, onde se pede que o povo que faltar às
condições que acaba de enunciar seja ferido pelos deuses como a vítima que
acaba de ser sacrificada pelo fecial(17).
Somente essa cerimônia religiosa dava às convenções internacionais caráter
sagrado e inviolável. Todos conhecem a história das forcas caudinas. Um
exército inteiro, por meio de seus cônsules, de seus questores, de seus tribunos
e de seus centuriões, fizera uma convenção com os samnitas. Mas não houve
nem vítima imolada, nem preces nem juramento perante os deuses. Assim, o
senado julgou no direito de dizer que a convenção não tinha nenhum valor.
Anulando-o, nenhum patrício, nenhum pontífice pensou sequer que estava
cometendo um ato de má-fé.
Era opinião constante entre os antigos que cada homem não tinha obrigações
senão para com seus deuses particulares. Devemos lembrar as palavras ditas
por certo grego, cuja cidade adorava o herói Alabandos; dirigia-se a um
homem de outra cidade, que adorava a Hércules: Alabandos dizia ele é
deus, e Hércules não o é(18). Como semelhantes idéias era necessário que
nos tratados de paz cada, cidade tomasse seus próprios deuses como
testemunhas do juramento. Fizemos um tratado e derramamos libações
diziam os plateanos aos espartanos e tomamos por testemunhas, vós, os
deuses de vossos pais, e nós, os deuses que habitam nossas terras (19).
Procurava-se também invocar, se possível, divindades comuns a duas cidades,
jurando pelos deuses que são visíveis a todos: o sol, que a tudo ilumina, a
terra, que a todos alimenta. Mas os deuses de cada cidade, e seus heróis
protetores, eram muito mais importantes para os homens, e era necessário que
os contratantes tomassem-nos como testemunhas, se queriam verdadeiramente
obrigar-se pela religião.
Assim como durante a guerra os deuses misturavam-se aos combatentes,
assim também deviam tomar parte nos tratados de paz. Estipulava-se, pois,
que haveria aliança tanto entre os deuses como entre os homens das duas
cidades. Às vezes para marcar essa aliança dos deuses, ambos os povos
autorizavam-se mutuamente a assistir às suas festas sagradas(20). Outras
vezes abriam reciprocamente seus templos, e faziam trocas de ritos religiosos.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Roma estipulou um dia que o deus de Lanúvio protegeria de ali por diante os
romanos, que teriam direito de dirigir-lhe orações e de entrar em seu templo
(21). Muitas vezes cada uma das partes contratantes obrigava-se a render culto
às divindades da outra. Assim os helenos, tendo concluído um tratado com os
etólios, ofereceram, dali por diante, um sacrifício anual aos heróis dos aliados
(22). Às vezes ainda duas cidades convencionavam que cada uma delas
incluiria o nome da outra em suas orações(23).
Era freqüente, depois de uma aliança, o costume de representar por estátuas
ou medalhas as divindades de ambas as cidades dando-se as mãos. É por isso
que temos medalhas em que vemos unidos o Apolo de Mileto e o Gênio de
Esmirna, a Palas dos sidianos e a Artêmis de Perga, o Apolo de Hierápolis e a
Artêmis de Éfeso. Virgílio, falando de uma aliança entre a Trácia e os
troianos, mostra os penates dos dois povos unidos e associados(24).
Esses estranhos costumes correspondiam perfeitamente à idéia que os antigos
faziam dos deuses. Como cada cidade tinha os seus, parecia natural que esses
deuses figurassem nos combates e nos tratados. A guerra e a paz entre duas
cidades era a guerra ou a paz entre duas religiões. O direito das gentes entre os
antigos por muito tempo baseou-se nesses princípios. Quando os deuses eram
inimigos, havia guerra sem lei e sem piedade; quando eram amigos, os
homens se uniam, e tinham o sentimento de deveres recíprocos. Supor que as
divindades políadas de duas cidades tinham algum motivo para se aliarem,
bastava para que ambas as cidades se aliassem. A primeira cidade com a qual
Roma contratou amizade foi Cere, na Etrúria, e Tito Lívio nos diz o motivo
dessa aliança: no desastre da invasão gaulesa, os deuses romanos haviam
encontrado asilo em Cere, morando nessa cidade, onde receberam culto; um
vínculo sagrado de hospitalidade formara-se então entre os deuses romanos e
a cidade etrusca(25); a partir de então a religião não permitia que as duas
cidades fossem inimigas; eram aliadas para sempre.
CAPÍTULO XVI
AS CONFEDERAÇÕES. AS COLÔNIAS
Sem dúvida, o espírito grego não se esforçou para se elevar acima do regime
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
municipal; várias cidades logo se reuniram em uma espécie de federação, mas
ainda aqui as práticas religiosas tiveram grande importância. Assim como a
cidade tinha seu lar no pritaneu, as cidades associadas tiveram um lar comum
(1). A cidade tinha seus heróis, suas divindades políadas, suas festas; a
confederação também teve seu templo, seu deus, suas cerimônias, seus
aniversários, assinalados por banquetes piedosos e por jogos sagrados.
O grupo das doze colônias jônias da Ásia Menor tinha um templo comum,
chamado Panionium(2); estava consagrado a Poséidon Helicônio, que esses
mesmos homens haviam honrado no Peloponeso antes da migração(3). Cada
ano eles se reuniam nesse lugar sagrado para celebrar a festa chamada
Paniônia; ofereciam juntos um sacrifício, e partilhavam entre si as iguarias
sagradas(4). As cidades dóricas da Ásia tinham templo comum no
promontório Triópio; esse templo era dedicado a Apolo e a Posséidon, e nele
se celebravam, nos dias aniversários, os jogos triópicos(5).
Sobre o continente grego, o grupo das cidades beóticas tinha seu templo de
Atenas Itônia(6), e suas festas anuais, Pamboeotia. As cidades aquéias
ofereciam sacrifícios comuns em Égio, e rendiam culto a Deméter Panaquéia
(7).
O vocábulo anfictionia parece ter sido termo antigo, que designava a
associação de várias cidades. Desde as primeiras idades da Grécia houve
grande número de anfictionias. Conhece-se a de Caláuria, a de Delos, a das
Termópilas e a de Delfos. A ilha de Caláuria era o centro onde se reuniam as
cidades de Hermíona, Epidauro, Prásias, Nauplia, Egina, Atenas e Orcômeno;
essas cidades ofereciam ali um sacrifício, no qual nenhuma outra tomava parte
(8). O mesmo acontecia em Delos, para onde, desde a mais remota
antiguidade, as ilhas vizinhas enviavam representantes a fim de celebrar a
festa de Apolo, com sacrifícios, coros e jogos(9).
A anfictionia das Termópilas, mais conhecida na história, não era de natureza
diversa das precedentes. Formada originalmente entre cidades vizinhas(10),
ela possuía o templo de Deméter, sacrifícios e festas anuais(11).
Não havia anfictionia ou federação sem culto, porque diz um antigo o
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mesmo pensamento que presidiu à fundação das cidades, inspirou também a
instituição dos sacrifícios comuns a várias cidades; unidas pela vizinhança e
pelas necessidades naturais, elas celebravam juntas as festas religiosas e os
panegíricos; o banquete sagrado e a libação, realizados em comum, faziam
nascer um laço de amizade(12). As cidades confederadas enviavam, nos
dias marcados pela religião, alguns homens, revestidos momentaneamente de
caráter sacerdotal, chamados teoros, pilágoras ou híeromnêmones. Uma
vítima era imolada diante deles em honra do deus da associação, e as carnes,
cozidas sobre o altar, eram divididas entre os representantes das cidades. Esse
banquete comum, acompanhado de hinos, preces e jogos, era a marca e o
vínculo da associação.
Se a própria unidade do corpo helênico se manifestou tão claramente ao
espírito dos gregos, foi sobretudo pelos deuses que lhes eram comuns, e pelas
cerimônias sagradas em que se reuniam. À imagem das divindades políadas,
tiveram um Zeus pan-helênico. Os jogos olímpicos, ístmicos, nemeus, píticos,
eram grandes solenidades religiosas, nas quais todos os gregos, pouco a
pouco, passaram a ser admitidos. Cada cidade mandava sua teoria, a fim de
tomar parte no sacrifício(13). O patriotismo grego não conheceu por muito
tempo senão essa forma religiosa. Tucídides lembra muitas vezes os deuses
comuns aos helenos(14), e quando Aristófanes conjura seus compatriotas a
renunciar às lutas intestinas, diz-lhes: Vós, que em Olímpia, nas Termópilas
e em Delfos aspergis os altares com a mesma água lustral, não atormenteis
mais a Grécia com vossas querelas, mas uni-vos contra os bárbaros(15).
Essas anfictionias e confederações tinham pouca ação política. Imaginar as
teorias das Termópilas, do Paniônio ou de Olímpia como um congresso ou
senado federal seria grande erro. Se esses homens, às vezes, foram obrigados
a se ocupar de interesses materiais e políticos das associações, não o fizeram
senão por exceção, e sob o império de circunstâncias particulares. As
anfictionias não impediam que seus membros se guerreassem entre si. Suas
atribuições regulares consistiam, não em deliberar sobre interesses, mas em
honrar os deuses, em celebrar as cerimônias, em manter a trégua sagrada
durante as festas; se as teorias se erigiam em tribunal, e infligiam pena a uma
das cidades da associação, não o fazia senão porque essa cidade havia faltado
a algum dever religioso, ou havia usurpado alguma terra consagrada às
divindades(16).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Instituições análogas reinaram na antiga Itália. As cidades do Lácio tinham as
férias latinas: seus representantes se reuniam cada ano no santuário de Júpiter
Latiaris, sobre o monte Albano. Imolava-se um touro branco, cuja carne era
dividida em tantas partes quantas as cidades confederadas(17). As doze
cidades da Etrúria tinham também um templo comum, uma festa anual, e
jogos presididos pelo grão-sacerdote(18).
Sabe-se que nem os gregos, nem mesmo os romanos, praticaram a
colonização da mesma forma que os modernos. Uma colônia não era uma
dependência ou um anexo do Estado colonizador: era um Estado completo e
independente. Todavia, um vínculo de natureza particular existia entre a
colônia e a metrópole, devido à maneira pela qual toda colônia era fundada.
Não devemos acreditar, com efeito, que as colônias se formassem ao acaso,
segundo o capricho de certo número de emigrantes. Um bando de aventureiros
nunca podia fundar uma cidade, e não tinha o direito, segundo as idéias dos
antigos, de se organizar em cidade. Havia regras às quais era necessário
conformar-se. A primeira condição era possuir, antes de mais nada, um fogo
sagrado; a segunda era levar pessoa capaz de celebrar os ritos da fundação. Os
emigrantes pediam tudo isso à metrópole. Carregavam o fogo acendido em
seu lar(19), e levavam também um fundador, que devia pertencer a uma das
famílias santas da cidade(20). Este celebrava a fundação da nova cidade
seguindo os mesmos ritos que haviam sido outrora celebrados para a cidade
da qual saíra(21). O fogo do lar estabelecia para sempre um vínculo religioso
e de parentesco entre as duas cidades. A que o mandara era chamada cidademãe(
22). A que o havia recebido era considerada filha em relação a esta(23).
Duas colônias da mesma cidade eram chamadas entre si de cidades-irmãs(24).
A cidade tinha o mesmo culto que a metrópole(25); podia ter alguns deuses
particulares, mas devia conservar e honrar as divindades políadas da cidade de
onde se originara. As doze cidades jônias da Ásia Menor, que eram
consideradas colônias de Atenas, não porque se compunham de atenienses,
mas porque haviam levado o fogo sagrado do pritaneu de Atenas, e por terem
sido fundadas por fundadores atenienses, rendiam culto às divindades de
Atenas, celebrando suas festas(26), e enviando-lhes todos os anos sacrifícios e
teorias(27). Assim faziam as colônias de Corinto e as de Naxos(28). Por isso
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Roma, colônia de Alba, e, conseqüentemente, de Lavínio, fazia cada ano um
sacrifício sobre o monte Albano, e mandava vítimas a Lavínio, onde estavam
seus penates(29). Antigo costume dos gregos exigia que as antigas
colônias recebessem da metrópole os pontífices que presidiam ao culto, e que
velavam pela conservação dos ritos(30).
Esses laços religiosos entre colônias e metrópoles conservaram-se muito
poderosos até o século quinto antes de nossa era. Quanto a laços políticos, os
antigos ficaram por muito tempo sem pensar em estabelecê-los(31).
CAPÍTULO XVII
O ROMANO. O ATENIENSE
Essa mesma religião que fundara sociedades, governando-as por tanto tempo,
moldou também a alma humana, emprestando ao homem seu caráter. Por seus
dogmas e práticas ela deu ao romano e ao grego certa maneira de pensar e de
agir, e certos hábitos, dos quais por muito tempo não se puderam desfazer. A
religião mostrava aos homens deuses por toda parte, deuses pequenos,
facilmente irritáveis e malfazejos. A religião esmagava o homem sob o temor
de ter sempre deuses contrários, que lhes tiravam toda liberdade de ação.
É necessário que vejamos o lugar ocupado pela religião na vida de um
romano. Sua casa é para ele o que para nós é um templo, onde encontra seus
deuses e seu culto. Seu lar é um deus; as paredes, as portas, a soleira, são
deuses; os marcos que rodeiam seu campo são ainda deuses. O túmulo é um
altar, e seus antepassados criaturas divinas.
Cada uma de suas ações diárias é um rito; todo seu dia pertence à religião. De
manhã e de noite invoca o fogo sagrado, os penates, os antepassados; ao sair
da casa, ou voltando para ela, dirige-lhes preces. Cada refeição é um ato
religioso, que partilha com as divindades domésticas. O nascimento, a
iniciação, a vestidura da toga, o casamento e os aniversários de todos esses
acontecimentos são atos solenes do culto.
O homem sai de casa, e quase não pode dar um passo sem encontrar um
objeto sagrado; ora é uma capela, ora um lugar outrora ferido pelo raio, ora
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
um túmulo; de quando em quando deve recolher-se, e pronunciar uma oração,
ou voltar os olhos, e cobrir o rosto para evitar a vista de algum objeto funesto.
O romano sacrifica diariamente em casa, mensalmente na cúria, e várias vezes
por ano em sua gens ou tribo. Além de todos esses deuses, deve ainda cultuar
os deuses da cidade. Roma tem mais deuses que cidadãos.
Oferece sacrifícios para agradecer aos deuses; oferece outros, em maior
número, para apaziguar sua cólera. Um dia ele figura em sua procissão,
dançando ao ritmo de uma melodia antiga, ao som da flauta sagrada. Outro
dia conduz carros, onde vão deitadas as estátuas das divindades(1). Outra vez
é um lectisternium: uma mesa é preparada na rua, e provida de iguarias; sobre
os leitos deitam-se as estátuas dos deuses, e cada romano se inclina diante
delas, uma coroa à cabeça e um ramo de louro nas mãos(2).
Há festas para as sementeiras, para a colheita, para a poda da vinha. Antes que
o grão se transforme em espiga, fez mais de dez sacrifícios, e invocou uma
dezena de divindades particulares para o bom êxito da colheita. Sobretudo, é
grande o número de festas dedicadas aos mortos, porque são temidos(3).
O romano jamais sai de casa sem olhar para ver se não aparece algum pássaro
de mau agouro. Há palavras que não ousa pronunciar. Quando deseja alguma
coisa inscreve seu voto em uma tabuleta, que depõe aos pés da estátua de um
deus(4).
A todo o momento ele consulta os deuses, e deseja conhecer suas vontades.
Todas suas decisões são encontradas nas entranhas das vítimas, no vôo dos
pássaros, no aviso dos raios(5). A notícia de uma chuva de sangue ou de um
boi que falou perturba-o, e não ficará tranqüilo senão depois de se reconciliar
com os deuses mediante uma cerimônia expiatória(6).
O primeiro passo que dá fora de casa é com o pé direito. Só corta os cabelos
durante a lua cheia. Carrega amuletos. Contra o incêndio, cobre as paredes da
casa com inscrições mágicas. Conhece fórmulas para evitar doenças, e outras
para curá-las; mas é necessário repeti-las vinte e sete vezes, e cuspir todas as
vezes de determinada maneira(7).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
No senado, não toma nenhuma deliberação, caso as vítimas não tenham dado
sinais favoráveis. Se ouve o chiado de algum rato, abandona imediatamente a
assembléia do povo. Renuncia aos melhores projetos, se percebe algum mau
presságio, ou ouve alguma palavra funesta. É valente no combate, mas com a
condição que os auspícios lhe assegurem vitória.
O romano que aqui apresentamos não é o homem do povo, o homem de
espírito fraco, que a miséria e a ignorância mantém na superstição. Falamos
do patrício, do homem nobre, poderoso e rico. Esse patrício ora é guerreiro,
magistrado, cônsul, agricultor, comerciante; mas por toda parte, e sempre, ele
é sacerdote, e seu pensamento está fixado nos deuses. Patriotismo, amor à
glória, amor às riquezas, por mais poderosos que sejam esses sentimentos
sobre sua alma, o temor dos deuses domina tudo. Horácio disse a palavra mais
verdadeira sobre o romano: foi por medo dos deuses que o romano se tornou
senhor da terra:
Dis te minorem quod geris, imperas.
Costuma-se dizer que a religião dos romanos era uma religião de política. Mas
podemos supor que um senado de trezentos membros, um corpo de três mil
patrícios tenha combinado tão bem, e com tal unanimidade, para enganar o
povo ignorante? E isso durante séculos, sem que, no meio de tanta rivalidade,
de tantas lutas e ódios pessoais, uma só voz se tenha levantado para dizer: É
mentira! Se um patrício traísse os segredos da casta, se, dirigindo-se aos
plebeus, que suportavam impacientemente o jugo da religião, os
desembaraçasse de tantos auspícios e sacerdotes, esse homem conquistaria
imediatamente tal crédito, que se tornaria senhor absoluto do Estado. Será
possível pensar que, se os patrícios não acreditavam na religião que
praticavam, semelhante tentação não seria suficiente para forçar, pelo menos
um dentre eles, a revelar o segredo? Supor que uma religião seja capaz de se
estabelecer por convenção e de se sustentar pela mentira é enganar-se
gravemente com a natureza humana. Contemos, com Tito Lívio, quantas
vezes essa religião incomodou os próprios patrícios, quantas vezes embaraçou
o senado e entravou sua ação, e depois digamos se essa religião foi inventada
para comodidade dos políticos. Foi nos tempos de Cícero que se começou a
crer que a religião era útil ao governo, mas a religião já estava morta nas
almas.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Tomemos um romano dos primeiros séculos; escolhamos um dos mais
guerreiros, Camilo, que foi cinco vezes ditador, e que venceu mais de dez
batalhas. Para não fugirmos da verdade, devemos imaginá-lo tanto como
sacerdote quanto como guerreiro. Camilo pertence à gens Fúria; seu
sobrenome é uma palavra que designa função sacerdotal. Quando menino,
fazem-no vestir a toga pretexta, que indica sua casta, e impõem-lhe a bula que
afasta a má sorte. Cresceu assistindo todos os dias às cerimônias do culto;
passou a juventude instruindo-se nos ritos da religião. É verdade que se
declarou uma guerra, e que o sacerdote se fez soldado; viram-no, ferido na
coxa em um combate da cavalaria, arrancar a espada da ferida, e continuar a
lutar. Depois de muitas campanhas, foi elevado à magistratura; como
magistrado, fez sacrifícios públicos, julgou, comandou o exército. Dia veio
em que se pensou em seu nome para o cargo de ditador. Nesse dia, o
magistrado em função, depois de se recolher durante uma noite clara,
consultou os deuses: seu pensamento estava ligado a Camilo, cujo nome
pronunciava baixinho, olhos fixos no céu, à procura de presságios. Os deuses
só mandaram bons auspícios, porque Camilo lhes era agradável; nomeiam-no
ditador.
Ei-lo chefe do exército; sai da cidade, não sem antes haver consultado os
auspícios, e imolado grande número de vítimas. Tem sob suas ordens muitos
oficiais, e quase outros tantos sacerdotes, um pontífice, áugures, arúspices,
pulários, vitimários, e um altar portátil para levar o fogo sagrado.
Encarregam-no de terminar a guerra contra Veios, que há nove anos atacam
inutilmente. Veios é uma cidade isto é, quase uma cidade sagrada; para lutar,
necessita mais de piedade que de coragem. Se há nove anos que os romanos
são vencidos, é porque os etruscos conhecem melhor os ritos que são
agradáveis aos deuses, e as fórmulas mágicas que conquistam seus favores.
Roma, por sua parte, abrira os livros sibilinos, procurando neles a vontade dos
deuses. Percebeu então que suas férias latinas haviam sido manchadas por
algum vício de forma, e renovou o sacrifício. Todavia, os etruscos continuam
a vencer; não resta senão uma solução: raptar um sacerdote etrusco, e arrancarlhe
o segredo dos deuses. Um sacerdote veiense é capturado, e levado ao
senado: Para que Roma conquiste Veios, é necessário que abaixe o nível do
lago Albano, tomando todo o cuidado para que suas águas não corram para o
mar. Roma obedece, cavam-se uma infinidade de canais e de sulcos, e a
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
água do lago se perde pelos campos.
Nesse momento Camilo é eleito ditador. Com o exército, dirige-se para Veios.
Está certo da vitória, porque todos os oráculos foram revelados, todas as
ordens dos deuses haviam sido cumpridas; além do mais, antes de deixar
Roma, prometera aos deuses protetores festas e sacrifícios. Para vencer, não
negligencia os meios humanos: aumenta o exército, intensifica a disciplina,
manda cavar uma galeria subterrânea para penetrar na cidadela. Chega o dia
do ataque; Camilo dorme em sua tenda; consulta os auspícios e imola vítimas.
Os pontífices, os áugures o rodeiam: revestido do paludamentum, Camilo
invoca os deuses: Sob teu comando, ó Apolo, e por tua vontade, que me
inspira, marcho para tomar e destruir a cidade de Veios; se sair vencedor,
prometo consagrar-te a décima parte dos troféus. Mas não basta ter os
deuses a seu favor; o inimigo também tem uma divindade poderosa que o
protege. Camilo a evoca por esta fórmula: Rainha Juno, que tens em Veios
tua morada, eu te rogo: vem conosco, os vencedores; segue-nos até nossa
cidade, recebe nosso culto; que nossa cidade se torne tua!. Depois,
terminados os sacrifícios, ditas as orações, recitadas as fórmulas, quando os
romanos estão certos do favor dos deuses, e que nenhum deus defende mais o
inimigo, atacam a cidade, e vencem.
Assim é Camilo. Um general romano é um homem que sabe combater
admiravelmente, que conhece sobretudo a arte de se fazer obedecer, mas que
crê firmemente nos áugures; que cumpre cada dia atos religiosos, e que está
convencido de que o mais importante não é a coragem, nem mesmo a
disciplina, mas o enunciado de algumas fórmulas, exatamente pronunciadas
de acordo com os ritos. Essas fórmulas, dirigidas aos deuses, determinam-nos
e quase sempre os constrangem a dar-lhes a vitória. Para esse general, a
recompensa suprema é que o senado lhe dê permissão para celebrar o
sacrifício triunfal Sobe então ao carro sagrado, atrelado a quatro cavalos
brancos, os mesmos que conduzem a estátua de Júpiter no dia da grande
procissão, veste-se das roupas sagradas, a mesma que usa nos dias de festa; a
cabeça coroada, segurando um ramo de louro na mão direita e um cetro de
marfim na esquerda; são esses exatamente os atributos e insígnias ostentadas
pela estátua de Júpiter(8). Sob essa majestade quase divina, mostra-se aos
cidadãos, e vai prestar homenagens à majestade verdadeira do maior deus
romano. Sobe a encosta do Capitólio, e chega diante do templo de Júpiter,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
onde imola as vítimas.
O medo dos deuses não era sentimento próprio dos romanos; imperava
também entre os gregos. Esses povos, originalmente constituídos pela
religião, por ela nutridos e criados, conservaram por muito tempo a marca de
sua educação primitiva. São conhecidos os escrúpulos do espartano, que
jamais começa uma expedição enquanto a lua não alcança sua plenitude(9),
que imola continuamente vítimas para saber se deve combater, e que renuncia
aos empreendimentos mais necessários e certos porque um mau presságio o
assusta. O ateniense afasta-se do romano e do espartano por mil traços de
caráter e de espírito, mas o medo dos deuses torna-os semelhantes a eles. Um
exército ateniense jamais entra em campanha antes do sétimo dia do mês, e,
quando uma frota parte pelo mar, toma grande cuidado em redourar as
estátuas de Palas.
Xenofonte afirma que os atenienses têm mais festas religiosas que nenhum
outro povo grego(10). Quantas vítimas oferecidas aos deuses! diz
Aristófanes(11) Quantos templos! Quantas estátuas! Quantas procissões
sagradas! A todo momento do ano vemos festins religiosos e vítimas
coroadas. Nós diz Platão, oferecemos os mais numerosos
sacrifícios, e realizamos para os deuses as procissões mais brilhantes, e
sagradas(12). A cidade de Atenas e seu território estão cobertos de
templos e capelas, destinadas ao culto da cidade, das tribos, dos demos e das
famílias. Cada casa é um templo e em quase todos os campos há um túmulo
sagrado.
O ateniense, que imaginamos tão inconstante, tão caprichoso, tão livrepensador,
tem, pelo contrário, singular respeito para com as velhas tradições e
os velhos ritos. Sua principal religião, a que dele obtém a devoção mais
fervente, é a religião dos antepassados e dos heróis. Rende culto aos mortos e
teme-os. Uma de suas leis o obriga a oferecer-lhes cada ano as primícias da
colheita; outra proíbe-lhe pronunciar uma só palavra que possa provocar-lhes
a cólera(13). Tudo o que diz respeito à antiguidade é santo para o ateniense.
Em seus livros sagrados estão anotados ritos dos quais jamais se afasta(14); se
um sacerdote introduzisse no culto a mais ligeira alteração, seria punido com
a morte. Os ritos mais estranhos são observados de século em século. Um dia
por ano, o ateniense faz um sacrifício em honra de Ariana; e porque diziam
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
que a amante de Teseu morrera de parto, é necessário que se imitem os gritos
e os movimentos da mulher ao dar à luz. Outra festa anual é celebrada,
chamada Oscofórias, que é como a pantomima da volta de Teseu à Ática;
coroa-se o caduceu de um arauto, porque o arauto de Teseu assim o fez; gritase
de certo modo, como se supõe tenha gritado o arauto, e realiza-se uma
procissão, na qual todos se vestem como nos tempos de Teseu. Há outro dia
em que o ateniense não deixa de ferver legumes em marmitas de determinada
forma; é um rito cuja origem se perde na antiguidade dos tempos, e cujo
sentido não se conhece mais, embora seja renovado piedosamente todos os
anos(15).
O ateniense, como o romano, tem seus dias nefastos, nos quais não se
celebram casamentos, não se dá início a nenhum empreendimento, não se
reúnem assembléias, não se administra a justiça. O décimo oitavo dia e o
décimo nono dia de cada mês são usados para as purificações. No dia das
Plintérias, o mais nefasto de todos, cobre-se com um véu a estátua da grande
divindade políada(16). Pelo contrário, no dia das Panatenéias, o véu da deusa
é levado em grande procissão, e todos os cidadãos, sem exceção de idade nem
de classe, devem participar do cortejo. O ateniense faz sacrifícios pelas
colheitas, pela volta da chuva e do bom tempo; para curar doenças, e afastar a
fome ou a peste. Atenas tem sua coleção de antigos oráculos, como Roma tem
os livros sibilinos, e sustenta, no pritaneu, homens que lhe anunciam o futuro
(17). Em suas ruas, a cada passo encontram-se adivinhos, sacerdotes,
intérpretes de sonhos(18). O ateniense crê nos presságios; um espirro ou um
zunido nos ouvidos obrigam-no a interromper um empreendimento(19).
Nunca embarca sem interrogar os auspícios(20). Antes de se casar não deixa
de consultar o vôo dos pássaros(21). Acredita nas palavras mágicas, e, se está
doente, usa amuletos pendurados ao pescoço(22). A assembléia do povo se
dispersa apenas aparece no céu um sinal funesto(23). Se um sacrifício foi
perturbado com alguma notícia desagradável, deve ser repetido(24).
O ateniense não começa nem uma frase sem antes invocar a boa fortuna(25).
Na tribuna, o orador inicia o discurso invocando de bom grado os deuses e
heróis que habitam a região. Governa-se o povo recitando oráculos. Os
oradores, para fazerem prevalecer suas idéias, repetem a todo instante: A
deusa assim o ordena(26).
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Nícias pertence a uma grande e rica família. Muito jovem ainda, conduz ao
santuário de Delos uma teoria, isto é, algumas vítimas, e um coro para cantar
os louvores do deus durante o sacrifício. Voltando a Atenas, presta
homenagem aos deuses com uma parte de sua fortuna, dedicando uma estátua
a Atenas, e uma capela a Dionísio. Nícias ora é hestiator, e faz as despesas
necessárias para os banquetes sagrados da tribo; ora é corego, organizando o
coro para as festas religiosas. Não deixa passar um dia sem oferecer sacrifício
a algum deus. Tem um adivinho adido à sua casa, que não o deixa, e que
consulta tanto sobre negócios públicos quanto sobre interesses particulares.
Nomeado general, dirige uma expedição contra Corinto; ao voltar a Atenas,
vencedor, percebe que dois de seus soldados mortos haviam ficado insepultos
em território inimigo; levado por escrúpulo religioso, faz parar a frota, e
manda um arauto pedir aos coríntios permissão para enterrar os dois
cadáveres. Algum tempo depois o povo ateniense delibera sobre uma
expedição à Sicília. Nícias sobe à tribuna, e declara que os sacerdotes e seu
adivinho anunciam presságios que se opõem à expedição. É verdade que
Alcibíades tem outros adivinhos, que anunciam oráculos contrários. O povo
fica indeciso. Chegam alguns homens vindos do Egito; haviam consultado o
deus Amon, que já começava a estar em voga, e anunciam este oráculo: Os
atenienses prenderão todos os siracusanos. O povo se decide
imediatamente pela guerra(27).
Nícias, apesar de tudo, comanda a expedição. Antes de partir, oferece um
sacrifício, de acordo com o costume. Leva consigo, como todo general, um
grupo de adivinhos, de sacrificadores, de arúspices e de arautos. A frota
transporta seu lar; cada embarcação ostenta um emblema que representa uma
divindade.
Mas Nícias tem poucas esperanças. A desgraça não lhe havia sido anunciada
com bastantes prodígios? Alguns corvos haviam danificado a estátua de Palas;
um homem mutilara-se sobre o altar, e a partida realizara-se durante os dias
nefastos das Plintérias! Nícias está absolutamente convencido de que essa
guerra será fatal a ele e à pátria. Por isso, durante todo o transcorrer da
campanha., o vêem sempre tímido e circunspecto, sem nunca se atrever a dar
o sinal da batalha, ele, Nícias, conhecido por sua bravura de soldado e sua
habilidade de general.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Os atenienses não conseguem tomar Siracusa, e, depois de perdas cruéis, é
necessário voltar para Atenas. Nícias prepara a frota para a retirada; o mar
ainda está livre. Mas sobrevém um eclipse lunar. Consulta o adivinho; este
responde que o presságio é contrário, e que é necessário esperar três vezes
nove dias. Nícias obedece, passando todo esse tempo inativo, oferecendo
muitos sacrifícios a fim de apaziguar a cólera dos deuses. Durante esse tempo,
os inimigos fecham-lhe o porto e destroem-lhe a frota. A retirada só é possível
por terra, mas é tarde: nem ele, nem nenhum dos seus soldados escapa das
mãos dos siracusanos.
Que disseram os atenienses ao saber do desastre? Eles conheciam a coragem
pessoal de Nícias, e sua admirável constância. Não o criticam por haver
seguido as opiniões da religião. Criticam-no apenas por levar consigo
adivinho ignorante, que se enganara a respeito do presságio do eclipse lunar;
ele deveria saber que, para um exército em retirada, a lua que esconde sua luz
é presságio favorável(28).
CAPÍTULO XVIII
DA ONIPOTÊNCIA DO ESTADO. OS ANTIGOS NÃO CONHECERAM A
LIBERDADE INDIVIDUAL
A cidade havia sido fundada como uma religião, constituindo-se como uma
igreja. Daí sua força, daí também sua onipotência, e o império absoluto que
exercia sobre seus membros. Em uma sociedade estabelecida sobre tais
princípios, a liberdade individual não podia existir. O cidadão ficava
submetido, em tudo e sem reservas, à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A
religião, que dera origem ao Estado, e o Estado, que sustentava a religião,
apoiavam-se mutuamente, sustentavam-se um ao outro, e formavam um só
corpo; esses dois poderes associados e perfeitamente unidos constituíam um
poder quase sobre-humano, ao qual alma e o corpo submetiam-se igualmente.
O homem nada tinha de independente. Seu corpo pertencia ao Estado, e
destinava-se à sua defesa; em Roma o serviço militar era obrigatório até os
quarenta e seis anos; em Atenas e Esparta o era por toda a vida(1). Sua fortuna
estava sempre à disposição do Estado; se a cidade tivesse necessidade de
dinheiro, podia mandar às mulheres que lhe entregassem as jóias, aos credores
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
que privassem de seus créditos, aos proprietários de olivais que lhe cedessem
gratuitamente o óleo que haviam fabricado(2).
A vida privada não escapava a essa onipotência do Estado. Muitas cidades
gregas proibiam ao homem o celibato(3). Esparta punia não somente quem
não se casava, como também quem se casava tarde. O Estado podia
prescrever, em Atenas, o trabalho, e em Esparta, a ociosidade(4). O Estado
exercia sua tirania até nas menores coisas; em Locres, a lei proibia aos
homens beber vinho puro; em Roma, em Mileto e em Marselha, fazia o
mesmo com as mulheres(5). A moda, comumente, era fixada pelas leis de
cada cidade; a legislação de Esparta dava regras para os penteados das
mulheres, e a de Atenas proibia-lhes levar em viagem mais de três vestidos(6).
Em Rodes a lei proibia que se fizesse a barba; em Bizâncio, punia com multa
quem possuísse uma navalha; em Esparta, pelo contrário, a lei exigia que se
raspasse o bigode(7).
A lei tinha o direito de não tolerar deformidades ou defeitos em seus cidadãos.
Em conseqüência, mandava aos pais de filhos defeituosos que os matassem.
Essa lei encontrava-se nos antigos códigos de Esparta e de Roma(8). Não
sabemos se existia em Atenas; sabemos somente que Aristóteles e Platão a
inscreveram em suas legislações ideais.
Na história de Esparta há um fato que Plutarco e Rousseau muito admiravam.
Esparta acabava de ser vencida em Leuctra, e muitos de seus cidadãos haviam
perecido. A essa notícia, os pais dos mortos deviam mostrar-se alegres em
público. A mãe que sabia que o filho escapara ao desastre, e que ia revê-lo,
mostrava-se aflita, e chorava. A que sabia que não veria mais o filho,
mostrava-se alegre, e percorria os templos agradecendo aos deuses. Por aí
podemos avaliar o poder de um Estado que ordenava a inversão dos
sentimentos naturais, e que era obedecido!
O Estado não admitia que ninguém ficasse indiferente a seus interesses; o
filósofo, o homem de estudos não tinha direito de viver à parte. Era obrigado a
votar nas assembléias, e a exercer a magistratura quando necessário. Em um
tempo em que as discórdias eram freqüentes, a lei ateniense não permitia a
ninguém ficar neutro; o cidadão devia combater com um partido ou com
outro; contra quem quisesse ficar alheio às facções, e mostrar-se calmo, a lei
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
pronunciava uma lei severa; a perda do direito de cidadania(9).
A educação, entre os gregos, estava longe de ser livre. Pelo contrário, não
havia nada em que o Estado se quisesse mostrar mais poderoso. Em Esparta, o
pai não tinha nenhum direito sobre a educação da criança. Parece que a lei era
menos rigorosa em Atenas, ainda que a cidade exigisse que a educação fosse
comum, e ministrada por mestres escolhidos pelo Estado. Aristófanes, em um
trecho eloqüente, mostra-nos as crianças de Atenas dirigindo-se à escola; em
ordem, distribuídos de acordo com os bairros, as crianças caminham em filas,
na chuva, na neve ou ao sol; já parecem compreender que estão cumprindo
um dever cívico(10). O Estado queria dirigir sozinho a educação, e Platão diz
o motivo dessa exigência(11): Os pais não devem ser livres de mandar ou
não os filhos aos mestres escolhidos pela cidade, porque as crianças
pertencem menos aos pais que à cidade. O Estado considerava o corpo e a
alma de cada cidadão como propriedade sua; por isso queria moldar esse
corpo e essa alma de modo a tirar o melhor partido. Ensinava-lhe ginástica,
porque o corpo do homem era uma arma para a cidade, e era necessário que
essa arma fosse tão forte e dócil quanto possível. Ensinava-lhe também
cânticos religiosos, hinos, danças sagradas, porque esse conhecimento era
necessário para a boa execução dos sacrifícios e festas da cidade(12).
Reconhecia-se ao Estado o direito de impedir que houvesse um ensino livre ao
lado do seu. Atenas, certa vez, promulgou uma lei que proibia instruir os
jovens sem autorização dos magistrados, e outra que proibia especialmente o
ensino da filosofia(13).
O homem não escolhia suas crenças. Devia apenas crer e submeter-se à
religião da cidade. Podia-se odiar ou desprezar os deuses da cidade vizinha;
quanto às divindades de caráter universal e geral, como Júpiter Celeste, Cibele
ou Juno, era-se livre de acreditar nelas, ou não. Mas que ninguém ousasse
duvidar da Atenas políada, ou de Erecteu, ou de Cécrops. Seria grande
impiedade contra a religião e o Estado, que este devia punir com toda
severidade. Sócrates foi condenado à morte por esse crime(14). A liberdade
de pensamento em relação à religião da cidade era absolutamente
desconhecida entre os antigos. Era necessário conformar-se a todas as regras
do culto, tomar parte em todas as procissões e banquetes sagrados. A
legislação ateniense pronunciava uma pena contra os que se abstinham de
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
celebrar religiosamente uma festa nacional(15).
Os antigos, portanto, não conheciam nem a liberdade da vida particular, nem a
liberdade de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana valia bem
pouco diante da autoridade santa, e quase divina, que se chamava pátria ou
Estado. O Estado não tinha somente, como em nossas sociedades modernas,
direito de justiça em relação aos cidadãos. Podia punir sem que houvesse
culpa, bastando que seu interesse estivesse em jogo. Certamente Aristides não
havia cometido nenhum crime, e nem sequer era suspeito; mas a cidade tinha
o direito de expulsá-lo de seu território, apenas porque Aristides, por suas
virtudes, adquirira muita influência, e podia tornar-se perigoso, se o quisesse.
Chamava-se a isso ostracismo, instituição que não era exclusiva de Atenas;
encontramo-la também em Argos, em Mégara, em Siracusa, e Aristóteles dá a
entender que existia em toda as cidades gregas que tinham governo
democrático(16). Ora, o ostracismo não era um castigo; era uma precaução
que a cidade tomava contra o cidadão que supunha poder causar-lhe prejuízos
algum dia. Em Atenas, podia-se acusar um homem, e condená-lo por
incivismo, isto é, por falta de afeição para com o Estado. Nada garantia a vida
humana quando se tratava do interesse da cidade. Roma promulgou uma lei
pela qual era permitido matar toda a pessoa que tivesse a intenção de se tornar
rei(17). Assim, funesta máxima de que a lei do Estado é a lei suprema, foi
formulada pela antiguidade(18). Pensava-se que o direito, a justiça, a moral,
tudo devia ceder diante do interesse da pátria.
É, portanto, erro singular entre todos os erros humanos pensar que nas cidades
antigas o homem gozava de liberdade, da qual nem tinha idéia. Ele não
acreditava que pudessem existir direitos capazes de prevalecer diante dos
deuses e da cidade. Veremos logo que o governo muitas vezes mudou de
forma; mas a natureza do Estado ficou quase a mesma, e sua onipotência não
se diminuiu. O governo chamou-se ora monarquia, ora aristocracia, ora
democracia, mas nenhuma dessas revoluções deu ao homem a verdadeira
liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear
magistrados, poder ser arconte, eis o que se chamava de liberdade; mas o
homem nunca deixou de estar sujeito ao Estado. Os antigos, sobretudo os
gregos, exageraram sempre a importância e os direitos da sociedade, sem
dúvida, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade se revestira
no inicio.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
LIVRO QUARTO
AS REVOLUÇÕES
Não se podia imaginar nada mais solidamente constituído que essa família das
antigas idades, com seus deuses, seu culto, seu sacerdote, seu magistrado.
Nada mais forte que essa cidade, que continha em si a religião, os deuses
protetores, o sacerdócio independente, que imperava sobre a alma e o corpo
do homem, e que, infinitamente mais poderosa que o Estado moderno, reunia
em si a dupla autoridade, que hoje vemos dividida entre a Igreja e o Estado.
Se houve sociedade constituída para durar, era certamente esta. Contudo,
como tudo o que é humano, também ela sofreu uma série de revoluções.
Não podemos afirmar, nem de modo geral, em que época essas revoluções
tiveram início. Com efeito, concorda-se em que não foram as mesmas para as
diferentes cidades da Grécia e da Itália. O que é certo é que desde o século
sétimo antes de nossa era essa organização social era discutida e atacada
quase em toda parte. A partir dessa época essa sociedade só se manteve com
muita dificuldade, e por uma mistura mais ou menos hábil de resistência e de
concessões. Assim, debateu-se por vários séculos, no meio de lutas contínuas,
até que desapareceu.
As causas que a fizeram perecer podem reduzir-se a duas. Uma, a mudança
que se operou com o tempo no campo das idéias, como conseqüência natural
do desenvolvimento do espírito humano, e que, fazendo desaparecer as
antigas crenças, fez desmoronar ao mesmo tempo o edifício social que elas
haviam construído, e que só elas poderiam manter. A outra é a existência de
uma classe de homens que se encontrava colocada fora dessa organização, e
que por isso sofria, e tinha interesse em destruí-la, e que lhes fez guerra sem
trégua.
Portanto, quando essas crenças, sobre as quais se baseava esse regime social,
se enfraqueceram, quando os interesses da maioria dos homens ficaram em
desacordo com o regime, este teve que desaparecer. Nenhuma cidade escapou
a essa lei de transformação, nem Esparta, nem Atenas, nem Roma, nem
Grécia. Assim como vimos que os habitantes da Grécia e de Roma tiveram na
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
origem as mesmas crenças, e que a mesma série de instituições se
desenvolvera entre eles, veremos agora que todas essas cidades sofreram as
mesmas revoluções.
Devemos estudar como e por que os homens se afastaram gradualmente dessa
antiga organização, não para decair, mas para progredir, para alcançar uma
forma social mais ampla e melhor. Porque, sob a aparência de desordem, e às
vezes de decadência, cada uma dessas mudanças aproximava-os de um fim
por eles desconhecido.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
CAPÍTULO I
PATRÍCIOS E CLIENTES
Até aqui ainda não falamos das classes inferiores, nem tínhamos o que falar,
porque se tratava de descrever o organismo primitivo da cidade, e as classes
inferiores não tinham importância nenhuma em sua estrutura, A cidade
constituíra-se como se essas classes não existissem. Podíamos, portanto,
esperar para estudá-las quando chegássemos à época das revoluções.
A cidade antiga, como toda sociedade humana, apresentava classes,
distinções, desigualdades. Conhecemos em Atenas a distinção inicial entre
eupátridas e tetas; em Esparta encontramos a classe dos iguais e a dos
inferiores; na Eubéia, a dos cavaleiros e a do povo. A história de Roma é fértil
de lutas entre patrícios e plebeus, lutas que encontramos também em todas as
cidades sabinas, latinas e etruscas. Podemos até notar que quanto mais nos
aprofundamos na história da Grécia e da Itália, mais se torna evidente a
distinção profunda entre classes fortemente separadas, prova evidente de que
a desigualdade não apareceu com o tempo, mas que existiu desde a origem,
sendo contemporânea do nascimento das cidades.
Convém que procuremos conhecer sobre quais princípios repousava esta
divisão de classes. Assim poderemos ver mais facilmente em virtude de que
idéias ou de que necessidades se lutava, o que reclamavam as classes
inferiores, e em nome de quais princípios as classes superiores defenderão seu
império.
Vimos acima que a cidade nascera da confederação das famílias e das tribos.
Ora, antes do dia em que a cidade se formou, a família já continha em si essa
distinção de classes. Com efeito, a família não se desmembrava; era
indivisível, como a religião primitiva do lar. O filho mais velho, sucedendo
sozinho ao pai, tomava em suas mãos o sacerdócio, a propriedade, a
autoridade, e seus irmãos comportavam-se a seu respeito como o haviam feito
em relação ao pai. De geração em geração, não havia senão um chefe de
família; ele presidia ao sacrifício dizia a oração, julgava, governava. A
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
princípio, somente a ele pertencia o título de pater, porque essa palavra, que
designava poder, e não paternidade, não se podia aplicar senão ao chefe de
família. Seus filhos, seus irmãos, seus criados, todos o chamavam assim.
Eis, portanto, na constituição íntima da família, um primeiro princípio de
desigualdade. O mais velho é privilegiado para o culto, para a sucessão, para o
poder. Depois de várias gerações, forma-se naturalmente, em cada uma das
grandes famílias, ramos mais novos, que estão, pela religião e pelo costume,
em estado de inferioridade em relação ao ramo mais velho, e que, vivendo sob
sua proteção, devem obediência à sua autoridade.
Depois, essa família tem criados, que não a deixam, e que a ela estão ligados
por hereditariedade, e sobre as quais o pater, ou patrono, exerce a tríplice
autoridade de mestre, de magistrado e de sacerdote. Seus nomes variam de
acordo com os lugares; os mais conhecidos são os de clientes e tetas.
Eis mais uma vez uma classe inferior. O cliente está abaixo, não somente do
chefe supremo da família, mas ainda dos ramos mais novos. Entre eles há esta
diferença: o membro de um ramo mais novo, remontando a série dos
antepassados, chega sempre a um pater, isto é, a um chefe de família, um
daqueles antepassados divinos, que a família invoca em suas orações. Como
descende de um pater, chamam-no, em latim, patricius. O filho de um cliente,
pelo contrário, por mais alto que suba em sua genealogia, jamais alcançará
senão um cliente ou um escravo. Não há nenhum pater entre seus
antepassados. Daí lhe resulta esse estado de inferioridade, de que nada o pode
livrar.
A distinção entre essas duas classes de homens é manifesta no que concerne
aos interesses materiais. A propriedade da família pertence inteiramente ao
chefe, que, aliás, partilha seu gozo com os ramos mais novos, e até com os
clientes. Mas enquanto o ramo mais novo tem pelo menos um direito eventual
sobre a propriedade, caso o ramo mais velho venha a se extinguir, o cliente
nunca se pode tornar proprietário. A terra que cultiva, ele a possui apenas
como depósito; se morrer, volta às mãos do patrono; o direito romano das
épocas posteriores conservou vestígios dessa antiga regra no que se chamou
de jus applicationis(1). O próprio dinheiro do cliente não lhe pertence; o
patrono é o verdadeiro proprietário, e pode apoderar-se do mesmo para suas
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
próprias necessidades. É em virtude dessa regra antiga que o direito romano
declara que o cliente deve dotar a filha do patrono, deve pagar-lhe as multas,
fornecer-lhe o resgate ou contribuir para os gastos das várias magistraturas.
A distinção é ainda mais manifesta na religião. Somente o descendente de um
pater pode celebrar as cerimônias do culto familiar. O cliente apenas assiste; o
sacrifício é feito também para ele, mas não por ele. Entre o cliente e a
divindade doméstica há sempre um intermediário. Ele não pode nem mesmo
substituir a família ausente. Se a família vier a se extinguir, os clientes não
continuam o culto; dispersam-se, porque a religião não é seu patrimônio, não
é de seu sangue, não lhes vem por seus próprios antepassados. É uma religião
de empréstimo, da qual têm o usufruto, e não a propriedade.
Lembremo-nos de que, de acordo com as idéias das gerações antigas, o direito
de ter um deus e de orar era hereditário. A tradição sagrada, os ritos, as
palavras sacramentais, as fórmulas poderosas, que obrigavam os deuses a agir,
tudo isso só se transmitia por meio do sangue. Era, portanto, muito natural que
em cada uma dessas famílias antigas, somente a parte livre e ingênua, que
descendia realmente do primeiro antepassado, ficasse na posse do caráter
sacerdotal. Os patrícios, ou eupátridas, tinham o privilégio de ser sacerdotes, e
de possuir uma religião que lhes pertencia como coisa própria(2).
Destarte, antes mesmo de se sair do estado de família, já existia uma distinção
de classes; a velha religião doméstica estabelecera os graus. Depois quando a
cidade se formou, a constituição interior da família nada sofreu.
Demonstramos até que a cidade, em sua origem, não era uma associação de
indivíduos, mas uma confederação de tribos, de cúrias e de famílias, e que,
nessa espécie de aliança, cada um desses corpos continuou como era antes. Os
chefes desses pequenos grupos uniam-se entre si, mas cada um deles
continuava senhor absoluto da pequena sociedade da qual já era chefe. É por
isso que o direito romano confiou por tanto tempo ao pater a autoridade
absoluta sobre os seus, e a onipotência e o direito de justiça em relação aos
clientes. A distinção das classes, nascida na família, continuou portanto com a
cidade.
A cidade, a princípio, não era senão a reunião dos chefes de família. Temos
testemunhos de tempos nos quais somente eles podiam ser cidadãos. Podemos
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
ainda ver um vestígio dessa regra em uma antiga lei de Atenas, que dizia que
para ser cidadão era necessário possuir um deus doméstico(3). Aristóteles
nota que antigamente, em algumas cidades, era regra que o filho não fosse
cidadão enquanto o pai fosse vivo, e que, morto o pai, somente o filho mais
velho gozasse de direitos políticos(4). A lei, portanto, não contava na
cidade os ramos mais novos, nem, com mais razão ainda, os clientes. Assim
Aristóteles acrescenta que os verdadeiros cidadãos eram então em número
muito reduzido.
A assembléia, que deliberava sobre os interesses gerais da cidade, compunhase
assim, nesses tempos antigos, apenas de chefes de família, de patres.
Podemos não acreditar em Cícero, quando afirma que Rômulo chama de pais
aos senadores, para assinalar a afeição paternal que tinham para com o povo.
Os membros desse antigo senado levavam, naturalmente, esse título porque
eram chefes das gentes. Ao mesmo tempo que esses homens reunidos
representavam a cidade, cada um deles continuava como senhor absoluto em
sua gens, que era como seu pequeno reino. Vemos também, desde os
primeiros tempos de Roma, outra assembléia mais numerosa, a das cúrias, que
difere muito da assembléia dos patres. São ainda eles que constituem o
elemento principal dessa assembléia; somente que aí cada pater comparece
rodeado da família; os parentes, e até mesmo os clientes, formam seu cortejo e
demonstram seu poder. Cada família, aliás, nesses comícios, tem direito a um
único voto(5). Podemos admitir que o chefe consulte o interesse dos parentes
e dos clientes, mas é claro que só ele pode votar. A lei, aliás, proíbe que o
cliente discorde da opinião do patrono(6). Se o cliente está ligado à cidade,
isso só acontece por intermédio dos chefes patrícios; eles participam do culto
público, comparecem ao tribunal, e às assembléias, mas sempre seguindo os
passos dos patronos.
Não devemos imaginar a cidade antiga como um aglomerado de homens,
vivendo promiscuamente dentro do recinto das mesmas muralhas. A cidade,
nos primeiros tempos, não é lugar para morar, mas santuário onde residem os
deuses da comunidade; é a fortaleza que os defende, e que sua presença
santifica; é o centro da associação, a residência do rei e dos sacerdotes, o lugar
onde se administra justiça, e não a morada dos homens. Durante muitas
gerações ainda os homens continuam a viver fora da cidade, em famílias
isoladas, que dividem entre si os campos. Cada uma dessas famílias ocupa seu
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
cantão, onde tem seu santuário doméstico, e onde forma, sob a autoridade do
pater, um grupo indivisível(7). Depois, em determinados dias, quando se trata
dos interesses da cidade, ou das obrigações do culto comum, os chefes dessas
famílias dirigem-se à cidade, e se reúnem ao redor do rei, seja para deliberar,
seja para assistir ao sacrifício. Se se trata de uma guerra, cada um dos chefes
comparece, seguido pela família e os servos (sua manus); dividem-se por
fratrias ou por cúrias, e formam o exército da cidade sob as ordens do rei.
CAPÍTULO II
OS PLEBEUS
Devemos assinalar agora outro elemento da população que estava abaixo dos
próprios clientes, e que, fraco na origem, adquiriu insensivelmente força
bastante para derrubar a antiga organização social. Essa classe, que se torna
mais numerosa em Roma que em nenhuma outra cidade, chamava-se ali de
plebe. É preciso que vejamos a origem e o caráter dessa classe, para
compreendermos o papel que desempenhou na história da cidade e da família
entre os antigos.
Os plebeus não eram clientes; os historiadores da antiguidade não confundem
essas duas classes entre si. Tito Lívio diz algures: A plebe não quis tomar
parte na eleição dos cônsules; os cônsules foram, portanto, eleitos pelos
patrícios e seus clientes(1). E em outro lugar: A plebe queixou-se,
porque os patrícios tinham muita influência nos comícios, graças aos
sufrágios dos clientes(2). Lemos em Dionísio de Halicarnasso: A plebe
saiu de Roma, e retirou-se para o monte Sagrado; os patrícios ficaram
sozinhos na cidade, juntamente com seus clientes. E, mais adiante: A
plebe descontente recusou-se a se alistar; os patrícios tomaram armas
juntamente com seus clientes, e fizeram a guerra(3). Essa plebe, bem
distinta dos clientes, não fazia parte, pelo menos nos primeiros tempos, do que
se chamava de povo romano. Em uma velha fórmula de oração, que ainda se
repetia na época das guerras púnicas, pedia-se aos deuses que fossem
propícios ao povo e à plebe(4). A plebe, portanto, não fazia parte do
povo, originalmente. O povo compreendia os patrícios e os clientes; a plebe
ficava de fora.
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Sobre a primeira formação dessa plebe, os antigos nos dão poucos
esclarecimentos. Temos o direito de supor que se compunha, em grande parte,
das antigas populações conquistadas e subjugadas. No entanto, ficamos
surpreendidos de ler em Tito Lívio, conhecedor das velhas tradições, que os
patrícios censuravam os plebeus, não por descenderem de populações
vencidas, mas por não terem nem religião, nem família. Ora, essa censura, que
já não era merecida nos tempos de Licínio Stolon, e que os contemporâneos
de Tito Lívio apenas entendiam, devia remontar à época muito antiga, e nos
leva até os primeiros tempos da cidade.
Notamos, com efeito, na própria natureza das antigas idéias religiosas, várias
causas que provocaram a formação de uma classe inferior. A religião
doméstica não se propagava; nascida em uma família, aí continuava; era
necessário que cada família criasse sua crença, seus deuses, seu culto. Ora,
pode ter acontecido que famílias inteiras não tivessem o poder espiritual de
criar uma divindade, de instituir um culto, de inventar um hino, ou o ritmo de
uma prece. Somente por isso essas famílias ficaram em estado de
inferioridade em relação às que tinham religião, e não puderam formar
sociedade com elas. Pode também ter acontecido que certas famílias
perdessem o culto doméstico, ou por negligência, ou por esquecerem os ritos,
ou como conseqüência de um daqueles crimes ou máculas que interdiziam ao
homem a aproximação do fogo sagrado e a continuação do culto. Aconteceu,
enfim, que clientes que sempre seguiram o culto dos patronos, e não
conheciam nenhum outro, foram expulsos das famílias às quais estavam
ligados, ou as abandonaram espontaneamente. Isso equivalia a renunciar à
religião. Acrescentemos ainda que o filho nascido de casamento civil era
considerado bastardo, como o nascido de adultério, e a religião doméstica não
existia para eles. Todos esses homens, excluídos das famílias e colocados à
margem do culto, caíam na classe dos homens sem lar A existência da plebe
era conseqüência necessária da natureza exclusiva da organização antiga.
Encontramos essa classe ao lado de quase todas as cidades antigas, mas
separadas por uma linha de demarcação. Uma cidade grega é dupla: há a
cidade propriamente dita, polis, que se levanta ordinariamente no alto de uma
colina; foi fundada com ritos religiosos, e encerra o santuário das divindades
políadas. Ao pé da colina há um aglomerado de casas, construídas sem
cerimônias religiosas, sem recinto sagrado: é o domicílio da plebe, que não
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pode morar na cidade santa.
Em Roma a diferença original entre essas duas populações é impressionante.
A cidade dos patrícios e de seus clientes é a que Rômulo fundou, de acordo
com o ritual, sobre o planalto do Palatino. O domicílio da plebe é o Asilo,
espécie de recinto fechado, situado na encosta do monte Capitolino, onde o
primeiro rei admitira as pessoas sem lar, que não podia permitir entrassem na
cidade. Mais tarde, quando novos plebeus vieram a Roma, como eram
considerados estrangeiros para a religião da cidade, foram alojados no monte
Aventino, isto é, fora do promoerium e da cidade religiosa(5).
Uma palavra caracteriza esses plebeus: não têm culto; pelo menos os patrícios
os censuram por isso. Não têm antepassados o que quer dizer, no
pensamento de seus adversários, que eles não têm antepassados reconhecidos
e legalmente admitidos, Não têm pais isto é, em vão procurariam na
série dos ascendentes um chefe de família religiosa, um pater. Não têm
família: gentem non habent isto é, só têm uma família natural; quanto à
que forma e constitui a religião, a verdadeira gens, eles não a têm(6).
O casamento sagrado para eles não existe, pois, desconhecem os ritos. Não
tendo lar, a união por este estabelecida é-lhes proibida. Por isso o patrício, que
não conhece outra união regular além da que une o esposo à esposa na
presença da divindade doméstica, pode dizer, falando dos plebeus: Connubia
promiscua habent more ferarum.
Para os plebeus não há família, nem autoridade paterna. Podem ter sobre os
filhos o poder concedido pela força ou sentimento natural; mas essa
autoridade santa, de que a religião reveste o pai, é por eles desconhecida.
Para eles não existe direito de propriedade, porque toda propriedade deve ser
estabelecida e consagrada por um lar, por um túmulo, pelos deuses termos,
isto é, por todos os elementos do culto doméstico. Se o plebeu possui terras,
essas não têm caráter sagrado; são profanas, e não conhecem limites. Mas,
poderia o plebeu, nos primeiros tempos, possuir terras? Sabemos que em
Roma só pode exercer direitos de propriedade quem é cidadão; ora, o plebeu,
nos primeiros tempos de Roma, não é cidadão. O jurisconsulto diz que não se
pode ser proprietário senão pelo direito dos quirites. A princípio, em Roma o
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ager romanus era dividido entre as tribos, as cúrias e as gentes(7); ora, o
plebeu, que não pertencia a nenhum desses grupos, certamente não entrava na
partilha. Esses plebeus sem religião, não têm aquilo que autoriza um homem a
tomar posse de um pedaço de terra, fazendo-a sua. Sabemos que habitaram
por muito tempo o monte Aventino, onde construíram casas; mas somente
depois de três séculos e de muitas lutas é que conseguiram, por fim, a
propriedade desse terreno(8).
Para os plebeus não há leis, não há justiça, porque a lei é conseqüência da
religião, e o processo é um conjunto de ritos. O cliente tem o benefício do
direito de cidadania por intermédio do patrono; para o plebeu esse direito não
existe. Um historiador antigo afirma formalmente que o sexto rei de Roma foi
o primeiro a promulgar leis para a plebe, enquanto os patrícios já tinham as
suas há muito tempo(9). Parece mesmo que essas leis foram depois abrogadas,
ou que, não se baseando na religião, os patrícios se recusaram a
considerá-las, porque lemos em um historiador que, quando se criaram os
tribunos, foi necessário promulgar uma lei especial, a fim de proteger-lhes a
vida e a liberdade, e que essa lei era concebida nos seguintes termos: Que
todos evitem matar ou ferir os tribunos, como o fariam a qualquer homem da
plebe(10). Parece, portanto, que existia o direito de ferir ou matar um
plebeu, ou, pelo menos, esse crime, cometido contra um homem considerado
fora da lei, não era punido legalmente.
Para os plebeus não há direitos políticos. Para começar, não são cidadãos, e
nenhum dentre eles pode ser magistrado. Em Roma, durante dois séculos, não
há outra assembléia que a das cúrias; ora, as cúrias não compreendiam, nos
três primeiros séculos de Roma, senão patrícios e clientes. A plebe não entrou
na composição do exército enquanto este era dividido por cúrias.
Mas o que separa mais manifestamente o plebeu do patrício, é que o plebeu
não adota a religião da cidade. É impossível investi-lo do sacerdócio.
Podemos até acreditar que a prece, nos primeiros séculos, lhe é proibida, e que
os ritos não lhe podem ser revelados. É como na Índia, onde o sudra deve
ignorar sempre as fórmulas sagradas. O plebeu é estrangeiro, e,
conseqüentemente, somente sua presença já torna impuro um sacrifício. Ele é
rejeitado pelos deuses. Entre o plebeu e o patrício há toda a distância que a
religião pode colocar entre dois homens. A plebe é uma população desprezada
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e abjeta, fora da religião, fora da lei, fora da sociedade, fora da família. O
patrício não pode comparar essa existência senão à do animal, more ferarum.
O contato do plebeu é impuro. Os decênviros, em suas primeiras tábuas,
haviam-se esquecido de proibir o casamento entre as duas classes, porque os
primeiros decênviros eram todos patrícios, e ninguém pensou que semelhante
casamento fosse possível.
Vemos por aí como as classes, na idade primitiva das cidades, sobrepunhamse
umas às outras. À frente estava a aristocracia dos chefes de família, aqueles
que a língua oficial de Roma chamava de patres, que os clientes chamavam de
reges, e que a Odisséia chama de basiléis ou ánactes. Abaixo estavam os
ramos mais novos das famílias; mais abaixo ainda, os clientes; e abaixo destes
ainda, e fora de todas as classes, estava a plebe.
Essa distinção de classes proveio da religião, porque no tempo em que os
antepassados dos gregos, dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na
Ásia central, a religião havia dito: O mais velho fará a oração. Daqui se
originou a superioridade do primogênito em todas as coisas; o ramo mais
velho, em todas as famílias, era o ramo sacerdotal e senhorial. A religião no
entanto, tinha alguma consideração pelos ramos mais novos, como reserva
capaz de substituir um dia o ramo mais velho extinto, e salvar o culto. Tinha
ainda alguma consideração pelo cliente, até pelo escravo, porque estes
assistiam aos atos religiosos. Mas o plebeu, que não tomava parte alguma no
culto, não era tido em consideração alguma. Assim estavam fixadas as classes.
Mas nenhuma das formas sociais que o homem imagina e estabelece é
imutável. Esta levava em si um germe de doença e de morte; era essa grande
desigualdade. Muitos homens tinham interesse em destruir uma organização
social que para eles não representava benefício algum.
CAPÍTULO III
PRIMEIRA REVOLUÇÃO
1.° A autoridade política é tirada aos reis
Dissemos que, na origem, o rei havia sido o chefe religioso da cidade, o grãohttp://
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sacerdote do lar público, e que a essa autoridade sacerdotal acrescentava-se a
autoridade política, porque parecia natural que o homem que representava a
religião da cidade fosse ao mesmo tempo presidente da assembléia, juiz e
chefe de todo o exército. Em virtude desse princípio, aconteceu que tudo o
que significava poder no Estado estava reunido nas mãos do rei.
Mas os chefes de família, os patres, e, abaixo deles, os chefes das fratrias e
das tribos, formavam ao lado desse rei uma aristocracia muito forte. O rei não
era o único rei; cada pater era rei da própria gens; em Roma era até costume
antigo chamar esses poderosos patronos pelo nome de rei; em Atenas, cada
fratria e cada tribo tinha seu chefe, e, ao lado do rei da cidade, havia os reis
das tribos, phylobasiléis. Era uma hierarquia de chefes, todos possuindo, em
um domínio mais ou menos extenso, as mesmas atribuições e a mesma
inviolabilidade. O rei da cidade não exercia o poder sobre toda a população; o
interior das famílias, e toda a clientela, escapavam à sua ação. Como o rei
feudal, que não tinha por súditos senão alguns poderosos vassalos, esse rei da
cidade antiga não mandava senão nos chefes das tribos e das gentes, dos quais
cada um individualmente podia ser tão poderoso quanto ele, e que, reunidos, o
eram muito mais. Podemos muito bem pensar que para ele não era muito fácil
fazer-se obedecer. Os homens deviam ter por ele grande respeito, porque era o
chefe do culto, o guardião do lar; mas sem dúvida eram pouco submissos,
porque ele tinha pouca força. Governantes e governados logo se aperceberam
de que não estavam de acordo sobre a medida de obediência que lhes era
devida. Os reis queriam ser poderosos, e os patres não o queriam assim.
Travou-se então uma luta em todas as cidades, entre a aristocracia e os reis.
Por toda parte o resultado da luta foi idêntico: a realeza foi vencida. Mas não
nos devemos esquecer de que essa realeza primitiva era sagrada. O rei era o
homem que dizia a oração, que fazia o sacrifício, que tinha, enfim, por direito
hereditário o poder de atrair para cidade a proteção dos deuses. Não se podia
portanto pensar em suprimi-lo: a religião e a salvação da cidade tinham
necessidade de um rei. Por isso vemos em todas as cidades, cuja história nos é
conhecida, que a princípio não se tocou na autoridade sacerdotal do rei, e que
se contentaram com tirar-lhe a autoridade política. Esta não era senão uma
espécie de apêndice que os reis haviam acrescentado a seu sacerdócio, e não
era santa e inviolável como a dignidade real. Podiam tirá-la do rei, sem que a
religião fosse posta em perigo.
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A realeza, portanto, foi conservada; mas, despojada de seu poder, tornou-se
um simples sacerdócio. Nas épocas mais antigas diz Aristóteles os reis
tinham poder absoluto na paz e na guerra; mas depois uns renunciaram por si
mesmos a esse poder, outros dele foram privados à força, e não se confiou
mais aos reis senão o cuidado dos sacrifícios. Plutarco diz o mesmo:
Como os reis se mostravam orgulhosos e severos no comando, a maior parte
dos gregos privou-os do poder, deixando-lhes apenas o cuidado da religião
(1). Heródoto fala da cidade de Cirene, e diz: Deixaram a Batos,
descendente dos reis, o cuidado do culto e a posse das terras sagradas, mas
privaram-no de todo o poder de que seus pais haviam gozado.
Essa realeza, assim reduzida às funções sacerdotais, continuou, a maior parte
do tempo, a ser hereditária na família sagrada que outrora assentara o lar e
dera início ao culto nacional. Nos tempos do império romano, isto é, sete ou
oito séculos depois dessa revolução, havia ainda em Éfeso, em Marselha, em
Téspis, famílias que conservavam o título e as insígnias da antiga realeza, e
tinham ainda a presidência das cerimônias religiosas(2). Nas outras cidades as
famílias sagradas se extinguiram, e a realeza tornara-se eletiva e,
ordinariamente, anual.
2.° História dessa revolução em Esparta
Esparta sempre teve reis, e, contudo, a revolução de que falamos realizou-se
ali tanto quanto nas outras cidades.
Parece que os antigos reis dórios governaram como senhores absolutos. Mas a
partir da terceira geração começaram a surgir discórdias entre os reis e a
aristocracia. Durante dois séculos houve uma série de lutas, que fizeram de
Esparta uma das cidades mais agitadas da Grécia(3); sabe-se que um desses
reis, o pai de Licurgo, foi morto em uma guerra civil(4).
Nada é mais obscuro que a história de Licurgo; seu antigo biógrafo começa
por estas palavras: Nada se pode dizer a seu respeito que não esteja sujeito a
controvérsias. Pelo menos é certo que Licurgo surgiu em meio a
discórdias, em um tempo em que o governo flutuava em perpétua agitação
(5). O que resulta mais claramente, de todas as informações que nos
chegaram dele, é que sua reforma deu à realeza um golpe de que ela jamais se
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restabeleceu. No reinado de Carilau diz Aristóteles a monarquia foi
substituída pela aristocracia(6). Ora, esse Carilau era rei quando Licurgo
fez a reforma. Sabemos, aliás, por Plutarco, que Licurgo não foi encarregado
das funções de legislador senão durante uma revolta, na qual o rei Carilau se
viu obrigado a procurar asilo em um templo. Licurgo, por um momento, podia
ter suprimido a realeza, mas não o fez, julgando a realeza necessária, e a
família real inviolável. Mas fez de tal modo que os reis estivessem dali por
diante submissos ao senado no que dizia respeito ao governo, não sendo mais
que presidente dessa assembléia, e executores de suas decisões. Um século
depois, a realeza foi ainda mais enfraquecida, e esse poder executivo lhe foi
retirado, sendo confiado a magistrados anuais, chamados éforos.
É fácil julgar, pelas atribuições que se deram aos éforos, o pouco de poder que
se deixou aos reis. Os éforos administravam a justiça em matéria civil,
enquanto que o senado julgava os processos criminais(7). Os éforos, segundo
o voto do senado, declaravam guerra, ou determinavam as cláusulas dos
tratados de paz. Em tempos de guerra, dois éforos acompanhavam o rei, e o
vigiavam; eles é que fixavam o plano de batalha e comandavam a todas as
operações(8). Que restava então aos reis, se lhes tiravam a justiça, as relações
exteriores e as operações militares? Restava-lhes o sacerdócio. Heródoto
descreve suas prerrogativas: Se a cidade oferece um sacrifício, eles têm o
primeiro lugar no banquete sagrado, onde são servidos por primeiro,
recebendo porção dupla. São também os primeiros a fazer a libação, e a pele
das vítimas lhes pertence. Cada um deles, duas vezes por mês, recebe uma
vítima, que é imolada a Apolo(9). Os reis diz Xenofonte oferecem
sacrifícios públicos, e recebem a melhor parte das vítimas. Se não julgam
em matéria civil nem em matéria criminal, são-lhes reservados pelo menos os
julgamentos de alguns casos que têm relação com a religião. Em caso de
guerra, um dos dois reis marcha sempre à frente das tropas, oferecendo
sacrifícios todos os dias, e consultando os presságios. Na presença do inimigo,
ele imola as vítimas, e, quando os sinais são favoráveis, dá o sinal de batalha.
No combate, é rodeado pelos adivinhos, que lhe indicam a vontade dos
deuses, e pelos tocadores de flauta, que fazem ouvir melodias sagradas. Os
espartanos dizem que é o rei que comanda, porque ele tem nas mãos a religião
e os auspícios; mas são os éforos e os polemarcos que dirigem todos os
movimentos do exército(10).
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É, portanto, verdade dizer-se que a realeza de Esparta é sobretudo um
sacerdócio hereditário. A mesma revolução que suprimiu o poder político do
rei em todas as cidades, suprimiu-o também em Esparta. O poder pertence
realmente ao senado, que dirige, e aos éforos, que executam. Os reis, em tudo
o que não diz respeito à religião, obedecem aos éforos. Por isso Heródoto
pode afirmar que Esparta não conhece o regime monárquico, e Aristóteles que
o governo de Esparta é uma aristocracia(11).
3.° A mesma revolução em Atenas
Vimos acima qual era o estado primitivo da população da Ática. Certo
número de famílias, independentes, e sem nenhum vínculo que as ligasse,
dividiam o país entre si; cada uma delas formava uma pequena sociedade,
governada por um chefe hereditário. Depois essas famílias se agruparam, e
dessa associação nasceu a cidade ateniense. Atribui-se a Teseu o ter concluído
a grande obra da unidade da Ática. Mas as tradições acrescentam, acreditamos
sem dificuldade que Teseu teve que derrubar muitas resistências. A classe de
homens que lhe fez oposição não foi a dos clientes, a dos pobres, que estavam
repartidos em povoados e em ghéne. Tais homens apreciaram sobremaneira
essa mudança, que lhes dava um chefe a seus chefes, e lhes assegurava
recurso e proteção. Os que sofreram com a mudança foram os chefes de
família, os chefes dos povoados e das tribos, os basiléis, os phylobasiléis, os
eupátridas, que tinham por direito hereditário a autoridade suprema em seus
ghénos ou em sua tribo. Eles defenderam como melhor puderam sua
independência; quando a perderam, lamentaram-na.
Mas, pelo menos, conservaram tudo o que puderam de sua antiga autoridade.
Cada um deles ficou como chefe todo-poderoso de sua tribo ou de seu ghénos.
Teseu não pôde destruir uma autoridade que a religião havia estabelecido, e
que tornava inviolável. Há mais ainda. Se examinarmos as tradições relativas
a essa época, perceberemos que esses poderosos eupátridas não consentiram
em se associar para formar uma cidade, senão estipulando que o governo seria
realmente federativo, e que cada um deles nele tomaria parte. Houve, é
verdade, um rei supremo; mas desde que os interesses comuns estavam em
jogo, a assembléia dos chefes devia ser convocada, e nada de importante
podia ser feito sem o consentimento dessa espécie de senado.
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Essas tradições, na linguagem das gerações seguintes, exprimiam-se mais ou
menos assim: Teseu mudou o governo de Atenas, e de monárquico tornou-o
republicano. Assim dizem Aristóteles, Isócrates, Demóstenes, Plutarco. Sob
essa forma, um pouco falsa, há um fundo de verdade. Teseu, como diz a
tradição, fez voltar a autoridade soberana para as mãos do povo.
Somente que a palavra povo, démos, que a tradição nos conservou, não tinha
nos tempos de Teseu uma aplicação tão extensa como a que teve nos tempos
de Demóstenes. Esse povo, ou corpo político, só podia ser então a
aristocracia, isto é, o conjunto de chefes dos ghéne(12).
Teseu, ao instituir essa assembléia, não era voluntariamente um inovador. A
formação da grande unidade ateniense transformava, contra sua vontade, as
condições de governo. Depois que os eupátridas, cuja autoridade continuava
intacta nas famílias, reuniram-se em uma mesma cidade, eles constituíam um
corpo poderoso, que tinha seus direitos, e podia ter suas exigências. O rei do
pequeno rochedo de Cécrops tornou-se rei de toda a Ática; mas, em vez de
continuar como rei absoluto, como em seu pequeno povoado, não foi mais que
o chefe de um Estado federativo, isto é, o primeiro entre seus iguais.
Um conflito não podia tardar a surgir entre essa aristocracia e a realeza. Os
eupátridas lamentavam o poder verdadeiramente real que cada um deles até
agora havia exercido em seu burgo. Parece que esses guerreirossacerdotes
puseram a religião à frente, e pretenderam que a autoridade dos
cultos locais havia sido diminuída. Se é verdade, como diz Tucídides, que
Teseu tentou destruir os pritaneus dos burgos, não nos devemos admirar que o
sentimento religioso se tenha levantado contra ele. Não podemos dizer
quantas lutas teve de travar, quantas revoltas teve de reprimir, pela astúcia ou
pela força; o certo é que, afinal, ele foi vencido, expulso de Atenas, e morreu
no exílio(13).
Os eupátridas, portanto, venceram-no; não suprimiram a realeza, mas
escolheram um rei a seu gosto, Menesteu. Depois dele a família de Teseu
reconquistou o poder, e o conservou por três gerações, sendo depois
substituída por outra família, a dos Melântidas. Toda essa época deve ter sido
muito perturbada; mas as lembranças das guerras civis não nos foi conservada
com clareza suficiente.
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A morte de Codro coincide com a vitória definitiva dos eupátridas. Estes não
haviam ainda suprimido a realeza, porque a religião o proibia, mas tiraram-lhe
o poder político. O viajante Pausânias, que viveu muito depois desses
acontecimentos, mas que consultava com cuidado as tradições, afirma que a
realeza perdeu então grande parte de suas atribuições, e se tornou
independente; o que significa, sem dúvida, que a partir desse tempo ela se
tornou subordinada ao senado dos eupátridas. Os historiadores modernos
denominam esse período da história de Atenas de arcontado, e chegam a
afirmar que a realeza foi então suprimida. Isso não é inteiramente verdadeiro.
Os descendentes de Codro se sucederam de pai a filho durante treze gerações.
Eles tinham o título de arconte, mas há documentos antigos que lhes dão
também o título de reis(14), e já dissemos acima que esses dois títulos eram
sinônimos perfeitos. Atenas, durante esse longo período, tinha então reis
hereditários, mas ela lhes havia tirado o poder, deixando-lhes apenas as
funções religiosas. Foi o que se fez em Esparta.
Ao término de três séculos, os eupátridas encontraram essa realeza religiosa
mais forte do que desejavam, e eles a enfraqueceram. Decidiu-se que o
mesmo homem não mais seria revestido daquela alta dignidade sacerdotal
senão pelo espaço de dez anos. Quanto ao mais, continuaram a acreditar que a
antiga família real era a única apta a desempenhar as funções de arconte(15).
Cerca de quarenta anos se passaram assim. Mas um dia a família real
manchou-se com um crime. Alegou-se que não poderia mais desempenhar as
funções sacerdotais(16), e decidiu-se que, para o futuro, os arcontes seriam
escolhidos dentre outras famílias, e que essa dignidade seria acessível a todos
os eupátridas. Quarenta anos depois, para enfraquecer ainda mais a realeza, ou
para dividi-la entre muitas mãos, tornaram-na anual, e ao mesmo tempo
separaram-na em duas magistraturas distintas. Até então o arconte era ao
mesmo tempo rei; de agora em diante os dois títulos ficaram separados. Um
magistrado, chamado arconte, e outro magistrado, chamado rei, dividiram
entre si as atribuições da antiga realeza religiosa. O encargo de velar pela
continuação das famílias, de autorizar ou negar a adoção, de receber
testamentos, de julgar em matéria de propriedade imobiliária, coisas todas em
que a religião estava interessada, foram devolvidos ao arconte. O encargo de
celebrar os sacrifícios solenes e de julgar em matéria de impiedade, foram
reservados ao rei. Assim o título de rei, título sagrado, que era necessário à
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religião, perpetuou-se na cidade juntamente com os sacrifícios e o culto
nacional. O rei e o arconte, unidos ao polemarca e aos seis tesmótetas, que
existiam talvez há muito tempo, completaram o número de nove magistrados
anuais, que depois passaram a ser chamados de os nove arcontes, do nome do
primeiro dentre eles.
A revolução que privou a realeza de seu poder político aconteceu de formas
diversas em todas as cidades. Em Argos, desde a segunda geração dos reis
dórios, a realeza enfraqueceu-se, ao ponto de deixar aos descendentes de
Temenos apenas o nome de rei, sem poder algum; aliás, essa realeza
continuou hereditária por muitos séculos(17). Em Cirene, os descendentes de
Batos reuniram a princípio em suas mãos o sacerdócio e o poder; mas a partir
da quarta geração apenas lhes deixaram o sacerdócio(18). Em Corinto, a
realeza transmitiu-se a princípio hereditariamente na família dos Baquíadas; a
revolução desejava torná-la anual, mas sem fazê-la sair dessa família, cujos
membros a possuíram sucessivamente durante um século(19).
4.° A mesma revolução em Roma
A realeza foi, a princípio, em Roma o que havia sido na Grécia. O rei era o
grão-sacerdote da cidade; e, ao mesmo tempo, o juiz supremo; em tempos de
guerra, comandava o exército dos cidadãos. A seu lado estavam os chefes de
família, patres, que formavam o senado. Não havia senão um rei, porque a
religião prescrevia a unidade no sacerdócio e no governo. Mas entendia-se
que esse rei devia, em todos os casos importantes, consultar os chefes das
famílias confederadas(20). Os historiadores mencionam, desde essa época,
uma assembléia popular. Mas precisamos investigar qual podia ser o sentido
da palavra povo (populus), isto é, qual era o corpo político no tempo dos
primeiros reis. Todas as testemunhas concordam em que esse povo se reunia
sempre por cúrias; ora, as cúrias eram a reunião das gentes, e cada gens
comparecia em conjunto, e tinha direito a um só voto. Os clientes lá estavam,
reunidos ao redor do pater, consultados, talvez, talvez dando sua opinião,
contribuindo para formar o voto único que a gens apresentava, mas sem poder
divergir da opinião do pater. Essa assembléia das cúrias não podia ser,
portanto, outra coisa que a cidade patrícia reunida na presença do rei.
Por aí vemos que Roma encontrava-se nas mesmas condições que as outras
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cidades. O rei estava na presença de um corpo aristocrático muito fortemente
constituído, e que hauria forças na religião. Os mesmos conflitos que vimos
na Grécia tornam a aparecer em Roma.
A história dos sete reis é a história dessa longa questão. O primeiro quer
aumentar seu poder, e livrar-se da autoridade do senado. Faz-se amar pelas
classes inferiores, mas os patres lhe são hostis(21). Morre assassinado em
uma reunião do senado.
A aristocracia pensa imediatamente em abolir a realeza, e os patres exercem
sucessivamente as funções de rei. É verdade que as classes inferiores se
agitam; não querem ser governadas pelos chefes das gentes, e exigem o
restabelecimento da realeza(22). Mas os patrícios se consolam, decidindo que
ela será de agora em diante eletiva, e estabelecem, com maravilhosa
habilidade, as formas da eleição: o candidato será escolhido pelo senado; a
assembléia patrícia das cúrias confirmará essa escolha, e, enfim, os áugures
patrícios dirão se o novo eleito é do agrado dos deuses.
Numa foi eleito de acordo com essas regras. Mostrou-se muito religioso, mais
sacerdote que guerreiro, observador escrupuloso de todos os ritos do culto, e,
por conseqüência, muito ligado à constituição religiosa das famílias e da
cidade. Foi um rei segundo o coração dos patrícios, e morreu calmamente, em
seu leito.
Parece que sob o reinado de Numa a realeza reduziu-se às funções
sacerdotais, como acontecera nas cidades gregas. Pelo menos é certo que a
autoridade religiosa do rei era completamente distinta de sua autoridade
política, e que uma não subentendia necessariamente a outra. A prova está em
que havia dupla eleição. Em virtude da primeira, o rei não passava de chefe
religioso; se a essa dignidade quisesse juntar o poder político imperium
era preciso que a cidade lho conferisse por decreto especial. Esse ponto tornase
claro pelo que Cícero nos diz da antiga constituição(23). Desse modo,
sacerdócio e poder eram coisas bem distintas; podiam ser colocados nas
mesmas mãos, mas para isso eram necessários comícios e eleições duplas.
O terceiro rei reuniu-os certamente em sua pessoa. Teve em suas mãos o
sacerdócio e o comando, e foi até mais guerreiro que sacerdote; desprezou, e
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quis mesmo diminuir a religião, que constituía a força da aristocracia. Vêemno
acolher em Roma uma multidão de estrangeiros, a despeito do princípio
religioso que os excluía; ousa mesmo morar no meio deles, no monte Célio.
Vêem-no ainda distribuir a plebeus terras, cujos rendimentos, até então,
destinavam-se aos gastos feitos com os sacrifícios. Os patrícios acusam-no de
haver negligenciado os ritos, e até, coisa mais grave, de modificá-los e alterálos.
Por isso, morre como Rômulo; os deuses dos patrícios ferem-no com o
raio, juntamente com seus filhos.
Esse golpe restitui ao senado a autoridade, que nomeia um rei de sua escolha.
Âncus observa escrupulosamente a religião, guerreia o menos possível, e
passa a vida nos templos. Querido pelos patrícios, morre em seu leito.
O quinto rei é Tarquínio, que obteve a realeza contra a vontade do senado,
com o apoio das classes inferiores. É pouco religioso, muito incrédulo; para
ele é necessário nada menos que um milagre para convencê-lo da ciência dos
áugures. É inimigo das antigas famílias, cria novos patrícios, altera quanto
pode a velha constituição religiosa da cidade. Tarquínio é assassinado.
O sexto rei apoderou-se da realeza por surpresa; parece até que o senado
nunca o reconheceu como rei legítimo. Lisonjeia as classes inferiores,
distribui-lhes terras, desconhecendo o antigo princípio do direito de
propriedade; dá-lhes mesmo lugar no exército e na cidade. Sérvio é degolado
sobre os degraus do senado.
A querela entre os reis e a aristocracia tomava caráter de luta social. Os reis
ligaram-se ao povo, apoiando-se nos clientes e na plebe. Ao patriciado, tão
poderosamente organizado, opunham as classes inferiores, já numerosas em
Roma. A aristocracia viu-se então às voltas com um perigo duplicado, dos
quais o pior não era certamente ter que dobrar-se diante da realeza. Via
levantar-se por detrás do rei as classes que desprezava, a plebe, classe sem
religião e sem lar. Via-se talvez atacada por seus clientes, no seio da própria
família, cuja constituição, direito e religião eram discutidos e postos em
perigo. Os reis, portanto, eram para ela inimigos odiosos, que, para aumentar
seu poder, queriam perturbar a organização sagrada da família e da cidade.
A Sérvio sucede o segundo Tarquínio, que engana as esperanças dos
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senadores que o elegeram; ele deseja ser senhor absoluto: de rege dominus
extitit. Faz todo o mal que pode ao patriciado, derruba as cabeças mais
altivas, reina sem consultar os patres, faz a guerra e a paz sem pedir-lhes a
aprovação. O patriciado parece decididamente vencido.
Enfim, apresenta-se uma ocasião. Tarquínio está longe de Roma; não somente
ele, mas o exército que o sustém. A cidade está momentaneamente nas mãos
do patriciado. O prefeito da cidade, isto é, o que tem o poder civil na ausência
do rei, é um patrício, Lucrécio. O chefe da cavalaria, isto é, o que tem a
autoridade militar depois do rei, é um patrício, Júnio(24). Esses dois homens
preparam a insurreição. Têm por ajudantes outros patrícios, Valério e
Tarquínio Colatino. O local da reunião não é Roma, mas a pequena cidade de
Colácia, propriedade de um dos conjurados. Lá eles mostram ao povo o
cadáver de uma mulher, a qual, dizem, se suicidara para punir-se pelo crime
de um filho do rei. O povo de Colácia amotina-se; dirigem-se a Roma, e
repetem a mesma cena. Os espíritos se perturbam, o poder legal de Roma
pertence a Júnio e a Lucrécio.
Os conjurados evitam reunir o povo; dirigem-se ao senado. O senado declara
que Tarquínio está destronado e a realeza abolida. Mas o decreto do senado
deve ser o confirmado pela cidade. Lucrécio, como prefeito da cidade, tem o
direito de convocar a assembléia. Reúnem-se as cúrias; elas pensam como os
conjurados, e decretam a deposição de Tarquínio e a criação de dois
consulados.
Decidido esse ponto principal, deixam o cuidado de nomear os cônsules à
assembléia das centúrias. Mas essa assembléia, onde alguns plebeus votam,
não vai protestar contra o que os patrícios haviam decidido no senado e nas
cúrias? Não, porque toda assembléia romana é presidida por um magistrado
que designa o objeto do voto, e ninguém pode deliberar sobre outro assunto.
Há mais ainda: ninguém, além do presidente, tem o direito de falar. Se se trata
de uma lei, as centúrias só podem votar por sim ou por não. Se se trata de uma
eleição, o presidente apresenta os candidatos, e ninguém pode votar senão nos
candidatos apresentados. No caso atual, o presidente designado pelo senado é
Lucrécio, um dos conjurados. Ele indica como único assunto de voto a eleição
dos dois cônsules. Apresenta dois nomes aos sufrágios das centúrias, os de
Júnio e de Tarquínio Colatino. Esses dois homens são necessariamente eleitos.
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O senado depois ratifica a eleição, e, por fim, os áugures a confirmam em
nome dos deuses.
Essa revolução não agradou a todos os romanos. Muitos plebeus juntaram-se
ao rei, e ligaram-se ao seu destino(25). Em compensação, um rico patrício da
Sabina, chefe poderoso de gens numerosa, o orgulhoso Átio Clauso, achou o
novo governo tão conforme a suas vistas, que veio estabelecer-se em Roma.
Além do mais, somente foi suprimida a realeza política; a realeza religiosa era
santa, e devia continuar. Apressaram-se então em nomear um rei, mas
somente para os sacrifícios: rex sacrorum. Tomaram todas as precauções
imagináveis, a fim de que esse rei-sacerdote nunca abusasse do grande
prestígio que suas funções lhe davam para se apoderar da autoridade.
CAPÍTULO IV
A ARISTOCRACIA GOVERNA AS CIDADES
A mesma revolução, sob formas ligeiramente variadas, declarou-se em
Atenas, em Esparta, em Roma, enfim, em todas as cidades cuja história nos é
conhecida. Em toda parte foi obra da aristocracia, e teve por efeito suprimir a
realeza política, deixando subsistir a realeza religiosa. A partir dessa época, e
durante um período cuja duração foi muito desigual para as diversas cidades,
o governo da cidade pertence à aristocracia.
Essa aristocracia baseava-se no nascimento e na constituição religiosa das
famílias. A fonte de onde brotava eram as mesmas regras que observamos
acima no culto doméstico e no direito privado, isto é, a lei da hereditariedade
do lar, o privilégio do primogênito, o direito de recitar a oração, ligado ao
nascimento. A religião hereditária era o título dessa aristocracia para o
domínio absoluto. Ela outorgava-lhe direitos que pareciam sagrados. De
acordo com velhas crenças, somente podia ser proprietário de terras quem
possuía um culto doméstico; somente era membro da cidade quem tinha em si
o caráter religioso que constituía o cidadão; somente podia ser sacerdote quem
descendesse de família religiosa; só podia ser magistrado quem tinha o direito
de oferecer sacrifícios. O homem que não possuía culto hereditário devia ser
cliente de outro, ou, se não o quisesse, ficar fora da sociedade. Durante longas
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gerações ninguém sequer imaginou que essa desigualdade pudesse ser injusta,
e não se pensou em constituir a sociedade de acordo com outras regras.
Em Atenas, desde a morte de Codro até Sólon, toda autoridade ficou nas mãos
dos eupátridas. Somente eles podiam ser sacerdotes ou arcontes. Somente eles
administravam justiça e conheciam as leis, que não estavam ainda escritas, e
cujas fórmulas sagradas eram transmitidas por eles de pai a filho.
Essas famílias conservavam, tanto quanto possível, as antigas formas do
regime patriarcal. Não viviam juntas na cidade. Continuavam a viver nos
diversos cantões da Ática, cada uma em seu vasto domínio, rodeada de
numerosos criados, governadas pelo chefe eupátrida, e praticando, com
independência absoluta, seu culto hereditário(1). A cidade ateniense, durante
quatro séculos, não foi senão uma confederação desses poderosos chefes de
família, que se reuniam em determinados dias para a celebração do culto
central, ou deliberarem sobre interesses comuns.
Observamos muitas vezes que a história é muda sobre esse longo período da
existência de Atenas, e, em geral, da existência das demais cidades gregas.
Ficamos admirados ao ver que se conservou a lembrança de muitos
acontecimentos do tempo dos reis, e que não se conservou quase nenhuma
lembrança do tempo do governo aristocrático. Sem dúvida porque então
aconteceu pouca coisa de interesse geral. A volta ao regime patriarcal
suspendera quase por toda parte a vida nacional. Os homens viviam
separados, e tinham poucos interesses comuns. O horizonte de cada um era o
pequeno grupo ou o pequeno burgo, onde vivia como eupátrida ou como
servo.
Também em Roma, cada uma das famílias patrícias vivia em seu domínio,
rodeada de clientes. Iam à cidade para as festas do culto público ou para as
assembléias. Durante os anos que se seguiram à expulsão dos reis, o poder da
aristocracia foi absoluto. Ninguém, além dos patrícios, podia exercer funções
sacerdotais na cidade; era na casta sagrada que se deviam escolher
exclusivamente as vestais, os pontífices, os sálios, os flâmines, os áugures.
Somente os patrícios podiam ser cônsules, somente eles compunham o
senado. Se não suprimiram a assembléia das centúrias, onde os plebeus
tinham acesso, pelo menos encarou-se a assembléia das cúrias como a única
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legítima e santa. As centúrias tinham aparentemente em suas mãos a eleição
dos cônsules; mas vimos que não podiam votar senão nos nomes apresentados
pelos patrícios, e, além do mais, sua decisão era submetida à tríplice
ratificação do senado, das cúrias e dos áugures. Somente os patrícios
administravam a justiça e conheciam as fórmulas da lei.
Esse regime político não durou em Roma senão poucos anos. Na Grécia, pelo
contrário, a aristocracia mandou durante muito tempo. A Odisséia apresentanos
um quadro fiel desse estado da sociedade na parte ocidental da Grécia.
Com efeito, vemos aí um regime patriarcal muito semelhante ao que
observamos na Ática. Algumas famílias ricas e grandes dividem o país entre
si; numerosos criados cultivam o solo, ou cuidam dos rebanhos; a vida é
simples: uma só mesa reúne o chefe e os servidores. Esses chefes são
chamados por um nome que em outras sociedades se torna título de pompa,
ánactes, basiléis. É assim que os atenienses das épocas primitivas chamavam
de basiléus o chefe do ghénos, e os clientes de Roma conservaram o costume
de chamar de rex o chefe da gens. Esses chefes de família têm um caráter
sagrado; o poeta chama-os de reis divinos. Ítaca é bem pequena, e, todavia,
tem grande número desses reis. Entre eles há, na verdade, um rei supremo;
mas não tem grande importância, e não parece possuir outra prerrogativa que
a de presidir o conselho dos chefes. Parece até, por certos sinais, que esteja
sujeito à eleição, e se vê claramente que Telêmaco não será chefe supremo da
ilha enquanto os demais chefes, seus iguais, não se resolverem a elegê-lo.
Ulisses, voltando à pátria, não parece ter outros súditos além dos servos que
lhe pertenciam; quando mata alguns dos chefes, os servos destes tomam
armas, e travam uma luta que o poeta nem cogita em censurar. Entre os
feaces, Alcínoo tem a suprema autoridade; mas nós o vemos dirigir-se à
reunião dos chefes, e podemos notar que não foi ele que convocou o conselho,
mas que o conselho é que exige a presença do rei. O poeta descreve uma
assembléia da cidade de Feácia; falta muito para podermos considerar esta
como uma reunião do povo; somente se reúnem os chefes, individualmente
convocados por um arauto, como em Roma pelos comitia calata; sentam-se
em bancos de pedra; o rei toma a palavra, e qualifica seus auditores pelo nome
de reis portadores de cetros.
Na cidade de Hesíodo, na pedregosa Ascra, encontramos uma categoria de
homens que o poeta chama de chefes ou de reis; são os que administram a
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justiça ao povo. Píndaro também nos mostra uma classe de chefes entre os
cadmeenses; em Tebas, o poeta louva a raça sagrada dos espartanos, à qual
Epaminondas mais tarde liga seu nascimento(2). Quase não podemos ler
Píndaro sem ficarmos impressionados pelo espírito aristocrático que ainda
reina na sociedade grega no tempo das guerras médicas, e por aí se percebe
como essa aristocracia havia sido poderosa um ou dois séculos antes, porque o
que o poeta louva mais em seus heróis é a família; devemos supor que essa
espécie de elogio tinha então grande importância, e que o nascimento parecia
ainda o supremo bem. Píndaro mostra-nos as grandes famílias que então
brilhavam em cada cidade; somente em Egina ele cita os Midílidas, os
Teândridas, os Euxênidas, os Blepsíadas, os Caríadas, os Balíquidas. Em
Siracusa, louva a família sacerdotal dos Iâmidas, em Agrigento a dos
Emênidas, e assim em todas as cidades de que tem ocasião de falar.
Em Epidauro, todo o corpo dos cidadãos, isto é, dos que possuíam direitos
políticos, por muito tempo compôs-se apenas de cento e oitenta membros;
todos os demais estavam fora da cidade(3). Os verdadeiros cidadãos
eram menos numerosos ainda em Heracléia, onde os irmãos mais novos das
grandes famílias não tinham direitos políticos(4). Isso aconteceu por muito
tempo também em Cnido, em Istros, em Marselha. Em Tera, todo o poder
estava nas mãos de algumas famílias, consideradas sagradas. O mesmo
acontecia em Apolônia(5). Em Eritréia existia uma classe aristocrática
chamada basílidas(6). Nas cidades da Eubéia a classe preponderante era
conhecida como a dos cavaleiros(7). Por esse costume podemos notar, a esse
respeito, que entre os antigos., como na Idade Média, constituía privilégio
combater a cavalo.
A monarquia já deixara de existir em Corinto, quando uma colônia partiu de
lá para fundar Siracusa. Também a nova cidade não conheceu a realeza, e a
princípio foi governada pela aristocracia. Essa classe chamava-se geômoros,
isto é, proprietários. Compunha-se de famílias que, no dia da fundação,
haviam distribuído entre si, com todos os ritos ordinários, as partes sagradas
do território. Essa aristocracia continuou por muito tempo, durante várias
gerações, como senhora absoluta do governo, e conservou o título de
proprietários, o que parece indicar que as classes inferiores não tinham
direitos sobre o solo(8). Uma aristocracia semelhante foi por muito tempo
soberana em Mileto e em Samos.
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CAPÍTULO V
SEGUNDA REVOLUÇÃO. TRANSFORMAÇÕES CONSTITUIÇÃO DAS
FAMÍLIAS. DESAPARECE O DIREITO DE PRIMOGENITURA. A GENS
SE DESMEMBRA
A revolução, que havia derrubado a realeza, modificara a forma exterior do
governo antes de mudar a constituição da sociedade. Não fora obra das classes
inferiores, interessadas em destruir as velhas instituições, mas da aristocracia,
que desejava mantê-las. A revolução, pois, não foi feita para mudar a antiga
organização da família, mas para conservá-la. Os reis por muitas vezes
tiveram a tentação de levantar as classes inferiores, e enfraquecer as gentes, e
por isso mesmo é que foram derrubados. A aristocracia não havia operado
uma revolução política, senão para impedir uma revolução social e doméstica.
Ela tomara o poder nas mãos, menos pelo prazer de dominar do que para
defender contra os ataques suas antigas constituições, seus velhos princípios,
seu culto doméstico, sua autoridade paterna, o regime da gens e, enfim, o
direito privado, que a religião primitiva havia estabelecido.
Esse esforço grande e geral da aristocracia correspondia portanto a um perigo.
Ora, parece que, a despeito de seus esforços, e até de sua vitória, o perigo
ainda subsistia. As velhas instituições começavam a fraquejar, e graves
mudanças iam-se introduzir na constituição íntima das famílias.
O velho regime da gens, fundado pela religião da família, não fora destruído
quando os homens passaram a adotar o regime da cidade. Não quiseram ou
não puderam renunciar a ele imediatamente, os chefes, preocupados em
conservar a autoridade, os inferiores, ainda sem pensar em liberdade maior.
Conciliou-se, portanto, o regime da gens com o da cidade. Mas eram, no
fundo, dois regimes opostos, que não deviam esperar unir para sempre, e que
deviam um dia ou outro combater entre si. A família, indivisível e numerosa,
era muito forte e independente para que o poder social não experimentasse a
tentação e mesmo a necessidade de enfraquecê-la. Ou a cidade não devia
durar, ou devia, com o tempo, destruir a família.
A antiga gens, com seu lar único, seu chefe soberano, seu domínio indivisível,
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pôde ser concebida enquanto durou o estado de isolamento, e enquanto não
existiu outra sociedade além dela; mas desde que os homens se reuniram em
cidades, o poder do antigo chefe é forçosamente diminuído, porque, ao
mesmo tempo que é soberano em sua casa, é membro de uma comunidade;
como tal, interesses gerais obrigam a sacrifícios, e leis gerais obrigam à
obediência. A seus próprios olhos, e, sobretudo, aos olhos dos inferiores, sua
dignidade foi diminuída. Depois, nessa comunidade, por mais
aristocraticamente que seja constituída, os inferiores têm certa importância,
fosse embora por causa do número. A família, que compreende vários ramos,
e que comparece aos comícios rodeada de uma multidão de clientes, tem
naturalmente mais autoridade nas deliberações comuns que a família pouco
numerosa, que conta com poucos braços e com reduzido número de soldados.
Ora, esses inferiores não tardam a sentir a importância e a força que têm; certo
sentimento de orgulho, e o desejo de melhor sorte nasce entre eles.
Acrescentemos a isso as rivalidades dos chefes de família, lutando cada um
por maior influência, e procurando enfraquecerem-se mutuamente.
Acrescentemos ainda que eles se tornam ávidos das magistraturas da cidade, e
que, para obtê-las, procuram tornar-se populares, e que, para as gerirem
negligenciam ou se esquecem de sua pequena soberania local. Essas causas
produziram pouco a pouco uma espécie de relaxamento na constituição da
gens; os que tinham interesse em manter essa constituição, respeitavam-na
cada vez menos; os que tinham interesse em modificá-la, tornavam-se mais
atrevidos e mais fortes.
A regra da indivisão, que havia constituído a força da família antiga, foi aos
poucos abandonada. O direito de primogenitura, condição de sua unidade,
desapareceu. Não vamos certamente esperar que algum escritor da
antiguidade nos forneça a data exata dessa grande mudança. É provável que
não houvesse data, porque não se deu em um ano. Essa transformação foi-se
fazendo com o tempo, primeiro em uma família, depois em outra, e pouco a
pouco, em todas. E quando menos se esperava, estava terminada.
Podemos acreditar também que os homens não passaram de um salto da
indivisibilidade do patrimônio à partilha igual entre irmãos. Sem dúvida, entre
esses dois regimes houve uma transição. Tudo aconteceu, talvez, na Grécia e
na Itália, como na antiga sociedade hindu, onde a lei religiosa, depois de
prescrever a indivisibilidade do patrimônio, deu liberdade ao pai para dar
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parte da herança aos filhos menores, e, depois de exigir que o mais velho
recebesse pelo menos uma parte dupla, permitiu que a partilha fosse feita
igualmente, acabando mesmo por recomendá-la(1).
Mas sobre tudo isso não temos nenhuma indicação precisa. Um único ponto é
certo: que o direito de primogenitura e a indivisão foram a primeira regra, que
depois desapareceu.
Essa mudança não se realizou ao mesmo tempo, nem da mesma maneira em
todas as cidades. Em algumas a lei manteve por muito tempo a indivisão do
patrimônio. Em Tebas e em Corinto estava ainda em vigor no século oitavo.
Em Atenas a legislação de Sólon dava ainda certa preferência ao primogênito.
Há cidades onde o direito de primogenitura não desapareceu senão depois de
alguma insurreição. Em Heracléia, em Cnido, em Istros, em Marselha, os
ramos mais novos tomaram armas para destruir ao mesmo tempo a autoridade
paterna e o privilégio do irmão mais velho(2). A partir desse momento, uma
cidade grega, que até então não contava senão com uma centena de homens
que gozavam de direitos políticos, passou a contar com quinhentos ou
seiscentos cidadãos. Todos os membros das famílias aristocráticas foram
cidadãos, e abriu-se para todos o acesso às magistraturas e ao senado.
Não é possível afirmar em que época o privilégio do primogênito desapareceu
de Roma. É provável que os reis, em meio a suas lutas contra a aristocracia,
fizeram o possível para suprimi-lo, e para desorganizar assim as gentes. No
início da república vemos cento e quarenta novos membros ingressar para o
senado. Eles saíam diz Tito Lívio das primeiras classes da ordem
eqüestre(3). Ora, sabemos que as seis primeiras centúrias de cavaleiros
eram compostas de patrícios(4). Eram, portanto, ainda os patrícios que
vinham preencher as vagas do senado. Mas Tito Lívio acrescenta um
pormenor bem significativo: a partir desse momento, passaram-se a distinguir
duas espécies de senadores: os chamados patres e os chamados conscripti(5).
Todos eram igualmente patrícios, mas os patres eram os chefes das cento e
sessenta gentes, que ainda subsistiam, e os conscripti eram escolhidos entre os
ramos mais novos dessas gentes. Podemos supor, com efeito, que essa classe,
numerosa e enérgica, não tenha auxiliado a obra de Bruto e dos patres senão
sob a condição de obter direitos civis e políticos. Ela conquistou assim,
favorecida pela necessidade que dela tinham, o que a mesma classe havia
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conquistado pelas armas em Heracléia, em Cnido e em Marselha.
O direito de primogenitura, portanto, desaparece de toda parte, revolução
considerável que começou a transformar a sociedade. A gens italiana e o
ghénos helênico perderam sua unidade primitiva. Os diferentes ramos se
separaram; cada um recebeu daí em diante sua parte de propriedade, seu
domicílio, seus interesses particulares, sua independência. Singuli singulas
familias incipiunt habere diz o jurisconsulto. Há na língua latina antiga
expressão que parece datar dessa época: familiam ducere dizia-se do que se
destacava da gens, e ia formar uma estirpe a parte, como se dizia ducere
coloniam de quem deixava a metrópole, e ia fundar ao longe uma colônia. O
irmão, que assim se separava do irmão mais velho, passava a possuir lar
próprio, que sem dúvida acendera no lar comum da gens, como a colônia
acendia o seu no pritaneu da metrópole. A gens não conservou mais que uma
espécie de autoridade religiosa, em relação às diferentes famílias que dela se
haviam destacado. Seu culto teve supremacia sobre os demais. Não lhes
permitiam esquecer que haviam saído daquela gens, e continuaram a usar seu
nome; em dias determinados, as novas famílias se reuniam ao redor do lar
comum, para venerar o velho antepassado ou a divindade protetora.
Continuaram até a ter um chefe religioso, e é provável que o mais velho
conservasse ainda seu privilégio para o sacerdócio, que por muito tempo
continuou hereditário. Fora isso, essas famílias eram independentes.
Esse desmembramento da gens teve conseqüências graves. A antiga família
sacerdotal, que havia formado um grupo tão bem unido, tão fortemente
constituído, tão poderoso, enfraqueceu-se para sempre. Essa revolução
preparou e tornou mais fáceis outras modificações.
CAPÍTULO VI
OS CLIENTES SE LIBERTAM
1.° O que era, a princípio, a clientela, e como se transformou
Eis ainda uma revolução cuja data não se pode precisar, mas que, certamente,
modificou a constituição da família e da própria sociedade. A família antiga
compreendia, sob a autoridade de um único chefe, duas classes de categoria
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desigual: de uma parte, os ramos mais novos, isto é, indivíduos naturalmente
livres; de outra, os servos ou clientes, inferiores por nascimento, mas unidos
ao chefe por sua participação no culto doméstico. Dessas duas classes,
acabamos de ver a primeira sair de seu estado de inferioridade; a segunda há
muito tempo deseja libertar-se. Com o tempo, conseguiu-o; a clientela
transformou-se, e acabou por desaparecer.
Mudança enorme, que os escritores antigos não narram. Foi assim que, na
Idade Média, os cronistas não nos dizem como a população dos campos se
transformou pouco a pouco. Há na existência das sociedades humanas grande
número de revoluções, cuja lembrança não nos é guardada por nenhum
documento. Os escritores não se aperceberam delas, porque aconteceram com
extrema lentidão, de maneira insensível, sem lutas visíveis; revoluções
profundas e ocultas, que revolveram as bases da sociedade humana, sem que
nada aparecesse na superfície, e que permaneciam desapercebidas às próprias
gerações que as faziam. A história não pôde compreendê-las senão muito
tempo depois de terminadas, quando, comparando duas épocas da vida de um
povo, constata entre elas tão grandes diferenças, que se torna evidente que, no
intervalo que as separa, houve uma grande revolução.
Se nos limitarmos ao quadro que os escritores nos traçam da clientela
primitiva de Roma, tratar-se-ia realmente de uma instituição da idade de ouro.
Que há de mais humano que o patrono a defender o cliente na justiça, a
sustentá-lo com seu dinheiro, se é pobre, a cuidar da educação de seus filhos?
Que há de mais comovente que o cliente, que, por sua vez, sustenta o patrono
caído na miséria, paga suas dívidas e dá tudo o que tem para pagar seu resgate
(1)? Mas não há tanto sentimento nas leis dos povos antigos. A afeição
desinteressada e o devotamento nunca foram próprios de suas instituições.
Devemos fazer outra idéia da clientela e do patronado.
O que sabemos com mais certeza sobre o cliente é que ele não pode separar-se
do patrono, nem escolher outro, ficando ligado de pai para filho a uma família
(2). Bastava que soubéssemos isto para acreditar que sua condição não devia
ser muito agradável. Acrescentemos a isso que o cliente não é proprietário da
terra, que pertence ao patrono, o qual, como chefe do culto doméstico, e
também como membro da cidade, é o único com qualidades para ser
proprietário. Se o cliente cultiva o solo, só o faz em nome e em proveito do
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dono. O cliente não tem propriedade absoluta nem sobre seus objetos móveis,
seu dinheiro, seu pecúlio. A prova está em que o patrono pode tirar-lhe tudo
isso, para pagar suas dívidas ou resgate. Assim, nada lhe pertence. É verdade
que o patrono lhe deve a subsistência, a ele e a seus filhos; mas em troca ele
deve seu trabalho ao patrono. Não se pode dizer que seja precisamente
escravo; mas tem um senhor ao qual pertence, e a cuja vontade está sujeito em
todas as coisas. Toda a vida ele é cliente, como seus filhos o serão depois dele.
Há certa analogia entre o cliente das épocas antigas e o servo da Idade Média.
Na verdade, o princípio que os condena à obediência não é o mesmo. Para o
servo esse princípio é o direito de propriedade, que se exerce sobre a terra e
sobre o homem ao mesmo tempo; para o cliente esse princípio é a religião
doméstica, à qual está ligado sob a autoridade do patrono, sacerdote dessa
religião. Aliás, para o cliente e para o servo a subordinação é a mesma: um
está ligado ao patrono como o outro o está ao senhor; o cliente não pode
deixar a gens, como o servo não pode abandonar a gleba. O cliente, como o
servo, fica sujeito a um senhor, de pai a filho. Uma passagem de Tito faz
supor que lhe é proibido casar fora da gens, como é proibido ao servo casar-se
fora da aldeia(3). O certo é que não pode contrair matrimônio sem autorização
do patrono. O patrono pode reapossar-se do solo que o cliente cultiva, e do
dinheiro que possui, como o senhor pode fazer em relação ao servo. Se o
cliente morre, tudo o que usou retorna por direito ao patrono, assim como a
sucessão do servo pertence ao senhor.
O patrão não é somente senhor; é também juiz; pode condenar à morte o
cliente. Além disso é chefe religioso. O cliente dobra-se sob essa autoridade,
ao mesmo tempo material e moral, que o liga de corpo e alma. É verdade que
essa religião impõe deveres ao patrono, mas deveres de que ele é o único juiz,
e para os quais não existe nenhuma sanção. O cliente não vê nada que o
proteja; não é cidadão por si mesmo; se deseja comparecer diante do tribunal
da cidade, é necessário que o patrono o leve, e fale por ele. Invocará ele a lei?
De que modo, se desconhece suas fórmulas sagradas? Mas, se as conhecesse,
a primeira lei para ele é a de nunca testemunhar nem falar contra o patrono.
Sem o patrono não havia justiça; contra o patrono não havia recurso.
O cliente não existe apenas em Roma; encontramo-lo entre os sabinos e os
etruscos, fazendo parte da manus de cada chefe(4). Existiu na antiga gens
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helênica tanto quanto na gens italiana. É verdade que não devemos procurá-lo
nas cidades dóricas, onde o regime da gens logo desapareceu, e onde os
vencidos estão ligados, não à família de um homem, mas a um pedaço de
terra. Encontramo-lo em Atenas, e nas cidades jônicas e eólias, sob o nome de
teta e pelata. Enquanto dura o regime aristocrático, o teta não faz parte da
cidade; fechado em uma família, da qual não pode sair, está sujeito a um
eupátrida, que possui a mesma autoridade e caráter do patrono romano.
Podemos presumir que logo surgiu ódio entre patronos e clientes. Não temos
dificuldade em imaginar o que era a existência nessa família onde um tinha
plenos poderes e o outro nenhum; onde a obediência, sem esperança e sem
reservas, estava toda do lado da onipotência sem freios; onde o melhor tinha
seus arrebatamentos e seus caprichos; onde o servo mais resignado tinha seus
rancores, suas queixas, suas cóleras. Ulisses é um bom patrono: vede que
afeição paternal dedica a Eumeu e a Fileto. Mas condena à morte um servo
que o insultara sem reconhecê-lo, e as criadas que caíram em faltas, a que sua
própria ausência as expusera. Da morte dos pretendentes Ulisses é
responsável perante a cidade; mas pela morte dos servos ninguém lhe pede
contas.
No estado de isolamento em que a família viveu por tanto tempo, a clientela
pôde formar-se e manter-se. A religião doméstica tinha então plenos poderes
sobre a alma. O homem, que desempenhava o papel de sacerdote dessa
religião, o era por direito hereditário, e aparecia às classes inferiores como
uma criatura sagrada. Mais que um homem, era o intermediário entre os
homens e Deus. De sua boca saía a prece poderosa, a fórmula irresistível, que
atraía o favor ou a cólera da divindade. Diante de tal força era preciso inclinarse;
a obediência era exigida pela fé e pela religião. Além disso, como poderia
o cliente ter a tentação de libertar-se? Ele não via outro horizonte que essa
família, à qual tudo o ligava. Somente nela encontrava uma vida calma, uma
subsistência assegurada; somente nela, se tinha um senhor, tinha também um
protetor: somente nela, enfim, encontrava um altar do qual podia se acercar, e
deuses que lhe permitiam invocar. Deixar essa família, era colocar-se fora de
toda organização social e de todo o direito; era perder os deuses e o direito de
rezar.
Mas, fundada a cidade, os clientes das diferentes famílias podiam encontrarhttp://
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se, conversar, comunicar mutuamente seus desejos ou ódios, comparar os
diferentes senhores, e entrever melhor sorte. Depois seu olhar começou a se
estender para além do círculo familiar. Viam que fora dela existia uma
sociedade, regras, leis, altares, templos, deuses. Sair da família, portanto, não
era mais para eles desgraça irremediável. A tentação tornava-se cada dia mais
forte; a clientela parecia um fardo cada vez mais pesado, e deixaram aos
poucos de acreditar que a autoridade do senhor era legítima e sagrada.
Apareceu então no coração desses homens um ardente desejo de liberdade.
Sem dúvida, não encontramos na história de nenhuma cidade a lembrança de
uma insurreição geral dessa classe. Se houve lutas a mão armada, ficaram
limitadas e ocultas no círculo de cada família. É na família que vemos,
durante mais de uma geração, de um lado, enérgicos esforços pela
independência, de outro, uma repressão implacável. Em cada casa desenrolouse
longa e dramática história, que hoje é impossível recontar. O que se pode
afirmar apenas é que os esforços da classe inferior não ficaram sem
resultados. Uma necessidade invencível obrigou pouco a pouco os senhores a
ceder alguma coisa de sua onipotência. Quando a autoridade deixa de parecer
justa aos súditos, é preciso ainda tempo para que deixe de parecê-lo aos
senhores; mas isso vem com o tempo, e então o senhor, que deixa de julgar
sua autoridade legítima, defende-a mal, ou acaba por renunciar a ela.
Acrescentemos que essa classe inferior era útil, que seus braços, cultivando a
terra, representavam a riqueza do senhor, e, empunhando armas, constituíam
sua força em meio às rivalidades das famílias, e que, portanto, era prudente
satisfazê-la, pois, o interesse juntava-se ao espírito de humanidade para
aconselhar concessões.
Parece certo que a condição dos clientes pouco a pouco melhorou. A
princípio, viviam na casa do senhor, cultivando juntos o domínio comum.
Mais tarde, deu-se a cada um deles um lote de terra particular. O cliente então
já devia julgar-se um pouco mais feliz. Sem dúvida, trabalhava ainda em
proveito do senhor; a terra não lhe pertencia; ele é que pertencia à terra. Não
importa: cultivava-a longos anos seguidos, e passou a amá-la. Estabelecia-se
entre a terra e ele, não aquele vínculo que a religião da propriedade havia
criado entre a terra e o senhor, mas outro vínculo, o que o trabalho e o próprio
sofrimento, podem formar entre o homem que trabalha e a terra que produz.
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Depois surgiu novo progresso: não cultivou mais para o senhor, mas para si
mesmo. Sob a condição de um tributo, que a princípio deve ter sido variável,
mas que depois se tornou fixo, passou a gozar de sua colheita. Seus suores
encontraram assim alguma recompensa, e sua vida tornou-se ao mesmo tempo
mais livre e mais altiva. Os chefes de família diz um antigo davam
porções de terra a seus inferiores, como se eles fossem seus próprios filhos
(5). Lemos também na Odisséia: Um senhor benevolente dá ao servo
casa e terras; e Eumeu acrescenta: uma esposa desejada, porque o
cliente ainda não pode casar contra a vontade do senhor, que é quem escolhe
sua companheira.
Mas esse campo onde vivia, onde estava todo seu trabalho e toda sua
satisfação, ainda não é propriedade sua. Porque o cliente não tinha em si o
caráter sagrado, que fazia com que o solo pudesse tornar-se propriedade do
homem. O lote que ocupava continuava a ostentar o marco sagrado, o deus
termo, que a família do senhor implantara outrora. Esse limite inviolável
atestava que o campo, unido à família do senhor por vínculo sagrado, não
poderia jamais pertencer de fato ao cliente liberto. Na Itália o campo e a casa
em que morava o villicus, cliente do patrono, possuíam um lar, o lar
familiaris; mas esse lar não pertencia ao lavrador; era o lar do senhor(6).
Estabelecia-se desse modo, simultaneamente, o direito de propriedade do
patrono e a subordinação religiosa do cliente, que, por mais longe que
estivesse do patrono, ainda seguia seu culto.
O cliente, tornando-se possuidor da terra, sofria por não ser proprietário, e
aspirava vir a sê-lo. Pôs toda sua ambição em fazer desaparecer desse campo,
que lhe parecia seu por direito de trabalho, o marco sagrado, que o
transformava em propriedade perpétua do antigo senhor.
Vemos claramente que na Grécia os clientes alcançaram a meta desejada, mas
não sabemos como. Quanto tempo e esforços foram necessários para alcançála
só o podemos imaginar. Talvez na antiguidade acontecesse a mesma série
de transformações sociais que a Europa presenciou na Idade Média, quando os
escravos dos campos tornaram-se servos da gleba, transformando-se de servos
à mercê dos senhores em servos abonados, para enfim tornarem-se
camponeses proprietários.
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2.° A clientela desaparece de Atenas. A obra de Sólon
Essa espécie de revolução está nitidamente assinalada na história de Atenas. A
queda da realeza teve como efeito reavivar o regime do ghénos; as famílias
haviam retomado seu modo de vida isolada, e cada uma recomeçara a formar
um pequeno Estado, que tinha como chefe um eupátrida, e por súditos a
multidão de clientes ou servidores, que a antiga língua chamava de tetas(7).
Esse regime parece haver pesado duramente sobre a população ateniense, pela
má lembrança que dele guardou. O povo considerou-se tão desgraçado, que a
época precedente parecia-lhe ter sido uma espécie de idade de ouro; teve
saudades dos reis, e começou a imaginar que sob a monarquia havia sido feliz
e livre, gozando de igualdade, e que somente depois da queda dos reis é que
haviam aparecido o sofrimento e a desigualdade. Era uma ilusão, como todo
povo costuma ter; a tradição popular colocava o começo da desigualdade lá
onde o povo havia começado a achá-la odiosa. A clientela, essa espécie de
servidão, tão velha quanto a constituição da família, faziam-na datar da época
em que os homens pela primeira vez sentiram seu peso e compreenderam sua
injustiça. Todavia, é certo que não foi no século sétimo que os eupátridas
estabeleceram as duras leis da clientela. Apenas conservaram-nas, e isso foi
seu único erro: manter essas leis além do tempo em que os povos as aceitavam
sem gemer, contra a vontade dos homens. Os eupátridas dessa época eram,
talvez, senhores menos rigorosos do que seus antepassados, e todavia, foram
mais detestados.
Parece que, mesmo sob o domínio da aristocracia, a condição da classe
inferior melhorou, porque então vemo-la claramente obter a posse das terras,
sob a única condição de pagar tributo, que consistia na sexta parte da colheita
(8). Esses homens estavam assim quase emancipados; com casa própria, e
longe dos olhos do senhor, respiravam mais à vontade, e trabalhavam em seu
proveito.
Mas a natureza humana é de tal modo constituída, que à medida que sua sorte
melhorava, sentiam mais amargamente o que ainda lhes restava de
desigualdade. Não ser cidadão, não tomar parte na administração da cidade,
não lhes importava tanto; mas não poder ser proprietários da terra sobre a qual
viviam e morriam, era o que mais os tocava. Acrescentemos ainda que tudo o
que possuíam de suportável em sua presente condição carecia de estabilidade,
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porque, se na verdade eram donos da terra, nenhuma lei formal asseguravalhes
a posse ou independência dela resultante. Vemos em Plutarco que o
antigo patrono podia apoderar-se novamente do antigo servo; se o tributo
anual não havia sido pago, ou por outra qualquer causa, esses homens recaíam
em uma espécie de escravidão.
Portanto, graves questões se agitaram na Ática durante quatro ou cinco
gerações seguidas. Já não era mais possível que os homens da classe inferior
continuassem naquela posição instável e irregular, à qual haviam sido
conduzidos por um progresso insensível; então, ou perdendo essa posição,
tornariam a cair entre os laços rígidos da clientela, ou deviam subir à categoria
de proprietários e de homens livres.
Podemos imaginar todos os esforços feitos por parte do lavrador, antigo
cliente, e toda a resistência da parte do proprietário, antigo patrono. Não
houve guerra civil, e por isso os anais atenienses não nos conservaram a
lembrança de nenhum combate. Foi uma guerra doméstica, em cada burgo,
em cada casa, de pais a filhos.
Essas lutas parecem ter tido resultados diversos, de acordo com a natureza do
solo dos diversos cantões da Ática. Na planície, onde o eupátrida tinha seu
principal domínio, e onde sempre estava presente, sua autoridade manteve-se
quase intacta sobre o pequeno grupo de servos que estavam continuamente
debaixo de seus olhos; por isso os pedienses se mostraram geralmente fiéis ao
antigo regime. Mas aqueles que trabalhavam duramente nos flancos das
montanhas, os diacrienses, mais longe dos senhores, mais habituados à vida
independente, mais atrevidos e mais corajosos, guardavam no fundo do
coração ódio violento para com o eupátrida, e uma vontade firme de
liberdade. Eram sobretudo esses homens que se indignavam por ver os
limites sagrados do campo do senhor, e por sentirem a escravidão de suas
terras(9). Quanto aos habitantes dos cantões vizinhos ao mar, os
paralienses, a propriedade do solo tentava-os menos; tinham à sua frente o
mar, o comércio e a indústria. Vários haviam-se tornado ricos, e, com a
riqueza, eram quase livres. Não participavam, portanto, das ambições ardentes
dos diacrienses, e não sentiam bastante ódio pelos eupátridas. Mas não
sentiam tampouco a covarde resignação dos pedienses; exigiam mais
estabilidade em sua condição, e direitos melhor assegurados.
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Sólon deu satisfação a seus desejos na medida do possível. Há uma parte da
obra desse legislador que os antigos nos transmitiram muito imperfeitamente,
mas que parece constituir sua parte principal. Antes dele, a maior parte dos
habitantes da Ática estava ainda reduzida à posse precária do solo, com perigo
até de voltar à servidão pessoal. Depois, dele, não vemos mais essa numerosa
classe de homens; não vemos mais nem os rendeiros sujeitos a tributos, nem
a terra escrava, e o direito de propriedade torna-se acessível a todos. Houve
uma grande transformação, cujo autor só pode ter sido Sólon.
É verdade que, se dermos atenção às palavras de Plutarco, Sólon nada mais
fez do que suavizar a legislação sobre as dívidas, tirando ao credor o direito
de escravizar o devedor. Mas devemos olhar de perto o que um escritor, muito
posterior a essa época, nos diz sobre essas dívidas, que perturbaram a cidade
ateniense, como todas as cidades da Grécia e da Itália. É difícil acreditar que
antes de Sólon houvesse tal circulação de dinheiro, a ponto de haver muitos
credores e devedores. Não julguemos esse tempo pelos que se lhe seguiram. O
comércio então era reduzido; o crédito era desconhecido, e os empréstimos
deviam ser muito raros. Sobre que garantias o homem, que não era
proprietário, podia pedir um empréstimo? Em nenhuma sociedade é costume
emprestar-se a quem nada tem. Na verdade, afirma-se, acreditando-se mais
nos tradutores de Plutarco que no próprio Plutarco, que o devedor hipotecava
a terra(10). Mas, mesmo supondo que essa terra fosse propriedade sua, ele não
a poderia hipotecar, porque o sistema de hipotecas ainda era desconhecido, e
estava em contradição com a natureza do direito de propriedade(11). Nesses
devedores, de que nos fala Plutarco, devemos ver os antigos servos; em suas
dívidas, o tributo anual, que devem pagar aos antigos senhores; na servidão
em que caem, devemos ver a volta à antiga clientela.
Sólon suprimiu, talvez, o tributo, ou, mais provavelmente, reduziu-o de tal
modo, que facilitou o pagamento e acrescentou que para o futuro a falta de
pagamento não faria o homem voltar à servidão.
Fez mais. Antes dele, os antigos clientes, transformados em donos da terra,
não podiam tornar-se proprietários, porque sobre seus campos levantava-se
sempre o marco sagrado e inviolável do antigo patrono. Para a libertação da
terra e do lavrador era necessário que esse marco desaparecesse. Sólon
derrubou-o; encontramos o testemunho dessa grande reforma em alguns
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versos do próprio Sólon: Era uma obra inesperada diz ele e eu a
terminei com a ajuda dos deuses. Atesta-o a deusa mãe, a terra escura, da qual
em muitos lugares arranquei os limites, a terra que era escrava, e que agora é
livre. Fazendo isto, Sólon realizara uma revolução considerável. Pusera
de lado a antiga religião da propriedade, que, em nome do deus Termo
imóvel, retinha a terra em um pequeno número de mãos. Arrancara a terra à
religião, para entregá-la ao trabalho. Suprimira, com a autoridade do eupátrida
sobre o solo, sua autoridade sobre o homem, e podia afirmar em seus versos:
Eu libertei os que sobre esta terra sofriam cruel servidão, e tremiam diante do
senhor.
É provável que essa libertação é a que os contemporâneos de Sólon
chamavam de seisachthéia (sacudir o jugo). As gerações seguintes, que, uma
vez habituadas a liberdade, não queriam ou não podiam acreditar que seus
pais haviam sido servos, explicaram essa palavra como se assinalasse apenas
uma abolição de dívidas. Mas ela tem uma energia que nos revela uma
revolução mais importante. Acrescentemos esta frase de Aristóteles, que, sem
entrar na redação da obra de Sólon, diz simplesmente: Ele acabou com a
escravidão do povo(12).
3.° Transformação da clientela em Roma
Essa guerra entre clientes e patrões tomou também grande período da
existência de Roma. Tito Lívio, na verdade, nada diz a respeito, porque não
tem o hábito de observar de perto a transformação das instituições; aliás os
anais dos pontífices, e os documentos análogos, que haviam sido compulsados
pelos antigos historiadores que Tito Lívio consultava, não deviam trazer a
história dessas lutas domésticas.
Uma coisa, pelo menos, é certa. Roma, em seus primeiros tempos, teve
clientes; ficaram-nos mesmo testemunhos bem precisos de sua dependência
em relação aos patronos. Se vários séculos depois procuramos esses clientes,
não os encontramos mais. O nome ainda existe, mas não a clientela, porque
não há nada mais diverso dos clientes dos primeiros tempos que esses plebeus
dos tempos de Cícero, que se diziam clientes de um rico para terem direito à
espórtula.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Mas há uma classe que se assemelha mais à dos antigos clientes; é a dos
libertos(13). No fim da república, como nos primeiros tempos de Roma, o
homem, saindo da servidão, não se torna, imediatamente, homem livre e
cidadão. Continua sujeito ao senhor. Outrora chamavam-no patrono, e assim
continuam a chamá-lo. O liberto, de nome. Quanto ao senhor, nem o nome
mudou: chamavam-no patrono, e assim continuam a chamá-lo. O liberto,
como outrora o cliente, continua ligado à família, da qual leva o nome, como
o antigo cliente. Ele depende do patrono; deve-lhe não somente
reconhecimento, mas serviços, cuja medida só o senhor pode determinar. O
patrono tem direito de justiça sobre o liberto, como já o tinha sobre o cliente;
pode fazê-lo voltar à escravidão por crime de ingratidão(14). O liberto,
portanto, lembra exatamente o antigo cliente. Entre eles não há senão uma
diferença: outrora era-se cliente de pai a filho; agora a condição de liberto
cessa na segunda, ou, pelo menos, na terceira geração. A clientela, portanto,
não desapareceu; ela ainda prende o homem no momento em que a servidão o
liberta; apenas deixou de ser hereditária. Isso já é uma mudança considerável;
é impossível precisar a época em que se deu.
Podemos muito bem adivinhar os sucessivos abrandamentos por que passou a
condição do cliente, e os degraus que o levaram a conseguir o direito de
propriedade. No início o chefe da gens cede-lhe um lote de terra para cultivar
(15). Não muito depois ele se torna possuidor vitalício desse lote, contanto
que contribua para todas as despesas do antigo patrono. As disposições tão
duras da antiga lei, que o obrigam a pagar o resgate do patrono, o dote da
filha, ou suas multas judiciais, provam, pelo menos, que no tempo em que
essa lei foi escrita ele já podia possuir pecúlio. O cliente em seguida dá mais
um passo: obtém o direito de, ao morrer, transmitir o que possui ao filho; é
verdade que, na falta de um filho, seus bens voltam ainda às mãos do patrono.
Mas eis novo progresso: o cliente sem filhos obtém o direito de fazer
testamento. Aqui o costume hesita e varia; ora o patrono retoma a metade dos
bens, ora a vontade do testador é inteiramente respeitada; em todo caso, seu
testamento sempre tem valor(16). Assim o cliente, se ainda não se pode dizer
proprietário, tem pelo menos regalias tão grandes quanto possível.
Sem dúvida não se trata ainda da liberdade completa. Mas nenhum documento
permite-nos fixar a época em que os clientes se libertaram definitivamente das
famílias dos patrícios. Há vários textos de Tito Lívio(17) que, tomados ao pé
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da letra, mostram que desde os primeiros anos da república os clientes eram
cidadãos. Há grandes probabilidades de que já o fossem nos tempos do rei
Sérvio; talvez votassem nos comícios curiais desde a fundação de Roma. Mas
não se pode por aí concluir que fossem desde então libertos, porque não é
possível que os patrícios achassem interessante dar a seus clientes direitos
políticos, fazendo-os votar nos comícios, sem por isso consentirem em darlhes
direitos civis, isto é, em libertá-los de sua autoridade.
Não parece que a revolução que liberta os clientes de Roma tenha terminado
de um só golpe, como em Atenas. Ela acontece muito lentamente, e de
maneira quase imperceptível, sem que nenhuma lei formal jamais a tenha
consagrado. Os laços da clientela alargaram-se pouco a pouco, e o cliente
afastou-se insensivelmente do patrono.
O rei Sérvio fez uma grande reforma em vantagem dos clientes: modificou a
organização do exército. Antes dele o exército marchava dividido em tribos,
em cúrias, em gentes; era a divisão patriciana; cada chefe de gens ficava à
testa de seus clientes. Sérvio dividiu o exército em centúrias: cada soldado
teve um lugar de acordo com sua riqueza. Resultou daí que o cliente não
marchou mais ao lado do patrono, não o reconhecendo mais como chefe no
combate, tomando assim o hábito da independência.
Essa mudança causou outra na constituição dos comícios. Antes a assembléia
dividia-se em cúrias e em gentes, e o cliente, quando votava, fazia-o sob os
olhos do senhor. Mas, estabelecendo-se a divisão por centúrias nos comícios
como no exército, o cliente não se encontrava mais ao lado do patrono. É
verdade que a velha lei mandava ainda que votasse em conformidade com ele,
mas como poderiam controlar-lhe o voto?
Já era muito separar o cliente do patrono nos momentos mais solenes da vida:
ao combater e ao votar. A autoridade do patrono viu-se muito diminuída, e o
que ainda lhe restava, dia a dia lhe era mais contestado. Desde que o cliente
experimentou um pouco de independência, passou a desejá-la completa.
Aspirava libertar-se da gens, e ingressar na plebe, onde seria livre. Quantas
ocasiões se apresentaram! No tempo dos reis, estava certo de sua ajuda,
porque eles só desejavam enfraquecer as gentes. Sob a república, encontrava a
proteção da plebe e dos tribunos. Muitos clientes assim se libertaram, e a gens
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não conseguiu mais dominá-los. Em 472 antes de Cristo o número dos
clientes era ainda considerável, pois a plebe queixava-se de que, por seus
sufrágios nos comícios centuriais, faziam pender a balança para o lado dos
patrícios(18). Pela mesma época, como a plebe recusava-se a se alistar, os
patrícios formaram um exército apenas de clientes(19). Parece, todavia, que
esses clientes já não eram tão numerosos para cultivar as terras dos patrícios,
que se viam obrigados a pedir auxílio à plebe(20). É verossímil que a criação
do tribunal, amparando os clientes fugitivos contra os antigos patronos, e
tornando a situação dos plebeus mais invejável e mais segura, apressou esse
movimento gradual em direção à liberdade. Em 372 não havia mais clientes, e
certo Mânlio podia dizer à plebe: Tanto quanto haveis sido clientes ao lado
de cada patrono, sereis agora outros tantos adversários contra um só inimigo
(21). Desde essa época não vemos mais na história de Roma esses antigos
clientes, homens hereditariamente ligados à gens. A primitiva clientela é
substituída por uma clientela de novo gênero, vínculo voluntário e quase
fictício, que já não acarreta as mesmas obrigações. Já não se distinguem mais
em Roma as três classes dos patrícios, dos clientes, dos plebeus. Restam
apenas duas, pois os clientes misturaram-se à plebe.
Os Marcelos assim parecem pertencer a um ramo destacado da gens Cláudia.
Seu nome era Cláudios; mas, como não eram patrícios, não podiam fazer parte
da gens senão como clientes. Há muito tempo livres, enriquecidos por meios
que nos são desconhecidos, elevaram-se primeiramente às dignidades da
plebe, e mais tarde às da cidade. Durante vários séculos a gens Cláudia parece
haver esquecido seus antigos direitos sobre os Marcelos. Contudo, um dia, nos
tempos de Cícero(22), lembra-se disso inopinadamente. Um liberto ou cliente
dos Marcelos morrera, e deixara uma herança que, de acordo com a lei, devia
retornar ao patrono. Os Cláudios, patrícios, pretenderam que os Marcelos,
como clientes que eram, não podiam eles próprios ter clientes, e que seus
libertos deviam cair, juntamente com a herança, nas mãos do chefe da gens
patrícia, única capaz de exercer direitos de patronado. Esse processo deixou o
público de Roma muito admirado, e causou embaraços aos jurisconsultos; o
próprio Cícero achou o caso muito obscuro, o que não teria acontecido quatro
séculos antes, quando a gens Cláudia teria vencido facilmente a causa. Mas,
nos tempos de Cícero, o direito sobre o qual baseavam sua reclamação era tão
antigo que já o haviam esquecido, fazendo com que o tribunal resolvesse a
causa em favor dos Marcelos. A antiga clientela não existia mais.
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CAPÍTULO VII
TERCEIRA REVOLUÇÃO
A PLEBE PASSA A FAZER PARTE DA CIDADE
1.° História geral dessa revolução
As mudanças que, com o correr do tempo, foram surgindo na constituição da
família provocaram outras na constituição da cidade. A antiga família
aristocrática e sacerdotal achava-se enfraquecida. Desaparecendo o direito de
primogenitura, perdeu a unidade e o vigor; com a quase total libertação dos
clientes, perdera a maior parte dos súditos. Os homens da classe inferior não
faziam mais parte das gentes; vivendo fora delas, constituíram corpo à parte.
Por isso, a cidade mudou de aspecto; em lugar do que fora precedentemente,
um ajuntamento mais ou menos frágil de tantos pequenos estados quantas
eram as famílias, a união se fez, por uma parte, entre os membros patrícios
das gentes, e por outra entre os homens de categoria inferior. Houve assim
dois grandes corpos frente à frente, duas sociedades inimigas. Não houve
mais, como na época precedente, uma luta obscura em cada família, mas a
guerra aberta em cada cidade. Das duas classes, uma queria que a constituição
religiosa da cidade fosse mantida, e que o governo, como o sacerdócio,
continuasse nas mãos das famílias sagradas. A outra queria destruir as antigas
barreiras, que a colocavam fora do direito, da religião, da sociedade política.
Na primeira parte da luta, a vantagem estava do lado da aristocracia de
nascimento. Na verdade, esta não tinha mais seus antigos súditos, e sua força
material desaparecera, mas restava-lhe ainda o prestígio da religião, sua
organização regular, seu hábito de comando, suas tradições, seu orgulho
hereditário. Ela não duvidava de seu direito; defendendo-se, julgava defender
a própria religião. O povo tinha a seu favor apenas o grande número.
Acostumado a respeitar, não lhe era fácil livrar-se desse hábito. Além do
mais, não tinha chefes; faltava-lhe qualquer princípio de organização. A
princípio, não era um corpo bem constituído e forte, mas uma multidão
desunida. Se nos lembrarmos de que os homens não haviam encontrado
nenhum outro princípio de associação além da religião hereditária das
famílias, e que não tinham idéia de nenhuma autoridade que não derivasse do
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culto, compreenderemos facilmente que essa plebe, que estava fora do culto e
da religião, não pôde formar a princípio uma sociedade regular, e que lhe foi
necessário muito tempo para encontrar em si mesma os elementos de
disciplina e as regras de governo.
Essa classe inferior, em sua fraqueza, não viu a princípio outro meio de
combater a aristocracia senão opondo-lhe a monarquia.
Nas cidades onde a classe popular já estava formada ao tempo dos antigos
reis, a plebe dá a eles todo o apoio e força de que dispunha, encorajando-os a
aumentar seu poder. Em Roma, exigiu o estabelecimento da realeza depois de
Rômulo; fez nomear Hostílio; fez rei a Tarquínio, o Antigo; apoiou Sérvio, e
lamentou a sorte de Tarquínio, o Soberbo.
Quando os reis por toda parte já estavam vencidos, e a aristocracia se tornou
senhora, o povo não se limitou a lamentar a monarquia: quis restaurá-la sob
nova forma. Na Grécia, durante o século VI, conseguiu, em geral, eleger os
próprios chefes; não podendo chamá-los de reis, porque esse título implicava
a idéia de funções religiosas, e não podia ser ostentado senão pelas famílias
sacerdotais, chamou-os de tiranos(1).
Seja qual for o sentido original dessa palavra, o certo é que não a foram
buscar na língua religiosa; não se podia aplicá-la aos deuses, como se fazia
com a palavra rei; não a pronunciavam em suas preces. Esse vocábulo, com
efeito, designava algo muito novo entre os homens, uma autoridade que não
derivava do culto, um poder que a religião não havia estabelecido. O
aparecimento dessa palavra na língua grega marca a aparição de um princípio
que as gerações precedentes não haviam conhecido: a obediência do homem
ao homem. Até essa época não tivera outros chefes de Estado além dos chefes
da religião; somente estes mandavam na cidade, faziam os sacrifícios e
invocavam os deuses em seu favor; obedecendo a eles, não obedecia senão à
lei religiosa, não se submetiam senão à divindade. A obediência a um homem,
a autoridade dada a esse homem por outros homens, um poder de origem e
natureza apenas humana, era coisa que os antigos eupátridas haviam
desconhecido, e isso não foi pensado senão no dia em que as classes inferiores
rejeitaram o jugo da aristocracia, procurando nova forma de governo.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Citemos alguns exemplos. Em Corinto o povo suportava penosamente a
dominação dos baquíadas; Cípselo, testemunha do ódio que o povo lhes
devotava, e vendo que este procurava um chefe que o conduzisse à
libertação, ofereceu-se para o cargo; o povo aceitou-o, constituiu-o tirano,
expulsou os baquíadas, e obedeceu a Cípselo(2). Mileto teve como tirano
certo Trasíbulo; Mitilene obedeceu a Pítaco, Samos a Polícrates. Encontramos
tiranos em Argos, em Epidauro, em Megara, em Cálcis, durante o século VI.
Sícion teve tiranos pelo espaço de cento e trinta anos ininterruptos(3). Entre
os gregos da Itália, vemos tiranos em Cumes, em Crotona, em Síbaris, por
toda parte. Em Siracusa, no ano de 485, a classe inferior tornou-se senhora da
cidade, e expulsou a classe aristocrática; mas ela nem pôde manter-se, nem
governar, e, ao fim de um ano, teve que escolher um tirano(4).
Por toda a parte esses tiranos, com mais ou menos violência, seguiam a
mesma política. Um tirano de Corinto pediu certo dia a um tirano de Mileto
conselhos para bem governar. Este, por única resposta, cortou as espigas de
trigo que se elevavam acima das outras. Assim, sua regra de conduta era
derrubar os que se distinguiam, e ferir a aristocracia apoiando-se no povo.
A plebe romana a princípio conspirou para restabelecer no trono a Tarquínio.
Tentou em seguida fazer tiranos, e lançou olhos sucessivamente sobre
Publícola, Espúrio Cássio e Mânlio. A acusação que o patriciado faz
freqüentemente àqueles dentre os seus que se tornam populares não deve ser
pura calúnia. O medo dos poderosos confirma os desejos da plebe.
Mas é necessário notar que, se o povo, na Grécia e em Roma, procurou
restaurar a monarquia, não o fez por preferir esse regime. Gostava tanto dos
tiranos quanto detestava a aristocracia, A monarquia era para ele um meio de
vencer e de se vingar; mas jamais esse governo, que se originara no direito da
força, e não se baseava em nenhuma tradição sagrada, lançou raízes no
coração dos povos. Escolhiam um tirano para as necessidades da luta;
deixavam-no depois no poder por reconhecimento ou por necessidade; mas,
passados alguns anos, e passada a lembrança da dura oligarquia, deixavam-no
cair. Essa forma de governo nunca atraiu os gregos; aceitaram-na apenas
como recurso passageiro, à espera de que o partido popular encontrasse
melhor regime, ou sentisse forças para governar-se a si próprio.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A classe inferior cresceu pouco a pouco. Há progressos que se realizam
obscuramente, e que, todavia, decidem o futuro de uma classe, e transformam
uma sociedade. Pelo sexto século antes de nossa era, a Grécia e a Itália viram
surgir uma nova fonte de riquezas. A terra não bastava mais às necessidades
do homem; o bom gosto dirigia-o para o belo e para o luxo; as artes nasciam,
e a indústria e o comércio tornaram-se necessários. Pouco a pouco constituiu
uma riqueza mobiliária, cunhou moedas, apareceu o dinheiro. Ora, a aparição
do dinheiro era uma grande revolução. O dinheiro não estava sujeito às
mesmas condições de propriedade que a terra; era, de acordo com expressão
do jurisconsulto, res nec mancipi; podia passar de mão em mão sem nenhuma
formalidade religiosa, e chegar sem obstáculo até o plebeu. A religião, que
marcara a propriedade, nada podia sobre o dinheiro.
Os homens das classes inferiores conheceram então outra ocupação, além do
cultivo da terra; apareceram os artesãos, os navegantes, os chefes de indústria,
os comerciantes; logo surgiram entre eles os primeiros ricos. Singular
novidade! Antes apenas os chefes das gentes podiam ser proprietários, e eis
que agora antigos clientes e plebeus ricos ostentam grande opulência. Além
disso, o luxo que enriquecia o homem do povo empobrecia o eupátrida; em
muitas cidades, principalmente em Atenas, viu-se parte dos membros do
corpo aristocrático cair na miséria. Ora, uma sociedade na qual a riqueza
muda de lugar, as classes não tardarão em fazer o mesmo.
Outra conseqüência dessa mudança foi que, no mesmo povo, estabeleceramse
distinções e categorias, como se faz necessário em qualquer sociedade
humana. Algumas famílias tornaram-se consideradas; alguns nomes pouco a
pouco foram adquirindo importância. Formou-se na plebe uma espécie de
aristocracia; não se tratava de um mal; a plebe deixava de ser massa confusa,
e começava a assemelhar-se a um corpo bem constituído. Possuindo classes
diversas, podia escolher chefes, sem ter mais necessidade de escolher entre os
patrícios o primeiro ambicioso que aparecesse com vontade de reinar. Essa
aristocracia popular mostrou bem cedo as qualidades que acompanham
ordinariamente a riqueza conquistada pelo trabalho, isto é, o sentimento do
valor pessoal, o amor de uma liberdade calma, e esse espírito de sabedoria
que, desejando progredir, teme as aventuras. A plebe deixou-se guiar por essa
elite, que constituía seu orgulho. Renunciou aos tiranos logo que sentiu
possuir em si os elementos capazes de melhor governar. Enfim, a riqueza
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tornou-se, por algum tempo, como veremos em seguida, um princípio de
organização social.
Há ainda uma transformação da qual devemos falar porque ajudou fortemente
a classe inferior a se elevar: é a que se deu com a arte militar. Nos primeiros
séculos da história das cidades a força dos exércitos estava na cavalaria. O
verdadeiro guerreiro era o que combatia sobre um carro, ou montado a cavalo;
o soldado de infantaria, pouco útil no combate, era pouco estimado. Por isso a
antiga aristocracia reservara para si, em toda parte, o direito do combater a
cavalo(5), e até em algumas cidades os nobres davam a si mesmos o título de
cavaleiros. Os celeres de Rômulo, os cavaleiros romanos dos primeiros
séculos, eram todos patrícios. Entre os antigos a cavalaria foi sempre o
exército nobre. Mas pouco a pouco a infantaria foi adquirindo importância. O
progresso na fabricação das armas e o aparecimento da disciplina permitiramlhe
resistir à cavalaria. Obtida essa vantagem, a infantaria logo tomou os
primeiros lugares nas batalhas, porque era mais maleável, e suas manobras
mais fáceis; os legionários e os hoplitas constituíram daí por diante a força
dos exércitos. Ora, legionários e hoplitas eram plebeus. Acrescente-se a isso
que a marinha progrediu, sobretudo na Grécia, que houve batalhas navais, e
que o destino de uma cidade ficou muitas vezes entre as mãos dos remeiros,
isto é, dos plebeus. Ora, a classe que é bastante forte para defender uma
sociedade o é também para conquistar direitos, e exercer sobre ela legítima
influência. O estado político e social de uma nação está sempre em relação
com a natureza e a composição política dos exércitos.
Enfim, a classe inferior conseguiu ter também sua religião. Aqueles homens
tinham no coração, podemos supor, o sentimento religioso, que é inseparável
de nossa natureza, e que nos faz sentir necessidade de adoração e de preces. A
plebe, portanto, sofria, por se ver afastada de religião pelo antigo princípio
que prescrevia que cada deus pertencia a uma família, e que o direito de rezar
não se transmitia senão com o sangue. Assim, trabalharam também para ter
um culto.
É impossível entrar aqui nos pormenores dos esforços que fizeram, dos meios
que imaginaram, das dificuldades ou recursos que se lhes apresentaram. Esse
trabalho, durante muito tempo individual, constituiu por muito tempo segredo
de cada inteligência, do qual somente podemos perceber os resultados. Às
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
vezes uma família plebéia constituía um lar, ou ousando acendê-lo por si
mesma, ou buscando em outros lugares o fogo sagrado; então passou a ter seu
culto, seu santuário, sua divindade protetora, à imagem da família patrícia.
Outras vezes o plebeu, sem possuir culto doméstico, teve acesso aos templos
da cidade; em Roma, os que não tinham lar, e, conseqüentemente, não tinham
festas domésticas, ofereciam seu sacrifício anual ao deus Quirino(6). Quando
a classe superior persistia em afastar de seus templos a classe inferior, esta
passou a edificar templos próprios; em Roma já possuía um sobre o Aventino,
consagrado a Diana, e o templo consagrado à pureza da plebe. Os cultos
orientais que, a partir do século sexto, invadiram a Grécia e a Itália, foram
acolhidos prazerosamente pela plebe; eram cultos que, como o budismo, não
faziam acepção nem de castas, nem de povos. Muitas vezes, enfim, viu-se a
plebe adotar objetos sagrados análogos aos deuses das cúrias e das tribos
patrícias. Assim o rei Sérvio levantou um altar em cada bairro, para que a
multidão tivesse ocasião de oferecer sacrifícios; do mesmo modo, os
pisistrátidos levantaram hermas nas ruas e praças de Atenas(7). Esses foram
os deuses da democracia. A plebe, outrora multidão sem culto, teve daí por
diante suas cerimônias religiosas e suas festas, podia rezar; era o bastante, em
uma sociedade em que a religião constituía a dignidade do homem.
Uma vez que a classe inferior conquistou esses diferentes progressos, quando
teve em seu meio pessoas ricas, soldados, sacerdotes, quando teve tudo o que
dá ao homem o sentimento de seu valor e de sua força, quando, enfim,
obrigou a classe superior a considerá-la como alguma coisa, então tornou-se
impossível mantê-la afastada da vida social e política, e a cidade não podia
continuar fechada para ela durante muito tempo.
A entrada dessa classe inferior na cidade é uma revolução que, do século
sétimo ou quinto, encheu toda a história da Grécia e da Itália. Os esforços do
povo por toda parte foram coroados de vitória, mas não da mesma maneira,
nem com os mesmos meios em toda parte.
Aqui o povo, quando se sentiu forte, insurgiu-se; com armas na mão, forçou
as portas da cidade, onde lhe era proibido morar. Uma vez conquistado o
poder, expulsou os grandes, ocupou suas casas, ou se contentou em decretar
igualdade de direitos. É o que se vê em Siracusa, em Eritréia, em Mileto.
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Algures, pelo contrário, o povo usou de meios menos violentos. Sem lutar a
mão armada, somente pela força moral que lhe davam seus mais recentes
progressos, obrigou os grandes a fazer concessões. Nomeou então um
legislador, e mudou-se a constituição. É o que se vê em Atenas.
Em outros lugares, a classe inferior, sem revoltas nem desordens, conquistou
gradualmente suas finalidades. Assim, em Cumes, o número dos membros das
cidades, a princípio muito restrito, cresce pela primeira vez, admitindo os
plebeus que eram bastante ricos para alimentar um cavalo. Mais tarde, elevouse
até mil o número dos cidadãos, chegando-se pouco a pouco à democracia
(8).
Em algumas cidades a admissão da plebe entre os cidadãos foi obra dos reis,
como aconteceu em Roma. Em outras, foi obra dos tiranos populares, como
aconteceu em Corinto, em Sícion, em Argos. Quando a aristocracia tornou a
conquistar o poder, teve ordinariamente a prudência de respeitar o título de
cidadão que os reis ou tiranos haviam dado à classe inferior. Em Samos, a
aristocracia não consegue vencer a luta contra os tiranos senão libertando as
classes mais humildes. Seria muito longo enumerar todas as formas sob as
quais essa grande revolução chegou ao fim. O resultado foi o mesmo por toda
parte: a classe inferior penetrou na cidade, e passou a fazer parte do corpo
político.
O poeta Teógnis nos dá idéia bastante nítida dessa revolução, e de suas
conseqüências. Ele nos diz que em Megara, sua pátria, há duas espécies de
homens. Chama uma de classe dos bons, aghathói; é este, com efeito, o nome
que essa classe dava a si mesma na maior parte das cidades gregas. À outra
chama de classe dos maus, kakói; é ainda com esse nome que se costumava
designar a classe inferior. Com essa classe, o poeta nos descreve sua antiga
condição: ela não conhecia outrora nem tribunais, nem leis; é o bastante
para dizer que ela não tinha direitos de cidadania. Nem era permitido a esses
homens aproximar-se da cidade; viviam fora, como animais selvagens. Não
participavam dos banquetes religiosos, nem tinham o direito de casar nas
famílias dos bons.
Mas como tudo isso mudou! Confundiram-se as classes, os maus foram
colocados acima dos bons. A justiça se transforma; não existem mais as
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
antigas leis, e leis de novidade estranha passaram a substituí-las. A riqueza
torna-se o único objeto dos desejos humanos, porque proporciona poder. O
homem de raça nobre casa-se com a filha do plebeu rico, e o casamento
confunde as raças.
Teógnis, descendente de família aristocrática, tenta em vão resistir ao destino.
Condenado ao exílio, despojado de seus bens, não tem nada mais, senão seus
versos, para protestar e combater. Mas se não espera ser bem sucedido, pelo
menos não duvida da justiça de sua causa; aceita a derrota, mas guarda o
sentimento de seus direitos. A seus olhos, a revolução que se fez é um mal
moral, um crime. Filho da aristocracia, parece-lhe que essa revolução não tem
a seu favor nem a justiça, nem os deuses, constituindo um atentado contra a
religião. Os deuses diz ele abandonaram a terra; ninguém mais os
teme. A raça dos homens piedosos desapareceu; ninguém mais se importa
com os imortais.
Lamentos inúteis, ele bem o sabe. Se assim se queixa, o faz por uma espécie
de dever piedoso, porque recebeu dos antigos a tradição sagrada, estando no
dever de perpetuá-la. Mas em vão: a própria tradição deve dobrar-se, os filhos
dos nobres vão esquecer sua nobreza; logo os veremos unindo-se pelo
casamento às famílias plebéias, bebendo em suas festas, comendo em suas
mesas; logo passarão também a adotar seus sentimentos. Nos tempos de
Teógnis, a nostalgia é tudo o que resta à aristocracia grega, e até essa
nostalgia logo vai desaparecer.
Com efeito, depois de Teógnís, a nobreza não passava de simples lembrança.
As grandes famílias continuaram a observar piedosamente o culto doméstico e
a memória dos antepassados; mas isso era tudo. Havia ainda homens que se
divertiam contando seus antepassados, mas eram ridicularizados(9).
Conservou-se o costume de inscrever sobre algum túmulo que o morto era de
raça nobre, mas não se fez nenhuma tentativa para reerguer um regime para
sempre destronado. Isócrates diz, com verdade, que em seu tempo as grandes
famílias de Atenas só existiam nos túmulos.
Desse modo a cidade antiga foi-se transformando gradativamente. Em sua
origem era uma associação de uma centena de chefes de família. Mais tarde o
número de cidadãos cresceu, porque os ramos mais novos conseguiram
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
igualdade com os mais velhos. Mais tarde ainda, os clientes libertos, a plebe,
toda aquela multidão que durante séculos ficara fora da associação religiosa e
política, às vezes mesmo fora do recinto sagrado da cidade, derrubou as
barreiras que se lhe opunham, e entrou na cidade, onde logo se tornou senhora.
2.° História dessa revolução em Atenas
Os eupátridas, depois da queda da realeza, governaram Atenas durante quatro
séculos. A história nada nos diz a respeito desse longo domínio; sabemos
apenas uma coisa: que foi odioso às classes inferiores, e que o povo se
esforçou para se livrar desse regime.
Pelo ano de 612, o descontentamento geral, e os sinais certos que anunciavam
revolução próxima, despertaram a ambição de um eupátrida, Cílon, que
pensou em derrubar o governo de sua casta, e tornar-se tirano popular. A
energia dos arcontes fez abortar sua tentativa, mas a agitação continuou ainda
depois dele. Em vão os eupátridas lançaram mão de todos os recursos da
religião. Em vão afirmaram que os deuses estavam irritados, e que
começavam a aparecer fantasmas. Em vão purificaram a cidade de todos os
crimes do povo, levantando dois altares à Violência e à Insolência, para
apaziguar essas duas divindades, cuja influência maligna havia perturbado os
espíritos(10). Tudo isso de nada serviu. Os sentimentos de ódio não se
abrandaram. Mandaram vir de Creta o piedoso Epimênides, personagem
misterioso, que se dizia filho de uma deusa; fizeram-no celebrar uma série de
cerimônias expiatórias, na esperança de que, impressionando assim a
imaginação do povo, reavivasse a religião, e fortificasse, conseqüentemente, a
aristocracia. Mas o povo não se comoveu; a religião dos eupátridas não tinha
mais prestígio sobre sua alma, e continuaram a reclamar reformas.
Durante dezesseis anos ainda a oposição feroz dos pobres da montanha e a
oposição paciente dos ricos do litoral fizeram rude guerra aos eupátridas. Por
fim, todos os homens prudentes dos três partidos concordaram em confiar a
Sólon o cuidado de terminar com essas querelas, prevenindo-se contra males
maiores. Sólon tinha a rara fortuna de pertencer ao mesmo tempo aos
eupátridas, pelo nascimento, e aos comerciantes, por suas ocupações da
mocidade. Suas poesias no-lo mostram como homem completamente livre dos
preconceitos de sua casta; por seu espírito conciliador, por seu gosto pela
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riqueza e pelo luxo, por seu amor ao prazer, está muito distanciado dos
antigos eupátridas, e pertence à nova Atenas.
Dissemos acima que Sólon começara por libertar a terra da velha dominação
que a religião das famílias eupátridas exercera sobre ela. Sólon quebrou os
grilhões que prendiam a clientela. Tal mudança na ordem social acarretava
outra na ordem política. Era necessário que as classes inferiores tivessem dali
por diante, segundo expressão do próprio Sólon, um escudo para defender sua
recente liberdade. Esse escudo eram os direitos políticos.
Muito nos falta para conhecer claramente a constituição de Sólon; parece,
pelo menos, que todos os atenienses passaram desde essa época a fazer parte
da assembléia do povo, e que o senado não era mais composto apenas de
eupátridas; parece mesmo que os arcontes poderiam ser nomeados fora da
antiga casta sacerdotal. Essas grandes inovações revolucionaram todas as
antigas regra da cidade. Sufrágios, magistraturas, sacerdócios, direção da
sociedade, tudo isso o eupátrida devia dividir com homem da classe inferior.
Na nova constituição não eram tidos em nenhuma consideração os direitos de
nascimento; ainda existiam classes, mas não se distinguiam senão pela riqueza
(11). Desde essa época a dominação dos eupátridas desapareceu. O eupátrida
não era mais nada, a não ser que fosse rico; valia pela riqueza, e não pelo
nascimento. Daí por diante o poeta já podia dizer: Na pobreza o homem
nobre não é mais nada; e o povo aplaudia no teatro este dito cômico: Qual o
nascimento deste homem? Rico; hoje são estes os nobres(12).
O regime que assim se constituíra tinha duas espécies de inimigos: os
eupátridas, que lamentavam os privilégios perdidos, e os pobres, que ainda
continuavam a sofrer pela desigualdade.
Apenas Sólon acabara de terminar sua obra, recomeçou a agitação. Os
pobres mostraram-se diz Plutarco cruéis inimigos dos ricos. O novo
governo desagradava-lhes talvez quase tanto quanto o dos eupátridas. Aliás,
vendo que eupátridas podiam ainda ser arcontes e senadores, muitos
imaginavam que a revolução não havia sido completa. Sólon mantivera as
formas republicanas; ora, o povo sentia ainda ódio irrefletido contra essas
formas de governo, sob as quais não vira, durante quatro séculos, nada além
do reinado da aristocracia. Seguindo o exemplo de muitas cidades gregas,
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desejou um tirano.
Pisístrato, descendente dos eupátridas, mas visando satisfazer ambições
pessoais, prometeu aos pobres uma divisão de terras, e conseguiu seu apoio.
Um dia aparece na assembléia, e, pretendendo que o haviam ferido, pede que
lhe dêem uma guarda pessoal. Os homens das primeiras classes iam responderlhe,
e desvendar sua mentira, mas a plebe estava preparada para lutar em
defesa de Pisístrato, provocando a desordem e a fuga dos ricos.
Assim, um dos primeiros atos da assembléia popular recentemente instituída
foi ajudar um homem a se tornar senhor da pátria(13).
Não parece, aliás, que o reinado de Pisístrato tenha causado algum entrave ao
desenvolvimento dos destinos de Atenas. Teve, pelo contrário, como principal
efeito, assegurar e garantir contra a reação uma grande reforma social e
política, que acabava de se realizar(14).
O povo não se mostrou ainda desejoso de restabelecer a liberdade: duas vezes
a coalizão dos grandes e dos ricos derrubou Pisístrato; duas vezes ele
reconquistou o poder; seu filho mais velho reinou em Atenas depois de sua
morte. Foi necessária a intervenção de um exército espartano na Ática para
fazer cessar o domínio dessa família(15).
A antiga aristocracia teve por momentos esperanças de se aproveitar da queda
dos pisistrátidas para readquirir seus privilégios. Não somente não o
conseguiu, mas recebeu o mais rude golpe de todos os que sofrera. Clístenes,
nascido nessa classe, mas de família que a aristocracia cobria de opróbrios, e
parecia renegar há três gerações, encontrou meios para tirar-lhe para sempre o
que lhe restava ainda de força(16). Sólon, ao mudar a constituição política,
deixara subsistir toda a velha organização religiosa da sociedade ateniense. A
população continuava dividida em duzentas ou trezentas gentes, em doze
fratrias, em quatro tribos. Em cada um desses grupos possuía ainda, como na
época precedente, um culto hereditário, um sacerdote eupátrida, um chefe, que
era o próprio sacerdote. Tudo isso eram restos de um passado que tentava
subsistir, perpetuando assim as tradições, os costumes, as regras, as distinções
que haviam reinado no antigo estado social. Essas categorias haviam sido
estabelecidas pela religião, e, por sua vez, mantinham a religião, isto é, o
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poder das grandes famílias. Em cada uma dessas categorias havia duas classes
de homens: de uma parte os eupátridas, que possuíam hereditariamente o
sacerdócio e a autoridade; de outra os homens de condição inferior, que não
eram mais nem servos, nem clientes, mas que ainda se achavam ligados à
autoridade dos eupátridas pela religião. Em vão a lei de Sólon dizia que todos
os atenienses eram livres. A antiga religião apoderava-se do homem ao sair da
assembléia, onde havia votado livremente, e lhe dizia: Estás ligado a um
eupátrida pelo culto; deves-lhe respeito, deferência, submissão; como membro
da cidade, Sólon te fez livre, mas como membro da tribo, deves obediência a
um eupátrida; como membro de uma fratria, tens ainda um eupátrida como
chefe. Na própria família, na gens onde nasceram teus antepassados, e da qual
não podes sair, encontras ainda a autoridade de um eupátrida. De que
adiantava a lei política fazer desse homem um cidadão, se a religião e os
costumes persistiam em conservá-lo como cliente? É verdade que há várias
gerações muitos homens se encontravam fora dessas categorias, ou porque
viessem de países estrangeiros, ou porque houvessem escapado da gens e das
tribos para serem livres. Mas esses homens sofriam de outra maneira; postos à
margem das tribos, achavam-se em estado de inferioridade moral em relação
aos outros homens, e uma espécie de ignomínia ligava-se a sua independência.
Havia ainda, depois da reforma política de Sólon, uma outra reforma a ser
feita no domínio da religião. Clístenes realizou-a, substituindo as quatro
antigas tribos religiosas por dez novas tribos, que eram divididas em certo
número de demos(17).
Essas tribos e demos assemelharam-se aparentemente a antigas tribos e
gentes. Em cada uma dessas circunscrições houve um culto, um sacerdote, um
juiz, reuniões para as cerimônias religiosas, assembléias para deliberar sobre
interesses comuns(18). Mas os novos grupos diferenciaram-se dos antigos em
dois pontos essenciais. Em primeiro lugar, todos os homens livres de Atenas,
mesmo os que não haviam feito parte das antigas tribos e gentes, foram
repartidos entre os quadros formados por Clístenes(19), grande reforma que
dava um culto àqueles que ainda não o possuíam, e que fazia entrar para uma
associação religiosa aqueles que antes estavam excluídos de toda e qualquer
associação. Em segundo lugar, os homens foram distribuídos em tribos e
demos não mais de acordo com o nascimento, como outrora, mas de acordo
com o domicílio. O nascimento deixou de ser considerado; os homens
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
tornaram-se iguais, e acabaram-se os privilégios. O culto, para cuja celebração
se reunia a nova tribo ou demo não era mais o culto hereditário de uma antiga
família; não se reuniam mais ao redor do lar de um eupátrida. Não era mais
um antigo eupátrida que a tribo ou o demo venerava como antepassado
divino; as tribos tiveram novos heróis epônimos, escolhidos entre os
personagens antigos, dos quais o povo conservara boa recordação; quanto aos
demos, adotaram uniformemente por deuses protetores a Zeus, protetor do
domicílio, e a Apolo paternal. Desde então não havia mais razão para que o
sacerdócio fosse hereditário, como o fora na gens; também não havia mais
razão para que o sacerdote fosse sempre eupátrida. Nos novos grupos, a
dignidade de sacerdote e de chefe tornou-se anual, e cada membro pôde
exercê-la sucessivamente.
Foi essa reforma que acabou de derrubar a aristocracia dos eupátridas. A
partir desse momento, não houve castas religiosas, nem privilégios de
nascimento na religião ou na política. A sociedade ateniense estava
completamente transformada(20).
Ora, a supressão das antigas tribos, substituídas por novas, na qual todos os
homens tinham acesso, e eram iguais, não é fato particular da história de
Atenas. A mesma mudança aconteceu em Cirene, em Sícion, em Eléia, em
Esparta e, provavelmente, em muitas outras cidades gregas(21). De todos os
meios próprios para enfraquecer a antiga aristocracia, Aristóteles não viu
nenhum mais eficaz que esse. Se se quiser fundar a democracia diz ele
é necessário fazer o que fez Clístenes entre os atenienses: estabelecer-se-ão
novas tribos e novas fratrias; os sacrifícios hereditários das famílias serão
substituídos por sacrifícios onde todos os homens serão admitidos; tanto
quanto possível, as relações dos homens entre si devem confundir-se, tendo-se
o cuidado de extinguir todas as associações anteriores(22).
Realizada essa reforma em todas as cidades, pode-se afirmar que o antigo
molde da velha sociedade está destruído, e que se forma novo corpo social.
Essa mudança nas categorias que a antiga religião hereditária havia
estabelecido, e que declarava imutáveis, marca o fim do regime religioso da
cidade.
3.° História dessa revolução em Roma
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A plebe em Roma logo teve grande importância. A situação da cidade entre
latinos, sabinos e etruscos condenava-a a perpétua guerra, e a guerra exigia
que sua população fosse numerosa. Por isso os reis acolheram a todos os
estrangeiros, sem dar importância às suas origens. As guerras sucediam-se
ininterruptamente, e, como havia necessidade de homens, o resultado mais
ordinário de cada vitória era tirar da cidade vencida a população a fim de
transferi-la para Roma. Que acontecia a esses homens, levados juntamente
com os despojos? Se entre eles encontravam-se famílias sacerdotais ou
patrícias, o patriciado apressava-se em chamá-la para seu meio. Quanto aos
demais, parte ingressava na clientela dos grandes ou do rei, parte era relegada
para a plebe.
Outros elementos ainda entravam na composição dessa classe. Muitos
estrangeiros afluíam a Roma, como lugar que, por sua situação, era propício
ao comércio. Os descontentes de Sabina, da Etrúria, do Lácio aí encontravam
refúgio, e todos entravam para a plebe. O cliente que conseguia escapar da
gens também se tornava plebeu. O patrício que contraía matrimônio com
pessoa de classe inferior, ou que cometia um daqueles crimes que causavam
infâmia, também passava a fazer parte da plebe. Todos os bastardos eram
rejeitados pela religião das famílias puras, e relegados para a plebe.
Por todas essas razões, a plebe aumentava de número. A luta que se travava
entre patrícios e reis tomou maior importância. Realeza e plebe logo sentiram
que tinham os mesmos inimigos. A ambição dos reis era libertar-se dos velhos
princípios de governo, que entravavam o exercício do poder. A ambição da
plebe era destruir as barreiras que a excluíam da associação religiosa ou
política. Estabeleceu-se uma aliança tácita: os reis protegiam a plebe, e a
plebe sustentava os reis.
As tradições e testemunhos da antiguidade colocam sob o reinado de Sérvio
os primeiros progressos dos plebeus. O ódio que os patrícios conservaram por
esse rei mostra suficientemente qual era sua política. Sua primeira reforma foi
dar terras à plebe, é verdade que não no ager romamus, mas em territórios
tomados ao inimigo; mas nem por isso deixava de ser uma inovação grave
conferir assim o direito de propriedade a famílias que até então só podiam
cultivar terras alheias(23).
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O que foi ainda mais grave foram as leis que promulgou em favor da plebe,
coisa que jamais existira antes. Essas leis, em sua maior parte, diziam respeito
às obrigações que o plebeu podia contrair com os patrícios. Era um início de
direito comum entre as duas ordens, e, para a plebe, um começo de igualdade
(24).
Depois, esse mesmo rei estabeleceu nova divisão na cidade. Sem destruir as
três antigas tribos, nas quais as famílias patrícias e os clientes estavam
repartidos de acordo com o nascimento, Sérvio formou quatro tribos novas,
onde toda a população estava distribuída de acordo com o domicílio. Vimos
essa reforma em Atenas, e consideramos seus efeitos, que foram idênticos em
Roma. A plebe, que não entrava nas antigas tribos, foi admitida nas tribos
novas(25). Aquela multidão, até então flutuante, espécie de população
nômade, que não tinha vínculo algum com a cidade, teve de aí por diante
divisões fixas e organização regular. A formação dessas tribos, onde as duas
ordens estavam misturadas, marca verdadeiramente a entrada da plebe na
cidade. Cada tribo teve um lar e sacrifícios; Sérvio estabeleceu os deuses lares
em cada esquina da cidade, em cada circunscrição do campo. Eles serviram de
divindades para os que não as tinham por nascimento. O plebeu celebrou as
festas religiosas do bairro e do burgo (compitalia, paganalia), como o patrício
celebrava os sacrifícios da gens e da cúria. O plebeu teve assim uma religião.
Ao mesmo tempo introduziu-se grande mudança na cerimônia sagrada da
lustração. O povo não foi mais dividido por cúrias, com exclusão dos que não
eram nelas aceitos. Todos os habitantes livres de Roma, todos os que faziam
parte das novas tribos, passaram a figurar no ato sagrado. Pela primeira vez,
todos os homens, sem distinção de patrícios, clientes ou plebeus, foram
reunidos. O rei deu a volta ao redor dessa assembléia heterogênea,
conduzindo as vítimas e cantando um hino solene. Terminada a cerimônia,
todos passaram a ser cidadãos.
Antes de Sérvio, não se distinguiam em Roma mais que duas espécies de
homens: a casta sacerdotal dos patrícios, com seus clientes, e a classe dos
plebeus. Não se conhecia nenhuma outra distinção que a da religião
hereditária. Sérvio determinou nova divisão, que tinha por princípio a riqueza.
Dividiu os habitantes de Roma em duas grandes categorias: numa estavam os
que possuíam alguma coisa, noutra os que não tinham nada. A primeira
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dividiu-se em cinco classes, nas quais os homens foram repartidos de acordo
com o que possuíam(26). Sérvio introduziu assim um princípio absolutamente
novo na sociedade romana: a riqueza passava a determinar as classes, como o
fizera a religião.
Sérvio aplicou essa divisão da população romana ao serviço militar. Antes
dele os plebeus só combatiam fora das fileiras da legião. Mas, como Sérvio
transformara-os em proprietários e cidadãos, podia também torná-los
legionários. A partir de então o exército não se compôs unicamente dos
homens das cúrias: todos os homens livres, todos os que, pelo menos,
possuíam alguma coisa passaram a fazer parte das legiões; somente os
proletários continuaram a ser excluídos. Não foi mais a categoria de patrício
ou de cliente que determinava as armas de cada soldado, e seu lugar na
batalha; o exército era dividido por classes, exatamente como a população, de
acordo com as posses de cada um. A primeira classe, que tinha armadura
completa, e as duas seguintes, que tinham pelo menos escudo, elmo e espada,
formaram as três primeiras linhas da legião. A quarta e a quinta, ligeiramente
armadas, compunham os corpos dos vélites e dos fundibulários. Cada classe
dividia-se em companhias, chamadas centúrias. A primeira compreendia,
segundo se diz, oitenta centúrias; as outras quatro, vinte e três cada uma. A
cavalaria ficava separada, e também nesse ponto Sérvio fez grande inovação:
enquanto, até então, somente os jovens patrícios compunham as centúrias de
cavaleiros, Sérvio admitiu certo número de plebeus, escolhidos dentre os mais
ricos, para combater a cavalo, formando doze novas centúrias.
Ora, não se podia tocar no exército sem se tocar ao mesmo tempo na
constituição política. Os plebeus sentiram que seu valor no Estado crescera;
tinham armas, disciplina, chefes; cada centúria tinha seu centurião, e uma
insígnia sagrada. Essa organização militar era permanente; a paz não a
dissolvia. É verdade que ao voltar de alguma campanha os soldados
abandonavam as fileiras, pois, a lei proibia entrar na cidade incorporados. Mas
depois, ao primeiro sinal, os cidadãos dirigiam-se armados para o campo de
Marte, onde cada um reencontrava sua centúria. Ora, aconteceu que, vinte e
cinco anos depois de Sérvio Túlio, pensou-se em convocar o exército sem ser
para um empreendimento militar. Reunido o exército, cada centúria, com seu
centurião à frente, e ostentando sua bandeira, o magistrado falou, consultou, e
fez votar(27). As seis centúrias de patrícios e os doze cavaleiros plebeus
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votaram antes, seguidos pelas centúrias de infantaria de primeira classe, e
pelas demais. Assim se estabeleceu, depois de pouco tempo, a assembléia
centuriata, onde todos os soldados tinham direito ao voto, e onde quase não se
distinguia mais o plebeu do patrício(28).
Todas essas reformas mudavam singularmente o aspecto da cidade romana. O
patriciado continuava de pé, com seus cultos hereditários, suas cúrias, seu
senado. Mas os plebeus adquiriam o hábito da independência, riqueza, armas,
religião. A plebe não se confundia com o patriciado, mas crescia a seu lado.
É verdade que o patriciado vingou-se. Começou por assassinar a Sérvio; mais
tarde, expulsou a Tarquínio. Juntamente com a realeza, a plebe foi vencida.
Os patrícios esforçaram-se por privá-los de todas as conquistas obtidas sob o
domínio dos reis. Um de seus primeiros atos foi tirar aos plebeus as terras que
Sérvio lhes havia dado, e se pode notar que o único motivo alegado para fazêlo
foi sua condição de plebeus(29). O patriciado tornava a pôr em vigor o
antigo princípio de que a religião hereditária era a única base do direito de
propriedade, e que não permitia que o homem sem religião e sem
antepassados pudesse exercer direitos sobre o solo.
As leis que Sérvio havia promulgado para a plebe também lhes foram tiradas.
Se não se aboliu o sistema de classes e a assembléia centuriata, foi porque as
guerras não permitiam desorganizar o exército, e, depois, porque souberam
rodear esses comícios de tais formalidades, que o patriciado era o senhor das
eleições. Não ousaram tirar aos plebeus o título de cidadãos, deixando que
continuassem a figurar no censo. Mas é claro que o patriciado, permitindo que
a plebe fizesse parte da cidade, não dividiu com elas nem os direitos políticos,
nem a religião, nem as leis. De nome, a plebe continuou na cidade; de fato, foi
excluída.
Não acusemos injustamente os patrícios, e não vamos supor que eles tenham
friamente concebido o desígnio de oprimir e esmagar a plebe. O patrício, que
descendia de família sagrada, e se sentia herdeiro do culto, não compreendia
outro regime social além do que a antiga religião havia traçado. A seus olhos,
o elemento constitutivo de toda sociedade era a gens, com seu culto, seu chefe
hereditário, sua clientela. Para o patrício a cidade não podia ser outra coisa
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que a reunião dos chefes das gentes. Não podia conceber outro sistema
político além do que se baseava no culto, outros magistrados além dos que
realizavam os sacrifícios públicos, outras leis além daquelas cujas fórmulas
sagradas eram ditadas pela religião. Não seria necessário objetar-lhe que
também os plebeus, desde há pouco, tinham uma religião, faziam sacrifícios
aos lares das esquinas, porque o patrício responderia que o culto deles não
tinha o caráter essencial da verdadeira religião, que não era hereditário, que
aqueles lares não tinham fogo antigo, e que aqueles deuses lares não eram
verdadeiros antepassados. E o patrício acrescentaria ainda que os plebeus,
adotando um culto, haviam feito o que não tinham o direito de fazer; que para
fazê-lo, haviam violado todos os princípios; que não haviam adotado senão as
exterioridades do culto, suprimindo o que havia de essencial, que era a
hereditariedade; e que, enfim, seu simulacro de religião era absolutamente o
oposto da religião verdadeira.
Desde que o patrício se obstinava em pensar que somente a religião
hereditária devia governar os homens, resultava daí que não via governo
possível para a plebe. O patrício não concebia que o poder social pudesse ser
exercido sobre aquela classe de homens. A lei sagrada não podia aplicar-se a
eles; a justiça era um terreno santo, que lhes era interditado. Enquanto houve
reis, estes tomaram sobre si o encargo de governar o povo, e o fizeram de
acordo com certas regras, que nada tinham em comum com a antiga religião, e
que a necessidade ou o interesse público inventara. Mas, pela revolução que
havia expulso os reis, a religião retomara o poder, fazendo com que,
automaticamente, toda a classe dos plebeus fosse excluída de todas as leis
sociais.
O patriciado então formou um governo conforme seus princípios, mas não
pensou em estabelecer um para a plebe. Não tinha coragem de expulsá-la de
Roma, mas não encontrou meios de constituí-la em sociedade regular. Viamse
por isso no meio de Roma milhares de famílias para as quais não existiam
leis fixas, ordem social, magistraturas. A cidade, o populus, isto é, a sociedade
patrícia, com os clientes que ainda lhe restavam, levantava-se poderosa,
organizada, majestosa. A seu redor vivia a multidão de plebeus, que não era
um povo, e não constituía um corpo. Os cônsules, chefes da cidade dos
patrícios, mantinham a ordem material em meio àquela população confusa; os
plebeus obedeciam; fracos, geralmente pobres, dobravam-se sob a força das
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famílias patrícias.
O problema, cuja solução devia decidir o futuro de Roma, era este: como
fazer da plebe uma sociedade regular?
Ora, o patriciado, dominado pelos princípios rigorosos da religião, não via
senão um meio de resolver esse problema: fazer a plebe entrar, por meio da
clientela, nos quadros sagrados das gentes. Deve ter havido alguma tentativa
nesse sentido. A questão das dívidas, que agitou Roma por essa época, não se
pode explicar pela pendência bem mais grave que havia entre a clientela e a
escravidão. A plebe romana, despojada de suas terras, não podia mais viver.
Os patrícios calcularam que, com o sacrifício de algum dinheiro, a fariam cair
em seus laços. O homem da plebe fazia empréstimos, escolhia credores,
ligava-se a eles por uma espécie de operação, que os romanos chamavam
nexum. Era uma espécie de venda que se fazia per aes et libram, isto é, com a
formalidade solene que se usava comumente para conferir a um homem o
direito de propriedade sobre um objeto(30). É verdade que o plebeu tomava
suas garantias contra a servidão; por uma espécie de contrato fiduciário,
estipulava conservar sua categoria de homem livre até o dia do vencimento, e
que nesse dia retomaria posse de si mesmo pagando a dívida. Mas, chegado
esse dia, se a dívida não fosse paga, o plebeu perdia o benefício de seu
contrato. Tornando-se addictus, ficava à disposição do credor, que o levava
para casa e fazia dele seu escravo. Em tudo isso o patrício não julgava fazer
nada de desumano, pois, o ideal da sociedade para ele era a gens, e não via
nada mais legítimo e mais belo do que conduzir os homens para esse estado,
não importava por que meios. Se seu plano obtivesse êxito, a plebe
desapareceria em pouco tempo, e a cidade romana teria apenas a associação
das gentes patrícias, dividindo entre si a multidão de clientes.
Mas essa clientela era uma corrente da qual o plebeu tinha horror, e debatia-se
contra o patrício, o qual, armado de seu crédito, queria fazê-lo cair. A
clientela era para ele o correspondente da escravidão; a missão do patrício a
seus olhos era uma prisão (ergastulum). Muitas vezes o plebeu, levado pela
mão do patrício, implorou a ajuda de seus semelhantes, e amotinou a plebe,
declarando que era homem livre, e mostrando como prova as feridas que
havia recebido nos combates em defesa de Roma. A manobra dos patrícios só
conseguiu irritar a plebe. Ela viu o perigo, desejou ardentemente sair daquele
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estado precário, em que a queda do governo real a colocara, e quis ter leis e
direitos.
Mas não parece que a princípio os homens tenham desejado participar das leis
e direitos dos patrícios. Talvez acreditassem, como os próprios patrícios, que
não podia haver nada em comum entre as duas ordens. Ninguém pensava em
igualdade política e civil. Nem plebeus, nem patrícios imaginavam que ambos
pudessem estar à mesma altura. Longe, portanto, de reclamar igualdade de
direitos e de leis, aqueles homens pareciam preferir a princípio uma separação
completa. Em Roma não encontravam remédio para seus sofrimentos, e não
viram senão um meio para sair de sua inferioridade: afastar-se de Roma.
O historiador antigo retrata bem seu pensamento quando lhes atribui esta
frase: Já que os patrícios querem possuir sozinhos a cidade, que fiquem à
vontade. Para nós, Roma nada significa. Lá não temos nem lares, nem
sacrifícios, nem pátria. Só deixamos uma cidade estrangeira; nenhuma
religião hereditária liga-nos a ela. Qualquer terra para nós é boa; lá
encontraremos liberdade, lá será nossa pátria(31). E foram estabelecer-se
sobre o monte Sagrado, fora dos limites do ager romanus.
Em presença de tal ato, o senado dividiu-se em várias opiniões. Os mais
ardentes dos patrícios deixaram ver que a partida da plebe estava longe de
afligi-los. Agora os patrícios ficariam sozinhos em Roma, com os clientes,
que ainda lhes eram fiéis. Roma renunciaria à sua futura grandeza, mas o
patriciado continuaria como senhor. Não teriam mais que se preocupar com a
plebe, à qual não podiam aplicar as regras ordinárias de governo, e que
constituía um embaraço para a cidade. Podiam tê-la expulsado quando haviam
expulsado os reis; desde que ela tomara por si a decisão de se afastar, deviam
deixá-la fazer o que quisesse, e alegrarem-se por isso.
Mas outros, menos fiéis aos velhos princípios, ou mais desejosos da grandeza
de Roma, afligiram-se com o afastamento da plebe. Roma perdia a metade dos
soldados. Que aconteceria a ela, em meio de latinos, sabinos e etruscos, todos
inimigos? Esses senadores queriam, portanto, que a preço de alguns
sacrifícios, cujas conseqüências talvez não podiam prever totalmente, se
trouxessem de volta para a cidade aqueles milhares de braços, que constituíam
a força de suas legiões.
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Por outra parte, a plebe percebeu, ao cabo de poucos meses, que não podia
viver sobre o monte Sagrado. Ali podia muito bem conseguir o que lhe era
materialmente necessário para a existência, mas faltava-lhe tudo o que
constituía uma sociedade organizada. Não podia fundar lá uma cidade, porque
não possuía sacerdotes capazes de realizar a cerimônia religiosa da fundação.
Não podia eleger magistrados, porque não possuía um pritaneu acendido de
acordo com as regras, onde o magistrado pudesse oferecer sacrifícios. Não
podia encontrar o fundamento das leis sociais, porque as únicas leis de que
tinha idéia derivavam da religião dos patrícios. Em uma palavra, a plebe não
tinha em si os elementos de uma cidade. Logo viu que, para ser mais
independente, não era mais feliz, e não formava uma sociedade mais regular
que em Roma, e que assim o problema, cuja resolução tanto lhe importava,
continuava sem solução. De nada lhe adiantava afastar-se de Roma; não era
no isolamento do monte Sagrado que poderia encontrar as leis e direitos a que
aspirava.
Aconteceu então que plebe e patriciado, sem nada ter em comum, não podiam
todavia viver um sem o outro. Tornaram a se reconciliar, e fizeram um tratado
de aliança. Esse tratado parece que foi celebrado da mesma forma que os que
se faziam no término das guerras entre dois povos; plebe e patriciado não
eram, com efeito, nem um mesmo povo, nem uma mesma cidade(32). Por
esse tratado o patriciado não deixou que a plebe fizesse parte da cidade
religiosa e política; parece até que esta não o exigiu. Combinou-se apenas que
a plebe de ali em diante, constituída em sociedade quase regular, teria chefes
escolhidos entre seus próprios membros(33). É esta a origem do tribunado da
plebe, instituição completamente nova, e que não se assemelha a nada do que
as cidades haviam conhecido até então.
O poder do tribuno não era da mesma natureza que a autoridade do
magistrado; não derivava do culto da cidade. O tribuno não oficiava nenhuma
cerimônia religiosa; era eleito sem auspícios, sem necessidade do
assentimento dos deuses(34). Não tinha cadeira curul, nem manto de púrpura,
nem coroa de louros, nem nenhuma das insígnias que em todas as cidades
antigas designavam à veneração dos homens os verdadeiros magistrados
romanos(35).
Qual era, portanto, a natureza e o princípio de seu poder? É necessário aqui
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afastar todas as idéias e todos os costumes modernos, e transportar-nos, tanto
quanto possível, ao meio das crenças dos antigos. Até então os homens não
haviam compreendido a autoridade senão como apêndice do sacerdócio.
Quando, portanto, quiseram estabelecer um poder desligado do culto, e chefes
que não fossem sacerdotes, tiveram de imaginar um singular subterfúgio. Para
tanto, no dia em que criaram os primeiros tribunos, realizou-se uma cerimônia
religiosa de caráter particular(36). Os historiadores não descrevem seus ritos;
dizem apenas que essa cerimônia teve por efeito tornar aqueles primeiros
tribunos sacrossantos. Não tomemos esse termo em sentido figurado e vago.
A palavra sacrossanto designava algo bem preciso na linguagem religiosa dos
antigos. Aplicava-se aos objetos que eram dedicados aos deuses, e que, por
essa razão, o homem não podia tocar. Não era a dignidade do tribuno que era
declarada honrosa e santa; era a pessoa, era o próprio corpo do tribuno(37)
que era posto em tal relação com os deuses, que deixava de ser coisa profana,
para se tornar objeto sagrado. Desde então, nenhum homem podia atacá-lo
sem cometer crime de violação, e sem incorrer em culpa, ághei énochos einãi
(38).
Plutarco conta-nos, a esse respeito, um estranho costume: parece que, quando
alguém se encontrava com um tribuno em público, a regra religiosa exigia que
se purificasse, como se esse encontro significasse impureza(39), costume que
alguns devotos ainda observavam nos tempos de Plutarco, e que nos dá
alguma idéia da maneira pela qual encaravam o tribunado cinco séculos antes.
Esse caráter sacrossanto continuava ligado ao corpo do tribuno durante toda a
duração de suas funções; depois, criando seu sucessor, ele lhe transmitia esse
caráter, exatamente como o cônsul, criando outros cônsules, passava-lhes os
auspícios e o direito de realizar os ritos sagrados Em 449, interrompendo-se o
tribunado por dois anos, foi necessário, para estabelecer novos tribunos,
renovar a cerimônia religiosa que havia sido celebrada sobre o monte Sagrado.
Não conhecemos bastante bem as idéias dos antigos para afirmar se esse
caráter sacrossanto tornava a pessoa do tribuno digna de honra aos olhos dos
patrícios, ou se, pelo contrário, tornava-a objeto de horror ou de maldição.
Essa segunda conjectura é mais provável, pelo menos nos primeiros tempos.
O que é certo é que, de toda maneira, o tribuno era inviolável, e a mão do
patrício não podia tocá-lo, sem se tornar culpado de grave impiedade.
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Uma lei confirmou e garantiu essa inviolabilidade, declarando que ninguém
podia violentar um tribuno, nem atacá-lo, nem matá-lo. E acrescentou que o
que fizesse uma dessas ações na presença do tribuno seria impuro, seus bens
seriam confiscados em proveito do templo de Ceres, e podia ser morto
impunemente(40). E terminava por esta fórmula, cuja imprecisão muito
contribuiu para o progresso futuro do tribunado: Nem o magistrado, nem o
cidadão têm direito de fazer o que quer que seja contra o tribuno(41).
Todos os cidadãos pronunciaram um juramento sobre as coisas sagradas,
pelo qual obrigavam-se a observar sempre essa estranha lei, e cada um recitou
uma fórmula de oração, pela qual chamava sobre si a cólera dos deuses caso
violasse a lei, acrescentando que quem quer que se tornasse culpado de
atentado contra um tribuno manchava-se da mais negra das impurezas(42).
Esse privilégio de inviolabilidade estendia-se até onde o corpo do tribuno
podia estender sua ação direta. Um plebeu era maltratado por um cônsul, que
o condenava à prisão, ou por um credor, que se apoderava dele; o tribuno
aparecia, colocava-se entre os dois (intercessio), e detinha a mão patrícia.
Quem ousaria fazer algo contra um tribuno, ou expor-se a ser tocado por
ele?
Mas o tribuno não exercia esse poder singular senão onde podia estar
presente. Longe dele, os plebeus podiam ser maltratados. Não tinha ação
nenhuma sobre o que se passava fora do alcance de suas mãos, de seu olhar,
de sua palavra(43).
Os patrícios não deram direitos à plebe; concederam apenas que alguns dentre
os plebeus fossem invioláveis. Todavia era o que bastava para que houvesse
alguma segurança para todos. O tribuno era uma espécie de altar vivo, ao qual
se atribuía o direito de asilo(44).
Os tribunos, naturalmente, tornaram-se chefes da plebe, e se apoderaram do
direito de julgar. Na verdade, não tinham o direito de citar para comparecer
diante deles nem mesmo a um plebeu, mas podiam prendê-lo(45). Uma vez
sob sua mão, o homem obedecia. Bastava encontrar-se em um raio onde sua
palavra se fizesse ouvir; essa palavra era irresistível e era necessário submeterse
a ela, quer se fosse patrício ou cônsul.
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O tribuno não tinha, nos primeiros tempos, nenhuma autoridade política. Não
sendo magistrado, não podia convocar nem cúrias, nem centúrias. Não tinha
nenhuma proposição a fazer no senado; no princípio nem sequer se pensava
que ele lá pudesse aparecer. Nada tinha em comum com a verdadeira cidade,
isto é, com a cidade patrícia, onde não lhe reconheciam nenhuma autoridade.
Ele não era tribuno do povo, era tribuno da plebe(46).
Em Roma, portanto, como no passado, havia duas sociedades: a cidade e a
plebe; uma, muito bem organizada, com leis, magistrados, senado; outra, que
continuava a ser uma multidão sem lei, mas que em seus tribunos invioláveis
encontrava protetores e juízes.
Nos anos que se seguem pode-se ver como os tribunos são atrevidos, e
quantas liberdades imprevistas andaram tomando. Nada lhes autorizava a
convocar a plebe: mas eles o fazem. Nada os chamava ao senado: mas eles ali
tomaram assento, primeiro na porta da sala, depois no interior do recinto.
Nada lhes dava o direito de julgar patrícios; mas eles julgam-nos e submetemnos
à condenação. Era a conseqüência daquela inviolabilidade que se prendia
à sua pessoa sacrossanta. Toda força caía diante deles. O patriciado desarmarase
no dia em que declarara, com ritos solenes, que quem quer que tocasse em
um tribuno tornava-se impuro. A lei declarava: Nada se fará contra um
tribuno. Portanto, se esse tribuno convocava a plebe, a plebe se reunia, e
ninguém podia dissolver essa assembléia, que a presença de um tribuno
colocava fora do alcance do patriciado e das leis. Se um tribuno entrava no
senado, ninguém podia obrigá-lo a sair. Se prendia um cônsul, ninguém podia
livrá-lo de suas mãos. Nada podia resistir às ousadias de um tribuno. Contra
ele ninguém tinha forças, a não ser outro tribuno.
Desde que a plebe teve assim seus chefes, não tardou em reunir também suas
assembléias deliberativas. Estas não se assemelhavam de modo nenhum às da
cidade patrícia. A plebe em seus comícios era dividida em tribos; o lugar de
cada plebeu era indicado de acordo com o domicílio, e não de acordo com a
religião ou riqueza. A assembléia não era iniciada com um sacrifício; a
religião mantinha-se longe dessas reuniões. Dispensavam-se os presságios, e a
voz dos áugures ou do pontífice não podia forçar a dissolução da assembléia.
Eram, verdadeiramente, comícios da plebe, que nada tinham com as velhas
regras da religião ou do patriciado.
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É verdade que essas assembléias, a princípio, não se ocupavam dos interesses
gerais da cidade; não nomeavam magistrados nem promulgavam leis.
Deliberavam apenas acerca dos interesses da plebe, nomeavam os chefes
plebeus, e faziam plebiscitos. Houve por muito tempo em Roma uma dupla
série de decretos, senatus-consultos para os patrícios, plebiscitos para a plebe.
Nem a plebe obedecia aos senatus-consultos, nem os patrícios aos plebiscitos.
Havia dois povos em Roma.
Esses dois povos, sempre juntos, morando dentro dos mesmos muros, não
tinham, todavia, quase nada em comum. Um plebeu não podia ser cônsul da
cidade, nem um patrício podia ser tribuno da plebe. O plebeu não tomava
parte nas assembléias curiatas, nem o patrício nas assembléias das tribos(47).
Eram dois povos que nem mesmo se compreendiam, que, por assim dizer,
nem tinham idéias comuns. Se o patrício falava em nome da religião e das
leis, o plebeu respondia que não conhecia essa religião hereditária, nem
tampouco as leis que dela derivavam. Se o patrício alegava um costume
sagrado, o plebeu respondia em nome do direito da natureza. Acusavam-se
mutuamente de injustiça; cada um deles era justo de acordo com seus próprios
princípios, injusto de acordo com os princípios e crenças dos outros. A
assembléia das cúrias e a reunião dos patres pareciam ao plebeu privilégios
odiosos. Na assembléia das tribos o patrício via um conciliábulo reprovado
pela religião. O consulado era para o plebeu uma autoridade arbitrária e
tirânica; o tribunado era aos olhos do patrício algo de ímpio, de anormal, de
contrário a todos os princípios; ele não podia compreender aquela espécie de
chefe que não era sacerdote, eleito sem auspícios. O tribuno alterava a ordem
sagrada da cidade; era o que é uma heresia em religião, uma espécie de nódoa
para o culto público. Os deuses nos serão contrários dizia um patrício
enquanto tivermos entre nós essa úlcera que nos rói, e que estende sua
corrupção a todo o corpo social. A história de Roma, durante um século,
esteve cheia de semelhantes mal-entendidos entre dois povos que não
pareciam falar a mesma língua. O patriciado persistia em manter a plebe fora
do corpo político; a plebe decretava as próprias instituições. A dualidade da
população romana tornava-se dia a dia mais manifesta.
Havia, contudo, algo que formava um vínculo entre esses dois povos: era a
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guerra. O patriciado tomara precauções para não se privar de soldados.
Deixara aos plebeus o título de cidadãos apenas para podê-los incorporar nas
legiões. Cuidaram outrossim para que a inviolabilidade dos tribunos não se
estendesse fora dos limites de Roma, decidindo-se para isso que os tribunos
jamais sairiam da cidade. No exército, portanto, a plebe tinha que se
submeter; não havia mais dualidade de poderes; na presença do inimigo Roma
voltava a ser una.
Depois, graças ao hábito tomado após a expulsão dos reis, de reunir o exército
para consultá-lo a respeito dos interesses públicos ou da escolha dos
magistrados, reuniam-se assembléias mistas, nas quais a plebe figurava ao
lado dos patrícios. Ora. vemos claramente na história que esses comícios por
centúrias tomaram cada vez maior importância, transformando-se
insensivelmente no que depois se chamou de grandes comícios. Com efeito,
no conflito que se travava entre a assembléia curiata e a assembléia das tribos,
parecia natural que a assembléia centuriata se tornasse uma espécie de terreno
neutro, onde os interesses gerais fossem debatidos de preferência.
O plebeu nem sempre era pobre. Muitas vezes pertencia a família originária
de outra cidade, onde era rica e considerada, e que os percalços da guerra
levara a Roma sem lhe tirar a riqueza, nem esse sentimento de dignidade que
de ordinário a acompanha. Às vezes também o plebeu teve ocasião de se
enriquecer pelo trabalho, sobretudo no tempo dos reis. Quando Sérvio Túlio
dividiu a população em classes, de acordo com a fortuna de cada um, alguns
plebeus ingressaram na primeira. O patriciado não ousara ou não pudera
abolir essa divisão. Não faltaram, pois, plebeus que combatessem ao lado dos
patrícios nas primeiras fileiras das legiões, ou que voltassem a seu lado nas
primeiras centúrias.
Essa classe rica, altiva, e também prudente, que não podia se comprazer com
as revoltas, antes devia temê-las, que tinha muito a perder se Roma viesse a
cair, e muito a ganhar com o progresso da cidade, era a intermediária natural
entre as duas ordens inimigas.
Não parece que a plebe tenha experimentado repugnância ao ver estabelecerse
em seu meio as distinções da riqueza. Trinta e seis anos depois da criação
do tribunado, o número dos tribunos foi elevado a dez, a fim de que houvesse
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dois em cada uma das cinco classes. A plebe, portanto, aceitava e procurava
conservar a divisão que Sérvio havia estabelecido. E mesmo a parte pobre,
que não estava compreendida nas classes, não fazia ouvir nenhuma
reclamação, deixando aos mais abastados esse privilégio, e não exigia que
escolhessem tribunos também entre os seus.
Quanto aos patrícios, pouco se assustavam com a importância que tomava a
riqueza, porque também eram ricos. Mais sábios ou mais felizes que os
eupátridas de Atenas, que caíram no nada quando a direção da sociedade
passou para as mãos da riqueza, os patrícios nunca se descuidaram da
agricultura, nem do comércio, nem mesmo da indústria. Aumentar a própria
fortuna era sua preocupação constante. O trabalho, a frugalidade, a boa
especulação sempre foram uma de suas virtudes. Aliás, cada vitória sobre o
inimigo, cada conquista aumentava-lhes as posses. Assim, não viam grande
mal em que o poder ficasse ligado à riqueza.
Os hábitos e o caráter dos patrícios eram tais que não podiam desprezar
nenhum rico, mesmo se fosse plebeu. O rico plebeu aproximava-se deles,
vivia com eles; estabeleciam-se muitas relações de interesse ou de amizade.
Esse contato perpétuo provocava uma troca de idéias. O plebeu, pouco a
pouco, dava a conhecer ao patrício os desejos e direitos da plebe. O patrício
acabava por se deixar convencer; insensivelmente, começava a ter opinião
menos firme e menos orgulhosa a respeito da própria superioridade, perdendo
a convicção da segurança de seu direito. Ora, quando uma aristocracia chega a
duvidar de que seu poder seja legítimo, ou não tem mais coragem para
defendê-lo, ou passa a defendê-lo mal. Desde que as prerrogativas do patrício
não constituíam mais artigo de fé para ele próprio, pode-se dizer que o
patriciado já estava meio vencido.
A classe rica parece ter exercido ação de outro gênero sobre a plebe, da qual
nascera e da qual ainda não se havia separado. Como tinha interesse na
grandeza de Roma, desejava a união das duas ordens. Além disso, ela era
ambiciosa; calculava que a separação absoluta das duas ordens limitava sua
carreira, acorrentando-a para sempre à classe inferior, enquanto que a união
lhe abriria um caminho cujo termo não podia adivinhar. Esforçou-se, portanto,
por imprimir às idéias e desejos da plebe outra direção. Em lugar de persistir
em formar uma ordem separada, em lugar de promulgar para si mesma leis
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particulares, que a outra ordem jamais reconheceria, em lugar de trabalhar
lentamente, nos plebiscitos, para fazer leis para seu próprio uso, e em elaborar
um código que nunca teria valor oficial, ela lhe inspirou a ambição de penetrar
na cidade patrícia, e de participar das leis, instituições e dignidades dos
patrícios. Os desejos da plebe inclinaram-se então à união das duas ordens, em
condições de igualdade.
A plebe, uma vez adotado esse caminho, começou por reclamar um código.
Em Roma, como em todas as outras cidades, havia leis invariáveis e sagradas,
leis escritas, cujo texto era guardado pelos sacerdotes(48). Mas essas leis, que
faziam parte da religião, não se aplicavam senão aos membros da cidade
religiosa. O plebeu não tinha o direito de conhecê-las, e podemos acreditar
que também não tinha o direito de invocá-las em seu favor. Essas leis existiam
para as cúrias, para as gentes, para os patrícios e seus clientes, mas não para
os outros. Elas não reconheciam o direito de propriedade a quem não tivesse
sacra; não concediam ações judiciais a quem não tivesse patrono. É esse
caráter exclusivamente religioso da lei que a plebe queria fazer desaparecer,
pedindo não só que as leis fossem escritas, e se tornassem públicas, mas que
houvesse leis que fossem igualmente aplicáveis a patrícios e plebeus.
Parece que os tribunos quiseram a princípio que essas leis fossem redigidas
por plebeus. Os patrícios responderam que, aparentemente, os tribunos
ignoravam o que fosse uma lei, porque de outro modo não teriam ousado
manifestar semelhante pensamento. É absolutamente impossível
diziam eles que os plebeus façam leis; vós, que não tendes auspícios, que
não celebrais atos religiosos, que tendes em comum com todas as coisas
sagradas, entre as quais está a lei(49)? A pretensão da plebe, portanto,
parecia monstruosa e ímpia aos olhos dos patrícios. Por isso os velhos anais,
que Tito Lívio e Dionísio consultaram nesse trecho da história, mencionam
prodígios horríveis: o céu em fogo, fantasmas voltejando pelo ar, chuvas de
sangue(50). O verdadeiro prodígio era que plebeus tivessem o pensamento de
fazer leis. Entre as duas ordens, cada uma se admirando da insistência da
outra, a república ficou oito anos indecisa. Depois os tribunos imaginaram um
acordo: Já que não quereis que a lei seja escrita pelos plebeus disseram
escolhamos legisladores dentre as duas ordens. Com isso julgavam
conceder muito, mas era pouco em relação aos princípios tão rigorosos da
religião patrícia. O senado replicou dizendo que não se opunha de nenhum
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modo à redação de um código, mas que esse código não podia ser redigido
senão por patrícios. Acabaram por encontrar um meio de conciliar os
interesses da plebe com a necessidade religiosa que o patriciado invocava:
decidiu-se que os legisladores seriam todos patrícios, mas que o código, antes
de ser promulgado e posto em vigor, seria mostrado ao público, e submetido à
aprovação prévia de todas as classes.
Não é este o momento de analisar o código dos decênviros. Importa tão
somente notar desde agora que a obra dos legisladores, previamente exposta
ao fórum, discutida livremente por todos os cidadãos, foi depois aceita pelos
comícios centuriais, isto é, pela assembléia na qual ambas as ordens se
achavam unidas. Nisso havia uma inovação grave. Adotada pelas duas
classes, a mesma lei passava desde então a se aplicar a ambas. Não se
encontra, no que ainda nos resta desse código, uma só palavra que denote
desigualdade entre o plebeu e o patrício, seja no direito de propriedade, seja
nos contratos e obrigações, seja nos processos judiciais. A partir desse
momento o plebeu comparece diante do mesmo tribunal que o patrício, age
como ele, é julgado pelas mesmas leis que o julgam. Ora, não se podia fazer
revolução mais radical; os hábitos de cada dia, os costumes, os sentimentos do
homem para com seus semelhantes, a idéia da dignidade pessoal, o princípio
do direito, tudo estava mudado em Roma.
Como ainda restavam algumas leis a fazer, nomearam-se novos decênviros, e
entre eles havia três plebeus Assim, depois que se havia proclamado com
tanta energia que o direito de escrever leis não pertencia senão à classe dos
patrícios, o progresso das idéias foi tão rápido, que ao cabo de um ano já se
admitiam plebeus entre os legisladores.
Os costumes tendiam para a igualdade. Estava-se em um declive no qual não
se podia parar. Tornou-se necessário promulgar uma lei que proibisse o
casamento entre as duas ordens, prova certa de que a religião e os costumes
não bastavam mais para evitá-los. Mas, apenas tiveram tempo para fazer essa
lei, ela foi abolida por reprovação universal. Alguns patrícios ainda
persistiram em alegar a religião: Nosso sangue vai ser manchado; o culto
hereditário de cada família ficará infamado; ninguém mais saberá de que
sangue nasceu, a que sacrifícios está obrigado; será a ruína de todas as
instituições divinas e humanas. Os plebeus nada entendiam desses
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argumentos, que lhes pareciam apenas sutilezas sem valor. Discutir artigos de
fé diante de homens que não têm religião é trabalho perdido. Os tribunos, por
sua vez, replicavam com muita justiça: Se é verdade que vossa religião fala
tão alto, porque tendes necessidade dessa lei? Não vos servirá para nada;
retirai-a, e ficareis tão livres quanto antes para não vos unirdes às famílias dos
plebeus. A lei foi ab-rogada. Logo os casamentos entre as duas ordens se
tornaram freqüentes. Os ricos plebeus foram tão procurados que, para não
falar senão dos Licínios, viram-nos unir-se a três gentes patrícias; aos Fábios,
aos Cornélios e aos Mânlios(51). Reconheceu-se então que a lei era a única
barreira que separava as duas ordens. Daí por diante o sangue patrício e o
plebeu se misturaram.
Desde que se conquistara a igualdade na vida privada, o mais difícil estava
feito, e parecia natural que também existisse igualdade na política. A plebe
queria, portanto, saber por que o consulado lhe era vedado, e não via razões
para continuar para sempre afastada desse cargo.
Havia, contudo, uma razão muito forte. O consulado não significava apenas
comando; era um sacerdócio. Para ser cônsul, não bastava dar provas de
inteligência, coragem, probidade; era necessário sobretudo capacidade para
celebrar as cerimônias do culto público. Era necessário que os ritos fossem
bem observados, e que os deuses ficassem satisfeitos. Ora, somente os
patrícios tinham em si o caráter sagrado que lhes permitia pronunciar preces e
invocar a proteção divina sobre a cidade. O plebeu nada tinha em comum com
o culto; a religião opunha-se, portanto, a que fosse cônsul: Nefas plebeium
consulem fieri.
Podemos imaginar a surpresa e indignação do patriciado, quando os plebeus
exprimiram pela primeira vez a pretensão de ser cônsules. Parecia que a
religião estava ameaçada. Esforçaram-se por todos os meios para fazer com
que a plebe compreendesse isso, dizendo-lhe da importância que a religião
tinha para a cidade, pois, ela a fundara, presidia a todos os atos públicos,
dirigia as assembléias deliberativas, e elegia os magistrados da república.
Acrescentaram ainda que essa religião era, de acordo com antiga regra (more
majorum), patrimônio dos patrícios, que seus ritos não podiam ser conhecidos
e praticados senão por eles, e que, enfim, os deuses não aceitavam o sacrifício
dos plebeus. Propor a criação de cônsules plebeus era querer suprimir a
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religião da cidade; dali por diante o culto estaria manchado, e a cidade não
estaria mais em paz com os deuses(52).
O patriciado usou de todas as suas forças e habilidades para afastar os plebeus
dessa magistratura, defendendo ao mesmo tempo a religião e o poder. Desde
que percebeu que o consulado estava em perigo de ser conquistado pela plebe,
separou do mesmo a função religiosa que entre todas tinha mais importância,
a que consistia em fazer a lustração dos cidadãos; assim foram criados os
censores. Quando os patrícios perceberam que era muito difícil resistir à
vontade dos plebeus, substituíram o consulado pelo tribunado militar. A plebe
mostrou, aliás, grande paciência; esperou setenta e cinco anos para que seu
desejo fosse realizado. É evidente que mostrava menos ardor para conseguir
essas magistraturas do que demonstrara para conquistar o tribunado e o
código.
Mas se a plebe era tão indiferente, havia uma aristocracia plebéia mais
ambiciosa. Eis uma lenda da época: Fábio Ambusto, um dos patrícios mais
distintos, tinha casado suas duas filhas, uma com um patrício, que se tornou
tribuno militar, outra com Licínio Stolon, homem muito conhecido, mas
plebeu. Esta encontrava-se um dia em casa da irmã, quando os lictores,
trazendo para casa o tribuno militar, bateram à porta com os seus fasces.
Como ignorava esse costume, teve medo. Os risos e as perguntas irônicas da
irmã fizeram-lhe ver como o casamento plebeu a rebaixara, colocando-a em
uma casa onde dignidades e honras jamais deviam ter entrada. Seu pai
adivinhou-lhe o desgosto, consolou-a, e prometeu-lhe que veria um dia em
sua casa o que acabava de presenciar na casa da irmã. Entendeu-se com o
genro, e ambos se puseram a trabalhar com a mesma finalidade. Esta
lenda, em meio a alguns pormenores pueris e inverossímeis, ensina-nos pelo
menos duas coisas: uma, que a aristocracia plebéia, à força de viver com os
patrícios, adotava suas ambições e aspirava a suas dignidades; outra, que
havia patrícios que encorajavam e excitavam a ambição dessa nova
aristocracia, que se unira a eles pelos laços mais íntimos.
Parece que Licínio, e Séxtio, que se juntara a ele, não esperavam que a plebe
fizesse grandes esforços para lhes dar o direito de ser cônsules, porque
julgaram de seu dever propor três leis ao mesmo tempo. A que tinha por
objeto estabelecer que um dos cônsules fosse forçosamente escolhido dentre a
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plebe, era precedida de duas outras, uma visando diminuir as dívidas, outro
procurando dar terras ao povo. É evidente que as duas primeiras deviam servir
para estimular o zelo da plebe em favor da terceira. Houve um momento em
que a plebe se mostrou clarividente: tomou das proposições de Licínio o que
lhe interessava, isto é, a redução das dívidas e a distribuição das terras, e não
se importou com a conquista do consulado. Mas Licínio replicou que as três
leis eram inseparáveis, e que era necessário aceitá-las ou rejeitá-las em
conjunto. A constituição romana autorizava esse modo de proceder. É lógico
que a plebe preferiu aceitar tudo a perder tudo.
Mas não bastava que a plebe quisesse promulgar leis; nessa época ainda era
necessário que o senado convocasse os grandes comícios para aprovar os
decretos(53), e o senado recusou-se a isso durante dez anos. Enfim sucedeu
algo que Tito Lívio não esclarece satisfatoriamente(54); parece que a plebe
tomou armas, e que a guerra civil cobriu de sangue as ruas de Roma. O
patriciado, vencido, promulgou um senatus-consulto pelo qual aprovava e
confirmava de antemão todos os decretos que o povo apresentasse naquele
ano. Nada mais impedia aos tribunos a votação das três leis. A partir desse
momento a plebe teve cada ano um cônsul plebeu sobre dois patrícios, e não
tardou a conseguir outras magistraturas. O plebeu passou a usar o vestido
púrpura e a ser precedido pelos fasces; administrou a justiça, elegeu-se
senador, governou a cidade e comandou legiões.
Restava ainda o sacerdócio, que parecia não poder ser tirado aos patrícios,
pois, era dogma inabalável da antiga religião que o direito de recitar orações e
de tocar nos objetos sagrados não se transmitia senão pelo sangue. A ciência
dos ritos, como a posse dos deuses, era hereditária. Assim, como o culto
doméstico constituía patrimônio do qual nenhum estranho podia participar, o
culto da cidade pertencia exclusivamente às famílias que haviam formado a
cidade primitiva. Certamente, nos primeiros séculos de Roma, ninguém
jamais pensou que um plebeu pudesse ser pontífice.
Mas as idéias eram outras. A plebe, tirando à religião o caráter de
hereditariedade, instituiu uma religião para seu próprio uso, acendendo lares
domésticos, erigindo altares nas esquinas, e lares tribais. O patrício, a
princípio, só sentiu desprezo por esse arremedo de sua religião. Mas, com o
tempo, a religião dos plebeus tornou-se coisa séria, chegando estes a crer que
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eram, mesmo sob o ponto de vista do culto e em relação aos deuses, iguais aos
patrícios.
Dois princípios se defrontavam. O patriciado persistia em sustentar que o
caráter sacerdotal e o direito de adorar a divindade eram hereditários. A plebe
libertara a religião e o sacerdócio dessa antiga regra de hereditariedade,
pretendendo que todo homem era apto a pronunciar as preces, e que, contanto
que fosse cidadão, tinha o direito de realizar as cerimônias do culto da cidade,
chegando por fim à conclusão de que o plebeu podia ser pontífice.
Se os sacerdotes não se imiscuíssem no comando e na política, é possível que
os plebeus não houvessem desejado tão ardentemente esses cargos. Mas todas
essas coisas estavam ligadas umas às outras: o sacerdote era magistrado, o
pontífice era juiz, o áugure podia dissolver as assembléias públicas. A plebe
não deixou de se aperceber de que sem o sacerdócio não possuía realmente
nem igualdade civil, nem igualdade política. Reclamou, portanto, a divisão do
pontificado entre as duas ordens, como outrora exigira a divisão do consulado.
Tornava-se difícil objetar-lhe sua incapacidade religiosa, porque há sessenta
anos já se via o plebeu, como cônsul, oferecer sacrifícios; como censor,
realizava o rito da lustração; vencedor do inimigo, preenchia as sagradas
formalidades do triunfo. Por meio das magistraturas a plebe já se havia
apoderado de uma parte do sacerdócio; não era fácil salvar o resto. A fé no
princípio da hereditariedade religiosa já estava abalada mesmo entre os
próprios patrícios. Alguns dentre eles invocaram em vão as velhas regras, e
disseram: O culto vai ser alterado, vai ser manchado por mãos indignas;
estais provocando os próprios deuses; tomai cuidado para que sua cólera não
se faça sentir em nossa cidade(55). Não parece que esses argumentos
tenham tido muita força sobre a plebe, nem mesmo que a maioria dos
patrícios se tenha comovido com eles. Os novos costumes davam ganho de
causa ao princípio plebeu. Decidiu-se, portanto, que metade dos pontífices e
dos áugures seria para o futuro escolhida dentre a plebe(56).
Esta foi a última conquista da ordem inferior; não havia mais nada a desejar.
O patriciado perdera até sua superioridade religiosa. Nada mais o distinguia
da plebe; o patriciado não era mais que um nome, uma lembrança. Os velhos
princípios sobre os quais a cidade romana, como todas as cidades antigas,
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estava fundada, haviam desaparecido. Da antiga religião hereditária, que por
muito tempo governara os homens, estabelecendo classes e divisões, não
restavam mais que as formas exteriores. O plebeu lutara contra ela durante
quatro séculos, sob a república e sob os reis, e por fim alcançara vitória.
CAPÍTULO VIII
MODIFICAÇÕES NO DIREITO PRIVADO. O CÓDIGO DAS DOZE
TÁBUAS. O CÓDIGO DE SÓLON
Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito se modifica
e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, que se
forma e se desenvolve com ela, que juntamente com ela se transforma, e que,
enfim, segue sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes, de
suas crenças.
Os homens das antigas idades estavam sujeitos a uma religião tanto mais
poderosa sobre suas almas quanto mais rude; essa religião dera-lhes o direito,
assim como formara suas instituições políticas. Mas eis que a sociedade se
transforma. O regime patriarcal, gerado por essa religião hereditária, com o
tempo tornou-se regime da cidade. Insensivelmente a gens se desmembrou, o
irmão mais novo libertou-se do mais velho, o servo libertou-se do senhor; a
classe inferior cresceu, armou-se, e acabou por conquistar a igualdade,
vencendo a aristocracia. Essa modificação do estado social devia modificar
também o direito, porque, assim como eupátridas e patrícios estavam ligados
à velha religião das famílias, e, por conseqüência, ao velho direito, assim a
classe inferior tinha ódio dessa religião hereditária, que por muito tempo a
conservara em estado de inferioridade, e detestava esse direito antigo, que a
oprimira. Não somente ela o detestava, mas não o compreendia. Como não
acreditava nas crenças sobre em que se baseava, esse direito lhe parecia sem
fundamento. A plebe achava-o injusto, e desde então tornou-se impossível
mantê-lo.
Se nos colocarmos na época em que a plebe levantou-se, e passou a fazer
parte do corpo político, se compararmos o direito dessa época ao direito
primitivo, graves mudanças aparecem logo à primeira vista. A primeira, a
mais evidente, é que o direito tornou-se público e conhecido de todos. Não é
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
mais aquele canto sagrado e misterioso, que se repetia de idade em idade com
piedoso respeito, que somente os sacerdotes escreviam, e que somente os
homens das famílias religiosas podiam conhecer. O direito saiu dos rituais e
dos livros dos sacerdotes, perdendo seu mistério religioso; é uma língua que
todos podem ler e falar.
Algo mais grave ainda se manifesta nesses códigos. A natureza da lei, e seu
princípio, não são mais os mesmos do período precedente. Antes a lei era
decreto da religião; passava por uma revelação feita pelos deuses aos
antepassados, ao fundador divino, aos reis sagrados, aos magistrados
sacerdotes. Nos novos códigos, pelo contrário, não é mais em nome dos
deuses que o legislador fala; os decênviros de Roma receberam o poder do
povo; foi também o povo que investiu Sólon do direito de fazer leis. O
legislador, portanto, não representa mais a tradição religiosa, mas a vontade
popular. A lei doravante tem por princípio o interesse dos homens, e por
fundamento o assentimento da maioria.
Daí, duas conseqüências. Em primeiro lugar, a lei não se apresenta mais como
fórmula imutável e indiscutível. Tornando-se obra humana, ela se reconhece
sujeita a mudanças. As Doze Tábuas o afirmam: O que os sufrágios do povo
ordenaram em último lugar, essa é a lei(1). De todos os textos que nos
restam desse código, não há nenhum que tenha mais importância que esse,
nem que marque melhor o caráter da revolução que então se deu no direito. A
lei não é mais uma tradição sagrada, mos; é um simples texto, lex; e, como é
feita pela vontade dos homens, essa mesma vontade pode modificá-la.
Outra conseqüência é esta: a lei, que antes era parte da religião, e constituía,
portanto, patrimônio das famílias sagradas, tornou-se propriedade comum de
todos os cidadãos. O plebeu podia invocá-la, e mover ação em justiça.
Quando muito, o patrício de Roma, mais tenaz ou mais astucioso que o
eupátrida de Atenas, tentou esconder da multidão as formas do processo, que
também não tardaram a ser divulgadas.
Assim o direito mudou de natureza. A partir dessa época não podia mais
conter as mesmas prescrições da época precedente. Enquanto a religião
imperou sobre o direito, ele regulara as relações dos homens entre si, de
acordo com os princípios dessa religião. Mas a classe inferior, que trazia para
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
a cidade outros princípios, não entendia nada das velhas regras do direito de
propriedade, nem o antigo direito de sucessão, nem a autoridade absoluta do
pai, nem o parentesco por agnação. Ela queria que tudo isso desaparecesse.
Na verdade essa transformação do direito não pôde se realizar de um só golpe.
Se às vezes é possível ao homem mudar bruscamente suas instituições
políticas, ele não pode modificar as leis e o direito privado senão muito
devagar, e gradativamente. É o que prova a história do direito romano, como a
do direito ateniense.
As Doze Tábuas, como vimos acima, foram escritas em meio a uma
transformação social; foram feitas pelos patrícios, mas a pedido da plebe, e
para seu uso. Essa legislação, portanto, não é mais o direito primitivo de
Roma; não é ainda o direito pretoriano; é uma transição entre os dois.
Eis aqui, em primeiro lugar, os pontos sobre os quais não se afasta ainda do
direito antigo:
Conserva o poder do pai; deixa que ele julgue o filho, condene-o à morte,
venda-o. Enquanto o pai for vivo, o filho nunca é considerado maior.
Pelo que respeita às sucessões, as Doze Tábuas também conservam regras
antigas; a herança passa aos agnados, e, na falta de agnados, aos gentiles.
Quanto aos cognados, isto é, aos parentes pela parte das mulheres, a lei ainda
os desconhece; eles não herdam entre si; a mãe não sucede ao filho, nem o
filho à mãe(2).
Conservam à emancipação e à adoção o caráter e os efeitos que esses dois atos
tinham no direito antigo. O filho emancipado não tem mais parte no culto de
família, resultando daí perder seu direito à sucessão.
Eis agora os pontos sobre os quais essa legislação se afasta do direito
primitivo:
Admite formalmente que o patrimônio pode ser dividido entre irmãos, pois
que lhes concede a actio familiae erciscundae(3).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Declara que o pai não poderá dispor por mais de três vezes da pessoa do filho,
e que depois de três vendas o filho será livre(4). Este foi o primeiro golpe que
o direito romano vibrou sobre a autoridade paterna.
Outra mudança mais grave foi a que deu ao homem o poder de testar. Antes o
filho era herdeiro seu e necessário; na falta de filhos, o agnado mais próximo
tornava-se herdeiro; na falta de agnados, os bens retornavam à gens, em
memória do tempo em que a gens, ainda indivisa, era a única proprietária do
domínio que depois foi dividido. As Doze Tábuas deixam de lado os velhos
princípios; consideram a propriedade como pertencente não mais à gens, mas
ao indivíduo; reconhecem, portanto, ao homem o direito de dispor de seus
bens por testamento.
Não que no direito primitivo o testamento fosse completamente desconhecido.
O homem já podia escolher um legatário estranho à gens, com a condição,
porém, de submeter sua escolha à aprovação da assembléia das cúrias; de
forma que só a vontade da cidade inteira podia fazer derrogar a ordem que a
religião havia estabelecido. O novo direito desembaraça o testamento dessa
regra incômoda, e dá-lhe forma mais fácil: a de uma venda simulada. O
homem fingirá vender sua fortuna àquele que escolheu como legatário; na
realidade, fará um testamento, sem ter necessidade de comparecer diante da
assembléia do povo.
Essa forma de testamento tinha a grande vantagem de ser permitida ao plebeu.
Ele, que nada tinha em comum com as cúrias, não tinha até então nenhum
meio para testar(5). Daí por diante podia usar o processo da venda fictícia, e
dispor de seus bens. O que há de mais notável nesse período da história da
legislação romana é que, pela introdução de certas formas novas, o direito
pôde estender sua ação e benefícios às classes inferiores. As antigas regras e
formalidades não haviam podido, e não podiam ainda aplicar-se
convenientemente senão às famílias religiosas; mas imaginaram-se novas
regras e novos processos, que fossem aplicáveis aos plebeus.
É pela mesma razão, e em conseqüência da mesma necessidade, que se
introduziram inovações na parte do direito que dizia respeito ao matrimônio.
É claro que as famílias plebéias não observavam o casamento religioso, e
podemos acreditar que para elas a união conjugal repousava unicamente sobre
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
a convenção mútua das partes (mutuus consensus) e sobre o afeto que se
haviam prometido (affectio maritalis). Não se realizava nenhuma formalidade
civil ou religiosa. Esse casamento plebeu acabou por prevalecer, com o
tempo, nos costumes e no direito; mas a princípio as leis da cidade patrícia
não lhe reconheciam nenhum valor. Ora, isso tinha graves conseqüências;
como o poder marital e paternal não derivava, aos olhos do patrício, senão da
cerimônia religiosa, que havia iniciado a mulher no culto do esposo, resultava
daí não ter o plebeu esse poder. A lei não lhe reconhecia família, e o direito
privado não existia para ele. Era uma situação que não podia durar mais.
Imaginou-se, portanto, um processo para uso do plebeu, e que, para as
relações civis, produzisse os mesmos efeitos que o casamento religioso.
Recorreu-se, como para o testamento, a uma venda fictícia. A mulher era
comprada pelo marido (coemptio), e desde então a reconheceram em direito
como parte de sua propriedade (familia), e ficou na sua mão, como filha em
relação ao esposo, justamente como se a cerimônia religiosa se tivesse
realizado(6).
Não saberíamos afirmar se esse processo era ou não mais antigo que as Doze
Tábuas. Pelo menos é certo que a nova legislação reconheceu-o como
legítimo. Ela dava assim ao plebeu um direito privado, análogo em seus
efeitos ao direito do patriciado, embora se diferenciasse muito em seus
princípios.
À coemptio corresponde o usus: são duas formas de um mesmo ato. Todo
objeto pode ser adquirido indiferentemente de duas maneiras: por compra ou
por uso; o mesmo acontece com a propriedade fictícia da mulher. O uso aqui é
a coabitação de um ano, que estabelece entre os dois esposos os mesmos laços
de direito que a compra e a cerimônia religiosa. Sem dúvida não é necessário
acrescentar que a coabitação devia ser precedida de casamento, pelo menos do
casamento plebeu, que se efetuava pelo consentimento e afeição das partes.
Nem a coemptio nem o usus criavam união moral entre os esposos; esta só
acontecia depois do casamento, e não estabelecia senão um vínculo de direito.
Não eram, como muitas vezes se repete, formas de casamento; eram apenas
meios de adquirir o poder marital e paternal(7).
Mas o poder marital dos tempos antigos tinha conseqüências que, na época da
história em que chegamos, começavam a parecer excessivas. Vimos que a
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
mulher estava sujeita sem reservas ao marido, e que o direito deste ia até
poder vendê-la ou aliená-la(8). De outro ponto de vista, o poder marital
produzia ainda efeitos que o bom-senso do plebeu mal podia compreender;
assim a mulher, colocada na mão do marido, ficava separada de maneira
absoluta da família paterna; não herdava, e não conservava com ela nenhum
laço ou parentesco aos olhos da lei. Isso era bom no direito primitivo, quando
a religião proibia que a mesma pessoa fizesse parte de duas gentes,
sacrificasse a dois lares, e fosse herdeira em duas casas. Mas o poder marital
não era mais concebido com esse rigor, e se podiam ter vários motivos
excelentes para escapar a essas duras conseqüências. Também a lei das Doze
Tábuas, ao estabelecer que a coabitação de um ano colocava a mulher sob o
poder do marido, foi obrigada a deixar aos esposos a liberdade de não contrair
vínculo tão rigoroso. Que a mulher interrompa a coabitação todos os anos,
fosse embora por uma ausência de três noites, é o bastante para que o poder
marital deixe de se estabelecer. Desse modo a mulher conserva os laços de
direito com a própria família, e pode herdar.
Sem que seja necessário entrarmos em pormenores mais longos, vemos que o
código das Doze Tábuas já se afasta muito do direito primitivo. A legislação
romana se transforma, como acontece com o governo e o Estado social. Pouco
a pouco, e quase em cada geração, surgem novas modificações. À medida que
as classes inferiores progridem na ordem política, nova modificação será
introduzida nas regras do direito. A princípio é o casamento, que vai ser
permitido entre patrícios e plebeus. Depois é a lei Papíria, que proibirá ao
devedor empenhar sua pessoa ao credor. É o processo que se simplifica, para
grande proveito dos plebeus, com a abolição das ações da lei. Enfim, o pretor,
continuando a caminhar pela via aberta pelas Doze Tábuas, traçará ao lado do
direito antigo um direito absolutamente novo, não inspirado pela religião, e
que cada vez mais se aproximará do direito natural.
Revolução análoga aparece no direito ateniense. Sabemos que em Atenas
foram redigidos dois códigos de leis, no intervalo de trinta anos, o primeiro
por Drácon o segundo por Sólon. O de Drácon foi escrito quando era mais
forte a luta entre as duas classes, e quando os eupátridas ainda não estavam
vencidos. Sólon redigiu o seu no mesmo momento em que a classe inferior o
conquistou. Assim as diferenças são grandes entre os dois códigos.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Drácon era eupátrida; tinha todos os sentimentos de sua casta, e era instruído
no direito religioso. Não parece ter feito outra coisa que passar por escrito
antigos costumes, sem nada mudar. Sua primeira lei é esta: Devem-se honrar
os deuses e heróis do país, e oferecer-lhes sacrifícios anuais, sem se afastar
dos ritos seguidos pelos antepassados. Conservou-se a lembrança de suas
leis sobre o homicídio; elas prescrevem que o culpado seja afastado dos
templos, e proíbe-lhe tocar na água lustral e nos vasos sagrados(9).
Suas leis pareceram cruéis às gerações seguintes. Com efeito, foram ditadas
por uma religião implacável, que via em toda falta uma ofensa à divindade, e
em toda ofensa à divindade um crime irremissível. O roubo era punido com a
morte, porque era um atentado contra a religião da propriedade.
Um curioso artigo que nos foi conservado dessa legislação mostra com qual
espírito foi feita. Ela não concedia o direito de demandar em justiça senão aos
pais do morto e aos membros de sua gens(10). Por aí vemos quanto a gens era
ainda poderosa nessa época, pois não permitia que a cidade interviesse
oficiosamente em seus negócios, fosse embora para vingá-la. O homem
pertencia ainda à família, mais que à cidade.
Em tudo o que chegou até nós dessa legislação vemos que ela não fazia nada
mais que reproduzir o direito antigo. Possuía a dureza e a rigidez da velha lei
não escrita. Podemos acreditar que estabelecia uma demarcação bem profunda
entre as classes, porque a classe inferior sempre a detestou, e, ao cabo de
trinta anos, reclamava nova legislação.
O código de Sólon é completamente diferente; vê-se que corresponde a uma
grande revolução social. A primeira coisa que se nota é que as leis são as
mesmas para todos; não estabelecem distinção entre o eupátrida, o simples
homem livre e o teta. Essas palavras nem sequer se encontram em nenhum
dos artigos que nos são conservados. Sólon se orgulha em seus versos de
haver escrito as mesmas leis para os grandes e para os pequenos(11).
Como as Doze Tábuas, o código de Sólon se afasta em muitos pontos do
direito antigo; em outros pontos continua-lhe fiel. Isso não quer dizer que os
decênviros romanos tenham copiado as leis de Atenas; mas as duas
legislações, obras da mesma época, conseqüências da mesma revolução
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
social, não puderam deixar de se assemelharem. Essa semelhança, contudo,
existe apenas no espírito de ambas as legislações, porque a comparação de
dois artigos apresenta numerosas diferenças. Há pequenos pontos sobre os
quais o código de Sólon fica mais perto do direito primitivo que as Doze
Tábuas, como há outros nos quais se afasta consideravelmente.
O direito mais antigo estabelecera que o filho mais velho fosse o único
herdeiro. A lei de Sólon se afasta dessa lei, e diz em termos formais: Os
irmãos dividirão entre si o patrimônio Mas o legislador não se afasta
ainda do direito primitivo ao ponto de dar à irmã parte da herança: A divisão
diz ele será feita entre os filhos(12).
Há mais: se um pai não deixa senão uma filha, essa filha única não pode ser
herdeira; é sempre o agnado mais próximo que tem a sucessão. Nisso Sólon se
conformou com o antigo direito; pelo menos conseguiu dar à filha o gozo do
patrimônio, obrigando o herdeiro a se casar com ela(13).
O parentesco pelas mulheres era desconhecido no antigo direito; Sólon o
admite no novo direito, colocando-o, porém, abaixo do direito pela linha
masculina. Eis sua lei(14): Se um pai, morrendo intestado, não deixa senão
uma filha, o agnado mais próximo herda, casando-se com a filha. Se não deixa
filhos, seu irmão herda, e não a irmã; seu irmão germano, ou consangüíneo, e
não o irmão uterino. Na falta de irmãos, ou de seus filhos, a sucessão passa à
irmã. Se não deixa nem irmãos, nem irmãs, nem sobrinhos, herdam os primos
do ramo paterno, e seus filhos. Se não se encontram primos no ramo paterno
(isto é, entre os agnados), a sucessão é deferida aos colaterais do ramo
materno (isto é, aos cognados). Assim, as mulheres começam a ter
direitos à sucessão, mas inferiores aos dos homens; a lei enuncia, formalmente
esse princípio: Os varões, e seus descendentes, excluem as mulheres, e seus
descendentes. Pelo menos essa espécie de parentesco é reconhecida, e
passa a fazer parte das leis, prova certa de que o direito natural começa a falar
quase tão alto quanto a antiga religião.
Sólon introduziu ainda na legislação ateniense algo absolutamente novo, o
testamento. Antes dele os bens passavam necessariamente ao agnado mais
próximo, ou, na falta desses, aos genetas (gentiles)(15), e isso porque os bens
não eram considerados como pertencentes ao indivíduo, mas à família. Mas,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
nos tempos de Sólon, começou-se a conceber de outra maneira o direito de
propriedade; o desaparecimento do antigo ghénos havia feito de cada domínio
propriedade de um indivíduo. O legislador permitiu, portanto, ao homem
dispor da própria fortuna e escolher seu legatário. Todavia, suprimindo o
direito que o ghénos tivera sobre os bens de cada um de seus membros, ele
não suprimiu os direitos da família natural; o filho continuou como herdeiro
necessário; se o moribundo não deixava senão uma filha, não podia escolher
herdeiro senão sob a condição de que este se casasse com sua filha; sem
filhos, o homem era livre de testar como bem entendesse(16). Esta última
regra era absolutamente nova no direito ateniense, e podemos ver por ela
como se formaram então novas idéias sobre a família, e como já se começava
a distingui-la do antigo ghénos.
A religião primitiva havia dado ao pai uma autoridade soberana. O direito
antigo de Atenas chegava até a dar-lhe permissão para vender ou matar o
próprio filho(17). Sólon, conformando-se aos novos costumes, limitou esse
poder(18); sabemos com certeza que ele proibiu que os pais vendessem as
próprias filhas, a menos que elas se tornassem culpadas de falta grave; é
provável que a mesma proibição protegesse o filho. A autoridade paterna ia-se
enfraquecendo à medida que a antiga religião perdia terreno, o que aconteceu
mais depressa em Atenas que em Roma. Por isso o direito ateniense não se
contentou em afirmar, como as Doze Tábuas: Depois de tríplice venda o
filho será livre mas permitiu ao filho, depois de certa idade, escapar ao
poder do pai. Os costumes, senão as leis, chegaram insensivelmente a
estabelecer a maioridade do filho, mesmo durante a vida do pai. Conhecemos
uma lei de Atenas que manda ao filho alimentar o pai idoso ou enfermo; tal lei
implica necessariamente no filho o direito de possuir, e, por conseqüência, sua
emancipação do poder paterno. Essa lei não existia em Roma, porque o filho
nunca possuía coisa alguma, e ficava sempre sob o domínio do pai.
Para a mulher a lei de Sólon se conformava ainda ao direito antigo, quando
lhe proibia testar, porque a mulher jamais era realmente proprietária, e não
podia ter senão o usufruto. Mas se afastava desse direito antigo quando lhe
permitia reaver seu dote(19).
Havia ainda outras inovações nesse código. Ao contrário de Drácon, que não
havia concedido senão à família da vítima, o direito de perseguir um crime em
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
justiça, Sólon concedeu-o a qualquer cidadão(20). Mais uma lei do antigo
direito patriarcal que desaparecia.
Assim, em Atenas como em Roma, o direito começava a se transformar. Para
um novo estado social surgia um novo direito. Modificando-se as crenças, os
costumes, as instituições, as leis que antes pareceram justas e boas deixaram
de parecê-lo, e pouco a pouco foram sendo esquecidas.
CAPÍTULO IX
NOVO PRINCÍPIO DE GOVERNO. O INTERESSE PÚBLICO E O
SUFRÁGIO
A revolução, que derrubou o domínio da classe sacerdotal e elevou a classe
inferior ao nível dos anciãos chefes das gentes, marcou o início de um período
novo na história das cidades. Deu-se uma espécie de renovação social. Não
era apenas uma classe de homens que substituía outra classe no poder. Eram
velhos princípios que eram postos de lado, e regras novas que passariam a
governar as sociedades humanas.
É verdade que a cidade conservou as formas exteriores que tivera na época
precedente. O regime republicano subsistiu; os magistrados conservaram em
quase toda parte seus antigos nomes; Atenas teve ainda seus arcontes, e Roma
continuou com seus cônsules. Não se alteraram tampouco as cerimônias da
religião pública; o banquete do pritaneu, os sacrifícios no início das
assembléias, os auspícios e as preces, tudo foi conservado. É comum
acontecer ao homem, quando rejeita velhas instituições, querer conservar pelo
menos as aparências.
No fundo, tudo estava mudado. Nem as instituições, nem o direito, nem as
crenças, nem os costumes desse novo período foram o que haviam sido no
período anterior. O antigo regime desapareceu, levando consigo as regras
rigorosas que havia estabelecido em todas as coisas; fundou-se novo regime, e
a vida humana mudou de feição.
A religião havia sido, durante longos séculos, o único princípio de governo.
Era necessário encontrar novo princípio capaz de o substituir, e que pudesse,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
como ela, reger as sociedades, pondo-as, tanto quanto possível, ao abrigo de
flutuações e de conflitos. O princípio sobre o qual o governo das cidades se
fundou daí por diante passou a ser o interesse público.
É necessário observar esse novo dogma que então apareceu no espírito dos
homens e na história. Antes, a regra superior, de onde derivava a ordem
social, não era o interesse, era a religião. O dever de celebrar os ritos do culto
havia sido o vínculo que unia a sociedade. Dessa necessidade religiosa
derivava-se, para uns o direito de mandar, para outros a obrigação de
obedecer; daí surgiram as regras da justiça e dos processos, as das
deliberações públicas e as da guerra. As cidades não perguntavam a si
mesmas se as instituições que tinham eram úteis; essas instituições eram
fundadas porque a religião assim o quis. Nem o interesse, nem a conveniência
haviam contribuído para estabelecê-las; e se a classe sacerdotal havia
combatido para defendê-las, não o fez em nome do interesse público, mas em
nome da tradição religiosa.
Mas no período em que entramos agora, a tradição não tem mais força e a
religião não governa mais. O princípio regulador, do qual todas as instituições
devem tirar de agora em diante sua força, o único que estará acima das
vontades individuais, e que seja capaz de obrigá-las a se submeter, é o
interesse público. O que os latinos chamam res publica, os gregos tò koinón,
eis o que agora substitui a velha religião. Isso é o que decidirá de agora em
diante as instituições e as leis, e é a isso que se reportam todos os atos
importantes das cidades. Nas deliberações do senado ou das assembléias
populares, quer se discuta uma lei ou uma forma de governo, um ponto de
direito privado ou uma instituição política, ninguém mais quer saber o que a
religião prescreve, mas o que reclama o interesse geral.
Atribui-se a Sólon uma palavra que caracteriza muito bem o novo regime.
Alguém lhe perguntava se ele julgava haver dado à pátria a melhor
constituição: Não responde ele mas a que mais nos convém. Ora,
era algo novo não exigir mais das formas de governo e às leis senão mérito
relativo. As antigas constituições, baseando-se nas regras do culto, haviam-se
proclamado infalíveis e imutáveis; tendo o mesmo rigor e inflexibilidade da
religião. Sólon indicava por essa palavra que para o futuro as constituições
políticas deveriam se conformar às necessidades, aos costumes, aos interesses
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
dos homens de cada época. Não se tratava mais de verdade absoluta; as regras
de governo deviam de aí em diante tornar-se flexíveis e variáveis. Diz-se que
Sólon desejava, quando muito, que as leis fossem observadas durante cem
anos(1).
As prescrições do interesse público não são tão absolutas, tão claras, tão
manifestas como as da religião. Sempre se pode discuti-las; não são
encontradas à primeira vista. O modo que pareceu mais simples e seguro para
se saber o que o interesse público reclamava, foi reunir os homens, e consultálos.
Esse processo foi considerado necessário, e empregado quase que
diariamente. Na época anterior, os auspícios haviam decidido quase que
sozinhos todas as deliberações: a opinião do sacerdote, do rei, do magistrado
sagrado era onipotente; votava-se pouco, e mais para cumprir uma
formalidade que para dar a conhecer a opinião de cada um. De agora em
diante passou-se a votar sobre todas as coisas; era necessário conhecer a
opinião de todos para se estar seguro de conhecer o interesse de todos. A regra
do direito foi a origem das instituições, que decidiu o que era útil e o que era
justo. Essa regra ficava acima dos magistrados, acima mesmo das leis; foi a
soberana da cidade.
Também o governo mudou de natureza. Sua função essencial não foi mais o
cumprimento regular das cerimônias religiosas; foi, sobretudo, constituído
para manter a ordem e a paz no interior, a dignidade e o poder no exterior. O
que ficara outrora em segundo plano, passou para o primeiro. A política
passou à frente da religião, e o governo dos homens tornou-se coisa humana.
Em conseqüência, criavam-se novas magistraturas, ou, pelo menos, as antigas
tomavam novo caráter. É o que se pode ver pelo exemplo de Atenas e de
Roma.
Em Atenas, durante o domínio da aristocracia, os arcontes haviam sido
sobretudo sacerdotes; o cuidado de julgar, de administrar, de declarar guerra,
reduzia-se a pouca coisa, e podia, sem inconvenientes, estar ao lado do
sacerdócio. Quando a cidade ateniense rejeitou os velhos processos religiosos
de governo, não suprimiu o arcontado, porque havia grande repugnância em
suprimir o que era antigo. Mas ao lado dos arcontes estabeleceram-se outras
magistraturas, que, pela natureza de suas funções, correspondiam melhor às
necessidades da época. Eram os estrategos. A palavra significa chefe do
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exército, mas sua autoridade não era puramente militar; cuidavam das
relações com as outras cidades, assim como da administração das finanças, e
de tudo o que dizia respeito à polícia da cidade. Pode-se dizer que os arcontes
tinham em suas mãos a religião, e tudo o que a ela dizia respeito, juntamente
com a direção aparente da justiça, enquanto que os estrategos tinham o poder
político. Os arcontes conservavam a autoridade tal qual as antigas idades a
haviam concebido; os estrategos possuíam a autoridade que as novas
necessidades julgaram bem estabelecer. Pouco a pouco chegou-se ao ponto de
os arcontes não conservarem senão uma aparência de poder, enquanto que os
estrategos o tinham realmente nas mãos. Esses novos magistrados não eram
mais sacerdotes; apenas realizavam as cerimônias absolutamente
indispensáveis em tempos de guerra. O governo tendia cada vez mais a se
separar da religião.
Esses estrategos podiam ser escolhidos fora da classe dos eupátridas. Na
prova por que passavam antes de serem nomeados (dokimasia), não lhes
perguntavam, como o faziam aos arcontes, se tinham culto doméstico, ou se
eram de família pura; bastava que sempre tivessem cumprido os deveres de
cidadãos, e possuíssem terras na Ática(2). Os arcontes eram designados por
sorte, isto é, pela voz dos deuses; o mesmo não acontecia com os estrategos.
Como o governo se tornava mais difícil e mais complicado, a piedade já não
era mais a qualidade principal, e como havia necessidade de habilidade, de
prudência, de coragem, da arte de comandar, não se acreditava mais que a voz
da sorte fosse suficiente para fazer um bom magistrado. A cidade não queria
mais estar vinculada à pretensa vontade dos deuses, e fazia questão de
escolher livremente seus chefes. Que o arconte, que era sacerdote, fosse
designado pelos deuses, era natural; mas o estratego, que tinha nas mãos os
interesses materiais da cidade, devia ser eleito pelos homens.
Se observarmos de perto as instituições de Roma veremos que também ali
surgiam mudanças do mesmo gênero. De uma parte, os tribunos da plebe
aumentaram a tal ponto a própria importância, que a direção da república,
pelo menos no que dizia respeito aos negócios internos, acabou caindo-lhes
nas mãos. Ora, esses tribunos, que não .tinham caráter sacerdotal,
assemelhavam-se muito aos estrategos. De outra parte, o próprio consulado
não se pôde manter sem mudar de natureza. O que tinha em si de sacerdotal
foi aos poucos desaparecendo. É bem verdade que o respeito dos romanos
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
para com as tradições e as formas do passado exigia que o cônsul continuasse
a celebrar cerimônias religiosas instituídas pelos antepassados. Mas é evidente
que no dia em que os plebeus se tornaram cônsules essas cerimônias não
passavam de meras formalidades. O consulado tornou-se cada vez menos
sacerdócio, para se transformar cada vez mais em cargo de comando. Essa
transformação foi lenta, insensível, desapercebida, e não deixou por isso de
ser completa. O consulado já não era certamente no tempo dos Cipiões o que
havia sido nos tempos de Publícola. O tribunado militar, que o senado
instituiu em 443, e sobre o qual os antigos nos dão poucas informações, foi
talvez a transição entre o consulado da primeira época e o da segunda.
Pode-se notar também que houve uma mudança na maneira de nomear
cônsules. Com efeito, nos primeiros séculos, o voto das centúrias na eleição
do magistrado não era, como vimos, senão pura formalidade. Na verdade, o
cônsul de cada ano era criado pelo cônsul do ano precedente que transmitia os
auspícios, depois de consultar a vontade dos deuses. As centúrias não
votavam senão em dois ou três candidatos, apresentados pelo cônsul em
exercício; não havia debates. O povo podia detestar um candidato, e não era
forçado a votar em quem não queria. Na época em que estamos agora a
eleição é completamente diferente, embora as formas ainda sejam as mesmas.
Como no passado, ainda há cerimônia religiosa e voto; mas a cerimônia
religiosa é mera formalidade, o voto é que é realidade. O candidato deve ainda
fazer-se apresentar pelo cônsul que preside; mas o cônsul é obrigado, senão
por lei, ao menos pelo costume, a aceitar todos os candidatos, e a declarar que
os auspícios são igualmente favoráveis a todos. Assim as centúrias elegem os
que bem entende. A eleição não pertence mais aos deuses, mas está nas mãos
do povo. Os deuses e os auspícios não são mais consultados senão com a
condição de serem imparciais com todos os candidatos. Os homens é que
escolhem.
CAPÍTULO X
TENTA-SE CONSTITUIR UMA ARISTOCRACIA DA RIQUEZA.
ESTABELECIMENTO DA DEMOCRACIA. A QUARTA REVOLUÇÃO
O regime que sucedeu à dominação da aristocracia religiosa não foi logo a
democracia. Vimos, pelo exemplo de Atenas e de Roma, que a revolução
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
realizada não havia sido obra das classes humildes. Houve, na verdade,
algumas cidades em que essas classes a princípio se insurgiram; mas elas não
puderam estabelecer nada de duradouro, como o provam as longas desordens
que abalaram Siracusa, Mileto e Samos. O novo regime não se estabeleceu de
maneira mais ou menos sólida senão nos lugares onde se encontrou
imediatamente uma classe superior, capaz de tomar nas mãos, por algum
tempo, o poder e a autoridade moral que escapavam aos eupátridas e aos
patrícios.
Qual podia ser essa nova aristocracia? A religião hereditária havia sido
esquecida; não havia mais outro elemento de distinção social que a riqueza.
Pediu-se, pois, à riqueza que fixasse as classes, porque ninguém podia admitir
imediatamente que a igualdade pudesse ser absoluta.
Por isso Sólon não julgou poder fazer esquecer a antiga distinção, baseada na
religião hereditária, senão estabelecendo nova distinção, baseada na riqueza.
Dividiu os homens em quatro classes, e deu-lhes direitos desiguais: era
necessário ser-se rico para se galgar às altas magistraturas; era necessário,
pelo menos, pertencer a uma das duas classes médias, para se ter acesso ao
senado e aos tribunais(1).
O mesmo aconteceu em Roma. Já vimos que Sérvio não diminuiu o poder do
patriciado senão fundando uma aristocracia rival. Criou doze centúrias de
cavaleiros, escolhidos entre os mais ricos plebeus; essa foi a origem da ordem
eqüestre, que, daí por diante, passou a ser a ordem rica de Roma. Os plebeus
que não possuíam a fortuna exigida para serem cavaleiros, foram repartidos
em cinco classes, de acordo com suas possibilidades. Os proletários foram
excluídos de todas as classes. Não tinham direitos políticos; se compareciam
aos comícios centuriais, é pelo menos certo que não votavam(2). A
constituição republicana conservou essas distinções estabelecidas por um rei,
e a plebe não se mostrou a princípio muito desejosa de estabelecer igualdade
entre seus membros.
O que se vê tão claramente em Atenas e em Roma encontra-se também em
quase todas as outras cidades. Em Cumes, por exemplo, os direitos políticos
não foram dados a princípio senão aos que, possuindo cavalos, formavam uma
espécie de ordem eqüestre; mais tarde, aqueles que os seguiam em riqueza
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
obtiveram os mesmos direitos, e essa última medida apenas elevou a mil o
número dos cidadãos. Em Régio o governo ficou por muito tempo nas mãos
dos mil cidadãos mais ricos da cidade. Em Túrio exigia-se grande fortuna para
fazer parte do corpo político. Vemos claramente nas poesias de Teógnis que
em Megara, depois da queda dos nobres, a riqueza passou a reinar. Em Tebas,
para se gozar dos direitos de cidadão, não se precisava ser nem artesão, nem
comerciante(3).
Assim os direitos políticos, que na época precedente eram inerentes ao
nascimento, tornaram-se, durante algum tempo, inerentes à fortuna. Essa
aristocracia de riqueza formou-se em todas as cidades, não por efeito de
cálculo, mas pela própria natureza do espírito humano, que, saindo de um
regime de profunda desigualdade, não alcançou imediatamente a igualdade
completa.
Deve-se notar que essa aristocracia não baseava sua superioridade unicamente
na riqueza. Em toda parte ela sempre procurou ser a classe militar,
encarregando-se de defender as cidades ao mesmo tempo em que as
governavam. Ela reservou para si as melhores armas e os maiores perigos das
batalhas, querendo imitar nisso a classe nobre, que substituía. Em todas as
cidades, os mais ricos constituíram a cavalaria(4); a classe abastada compôs o
corpo dos hoplitas ou dos legionários(5). Os pobres ficaram isentos do serviço
militar; quando muito empregavam-nos como vélites ou como peltastas, ou
entre os remadores da frota(6). A organização do exército correspondia assim,
com perfeita exatidão, à organização política da cidade. Os perigos estavam
proporcionados aos privilégios, e a força material encontrava-se nas mesmas
mãos em que se achava a riqueza(7).
Houve assim em quase todas as cidades cuja história nos é conhecida um
período durante o qual a classe rica, ou pelo menos a classe abastada, tomou
posse do governo. Esse regime político teve seus méritos, como qualquer
outro regime pode ter os seus, quando é conforme aos costumes da época, e
não é contrário às crenças em vigor. A nobreza sacerdotal da época anterior
certamente havia prestado grandes serviços, porque, pela primeira vez, havia
estabelecido leis e fundado governos regulares. Durante vários séculos, fizera
viver com calma e dignidade as sociedades humanas. A aristocracia da
riqueza teve outros méritos: imprimiu à sociedade e à inteligência novo
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
impulso. Saída do trabalho, sob todas as suas formas, ela soube honrá-lo e
estimulá-lo. Esse novo regime dava mais valor político ao homem mais
trabalhador, mais ativo, mais hábil; era, portanto, favorável ao
desenvolvimento da indústria e do comércio, como também o era ao progresso
intelectual, porque a aquisição dessa riqueza, que se ganhava ou se perdia, de
ordinário, de acordo com o mérito de cada um, fazia da instrução a primeira
necessidade, e da inteligência o mais poderoso impulso dos negócios
humanos. Não nos devemos portanto surpreender ao ver que sob esse regime
a Grécia e Roma ampliaram os limites de sua cultura intelectual, levando
avante sua civilização.
A classe rica não conservou o império em suas mãos tanto quanto a antiga
nobreza hereditária. Seus títulos para o governo não eram do mesmo valor.
Não possuía o caráter sagrado de que se revestia o antigo eupátrida; não
reinava em virtude das crenças e pela vontade dos deuses. Nada tinha em si
que pudesse dominar as consciências, forçando o homem a se submeter. O
homem somente se inclina diante do que julga ser o direito, ou do que suas
opiniões mostram muito superior a si próprio. Por muito tempo curvou-se
diante da superioridade religiosa do eupátrida, que dizia as preces e possuía os
deuses. Mas a riqueza não se lhe impunha. Diante da riqueza o sentimento
mais comum não é respeito, mas inveja. A desigualdade política resultante da
diferença de fortunas logo pareceu uma iniqüidade, e os homens trabalharam
para fazê-la desaparecer.
Além do mais, a série de revoluções, uma vez começada, não devia mais
parar. Os velhos princípios haviam sido derrubados, e não havia mais nem
tradições, nem regras fixas. Havia um sentimento geral de instabilidade das
coisas, que fazia com que nenhuma constituição fosse mais capaz de durar por
muito tempo. A nova aristocracia, portanto, foi atacada, como o havia sido a
antiga; os pobres quiseram ser cidadãos, e se esforçaram para penetrar por sua
vez no corpo político.
É impossível relatar os pormenores dessa nova luta. A história das cidades, à
medida que ela se afasta de suas origens, diversifica-se cada vez mais. Elas
passam pela mesma série de revoluções, mas, essas revoluções se apresentam
sob formas muito diferentes. Podemos pelo menos notar que nas cidades em
que o principal elemento da riqueza era a posse do solo, a classe rica foi por
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
mais tempo respeitada e soberana; e, pelo contrário, nas cidades como Atenas,
onde havia poucas fortunas territoriais, e onde os homens se enriqueciam
sobretudo pelo comércio e pela indústria, a instabilidade das fortunas
despertou mais cedo a cobiça e a esperança das classes inferiores, e a
aristocracia foi atacada mais cedo.
Os ricos de Roma resistiram por muito mais tempo que os da Grécia, por
causas que mais tarde relataremos. Mas quando lemos a história grega,
notamos com certa surpresa que a nova aristocracia defendeu-se mal. É
verdade que ela não podia, como os eupátridas, opor a seus adversários o
grande e poderoso argumento da tradição e da piedade; não podia chamar em
seu socorro os antepassados e os deuses; não tinha pontos de apoio em suas
crenças; não tinha fé na legitimidade de seus privilégios.
Pelo contrário, tinha a força das armas a seu favor, mas essa superioridade
acabou também por lhe faltar. As constituições criadas pelos Estados
durariam sem dúvida mais tempo se cada Estado pudesse permanecer no
isolamento, ou se pelo menos pudesse viver sempre em paz. Mas a guerra
perturba o mecanismo das constituições, e apressa as mudanças. Ora, entre as
cidades da Grécia ou da Itália o estado de guerra era quase perpétuo. O
serviço militar pesava com mais forca sobre a classe rica, pois era ela que
ocupava os primeiros lugares nas batalhas. Muitas vezes, ao voltar de uma
campanha, ela voltava para cidade dizimada e enfraquecida, e.
conseqüentemente, impossibilitada de enfrentar o partido popular. Em
Tarento, por exemplo, como a classe alta perdera a maior parte de seus
membros em uma guerra contra os jápiges, a democracia logo se estabeleceu
na cidade. O mesmo aconteceu em Argos, cerca de trinta anos antes: depois
de uma guerra infeliz contra os espartanos, o número de verdadeiros cidadãos
ficou tão reduzido, que se tornou necessário conceder direito de cidadania a
uma multidão de periecos(8). É para não cair nesse extremo que Esparta era
tão ciosa do sangue dos verdadeiros espartanos. Quanto a Roma, suas guerras
contínuas explicam em grande parte suas revoluções. A guerra destruiu a
princípio seu patriciado; das trezentas famílias dessa classe, existentes no
tempo dos reis, restava apenas um terço depois da conquista de Sâmnio. A
guerra ceifou em seguida a primitiva plebe, aquela plebe rica e corajosa, que
preenchia cinco classes e que formava as legiões.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Um dos efeitos da guerra era que as cidades quase sempre viam-se obrigadas
a dar armas às classes inferiores. É por isso que em Atenas, e em todas as
cidades marítimas, a necessidade de uma marinha e os combates marítimos
deram à classe pobre a importância que as constituições lhe negavam. Os
tetas, elevados à categoria de remadores, de marinheiros e até de soldados,
tendo nas mãos a salvação da pátria, sentiram-se necessários, e se tornaram
mais ousados. Tal foi a origem da democracia ateniense. Esparta temia a
guerra. Podemos ver em Tucídides sua lentidão e repugnância para entrar na
batalha. Contra a vontade, deixara-se arrastar à guerra do Peloponeso; mas
como se esforçou para se retirar! É que Esparta via-se obrigada a armar seus
hypoméiones, seus neodâmodas, seus motácios, lacônios, e até mesmo seus
ilotas; bem sabia ela que qualquer guerra, dando armas às classes oprimidas,
colocava-a em perigo de revolução, sendo necessário, à volta do exército, ou
submeter-se à lei dos ilotas, ou encontrar meios de massacrá-los sem causar
escândalo(9). Os plebeus caluniavam o senado de Roma quando o
censuravam por estar sempre a procurar novas guerras. O senado era muito
hábil. Sabia que essas guerras lhe custavam concessões e derrotas no fórum,
mas não podia evitá-las, porque Roma estava rodeada de inimigos.
É, portanto, fora de dúvida que a guerra, pouco a pouco, preencheu a distância
que a aristocracia da riqueza colocara entre ela e as classes inferiores. Por isso
bem depressa as constituições encontraram-se em desacordo com o estado
social, sendo necessário modificá-las. Aliás, devemos reconhecer que todo
privilégio estava necessariamente em desacordo com o princípio que então
governava os homens. O interesse público não era um princípio capaz de
autorizar e manter por muito tempo a desigualdade de classes, conduzindo
inevitavelmente as sociedades à democracia.
E isso era tão verdade que, mais cedo ou mais tarde, tornou-se necessário dar
a todos os homens livres direitos políticos. Desde que a plebe romana quis ter
comícios próprios, viu-se obrigada a admitir os proletários, sem poder realizar
a divisão de classes. A maior parte das cidades viram assim aparecerem
assembléias verdadeiramente populares, e o sufrágio universal foi
estabelecido.
Ora, o direito de sufrágio tinha então valor incomparavelmente maior que o
que pode ter nos Estados modernos. Por ele o último dos cidadãos imiscuía-se
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
em todos os negócios, nomeava magistrados, fazia leis, administrava a justiça,
decidia a guerra ou a paz, e redigia tratados de aliança. Bastava, portanto, essa
extensão do direito de sufrágio para que o governo se tornasse realmente
democrático.
É necessário fazer ainda uma última observação. Ter-se-ia talvez evitado o
aparecimento da democracia se se pudesse fundar o que Tucídides chama de
oligarkía isónomos, isto é, o governo para alguns e a liberdade para todos.
Mas os gregos não tinham idéias claras a respeito da liberdade; os direitos
individuais entre eles nunca tiveram garantias. Sabemos, por Tucídides, que
não é certamente suspeito de demasiado amor pelo governo democrático, que
sob o domínio da oligarquia o povo se via exposto a muitos vexames, a
condenações arbitrárias, a execuções violentas. Lemos nesse historiador que
era necessário o regime democrático para que os pobres tivessem um refúgio e
os ricos um freio. Os gregos nunca souberam conciliar igualdade civil
com desigualdade política. Para que o pobre não fosse prejudicado em seus
interesses pessoais, julgaram necessário dar-lhe direito ao voto, poder para
julgar nos tribunais e ser escolhido como magistrado. Aliás, se nos
lembrarmos de que entre os gregos o Estado era uma potência absoluta, e que
nenhum direito individual podia resistir-lhe, compreenderemos o imenso
interesse que tinha para cada homem, mesmo para o mais humilde, ter direitos
políticos, isto é, fazer parte do governo. Sendo tão onipotente o soberano
coletivo, o homem não podia ser coisa alguma senão como membro desse
soberano. Sua segurança e dignidade dependiam disso; desejavam possuir
direitos políticos, não para ter a verdadeira liberdade, mas para ter, pelo
menos, o que a pudesse substituir.
CAPÍTULO XI
REGRAS DO GOVERNO DEMOCRÁTICO. EXEMPLO DA
DEMOCRACIA ATENIENSE
À medida que essas revoluções seguiam seu curso, afastando-se do antigo
regime, o governo dos homens tornava-se mais difícil. Faziam-se necessárias
regras mais minuciosas, mecanismos mais complicados, mais delicados. É o
que podemos observar pelo exemplo do governo de Atenas.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Atenas contava com grande número de magistrados. Em primeiro lugar,
conservou todos os da época precedente: o arconte, que dava nome ao ano, e
cuidava da continuidade do culto doméstico; o rei, que oferecia os sacrifícios;
o polemarco, que figurava como chefe do exército e julgava os estrangeiros;
os seis tesmótetas, que, segundo parece, administravam a justiça, mas na
realidade nada mais faziam senão presidir aos grandes júris; havia ainda os
dez hierópoioi, que consultavam os oráculos, e faziam alguns sacrifícios; os
parásitoi que acompanhavam o arconte e o rei nas cerimônias; os dez
atlótetas, que ocupavam o cargo durante quatro anos, para preparar a festa de
Atenas; enfim, os prítanos, que, em número de cinqüenta, ficavam
permanentemente reunidos a fim de velar pela manutenção do fogo sagrado
da cidade e pela continuação dos banquetes sagrados. Por essa lista podemos
ver que Atenas continuava fiel às tradições dos velhos tempos; tantas
revoluções não haviam ainda destruído aquele respeito supersticioso.
Ninguém ousava romper com as velhas formas da religião nacional; a
democracia continuava com o culto instituído pelos eupátridos.
Vinham em seguida os magistrados especialmente criados para a democracia,
que não eram sacerdotes, e que velavam pelos interesses materiais da cidade.
Em primeiro lugar havia os dez estrategos, que se ocupavam dos problemas
da guerra e da política; depois, os dez astínomos, que cuidavam da polícia; os
dez agorânomos, que vigiavam os mercados da cidade e do Pireu; os quinze
sitofilace, que cuidavam da venda do trigo; os quinze metrônomos, que
controlavam os pesos e as medidas; os dez guardas do tesouro, os dez
recebedores de impostos, os onze encarregados da execução das sentenças.
Acrescentemos ainda que a maior parte dessas magistraturas repetiam-se em
cada uma das tribos e em cada demo. O menor grupo da população, na Ática,
tinha seu arconte, seu sacerdote, seu secretário, seu recebedor, seu chefe
militar. Quase não se podia dar um passo na cidade ou no campo sem
encontrar um magistrado.
Essas funções eram anuais, resultando daí que não havia ninguém sem
esperanças de um dia exercer alguma magistratura. Os magistrados sacerdotes
eram escolhidos por sorte. Os magistrados que não exerciam senão funções de
ordem pública eram eleitos pelo povo. Todavia, tomavam-se precauções
contra os caprichos da sorte ou do sufrágio universal; cada novo eleito era
submetido a um exame, ou diante do senado, ou diante dos magistrados que
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
deixavam o cargo, ou diante do Areópago; não se exigiam provas de
capacidade ou de talento, mas se procedia a um inquérito sobre a probidade do
candidato e sua família; exigia-se também que todo magistrado tivesse um
patrimônio em bens de raiz(1).
Poderá parecer que esses magistrados, eleitos pelos sufrágios de seus iguais,
nomeados apenas por um ano, responsáveis, e até revogáveis, tivessem pouco
prestígio e autoridade. Basta, contudo, ler Tucídides e Xenofonte para se ter
certeza de que eles eram respeitados e obedecidos. Sempre houve no caráter
dos antigos, mesmo dos atenienses, grande facilidade para se submeterem a
uma disciplina. Isso era talvez conseqüência dos hábitos de obediência que o
governo sacerdotal lhes havia dado. Estavam acostumados a respeitar o
Estado, e todos os que, nos diversos cargos, o representavam. Não lhes vinha
ao espírito a tentação de desprezar um magistrado, porque este havia sido
escolhido por eles; o voto era considerado uma das fontes mais santas da
autoridade(2).
Abaixo dos magistrados, que não tinham outra obrigação que a de fazer
executar as leis, havia o senado. Este não passava de um corpo deliberativo,
uma espécie de Conselho de Estado; não agia, não promulgava leis, não
exercia nenhum domínio. Não se via nenhum inconveniente em que fosse
renovado todos os anos, porque o senado não exigia de seus membros nem
inteligência superior, nem grande experiência. Compunha-se dos cinco
prítanes de cada tribo, que exerciam sucessivamente as funções sagradas, e
deliberavam todo o ano acerca dos interesses religiosos ou políticos da cidade.
Provavelmente, porque o senado não era em sua origem senão a reunião dos
prítanes, isto é, dos padres anuais do lar, é que se conservou o costume de
nomeá-los por sorte. É justo dizer que, tirada a sorte, cada nome era
submetido a uma prova, sendo rejeitados os que não pareciam suficientemente
honrados(3).
Acima do próprio senado estava a assembléia do povo. Este era o verdadeiro
soberano. Mas, assim como nas monarquias bem constituídas o monarca se
cerca de precauções contra seus próprios caprichos e erros, assim a
democracia tinha regras invariáveis, às quais se submetia.
A assembléia era convocada pelos prítanes ou os estrategos. Reunia-se em
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
recinto consagrado pela religião; desde a manhã os sacerdotes haviam dado a
volta ao Pnix, imolando vítimas e invocando a proteção dos deuses. O povo
sentava-se em bancos de pedra. Sobre uma espécie de estrado elevado
tomavam lugar os prítanes ou proedros, que presidiam à assembléia. Quando
todos estavam sentados, um sacerdote Kéryx levantava a voz: Guardai
silêncio dizia silêncio religioso (euphemía); rogai aos deuses e às
deusas (e aqui nomeava as principais divindades do país) a fim de que tudo se
passe do melhor modo possível nesta assembléia, para maior honra de Atenas
e felicidade dos cidadãos. Depois o povo, ou alguém em seu nome,
respondia: Invocamos os deuses para que protejam a cidade. Que prevaleça a
opinião do mais sábio! Seja maldito aquele que nos der maus conselhos, que
pretender mudar os decretos ou as leis, ou que revelar nossos segredos ao
inimigo(4)!
Depois o arauto, de acordo com a ordem dos presidentes, declarava o assunto
a ser discutido pela assembléia, assunto este que só era apresentado ao povo
depois de discutido ou estudado pelo senado. O povo não tinha o que em
linguagem moderna se chama de iniciativa; o senado apresentava-lhe um
projeto de decreto; ele podia rejeitá-lo ou aprová-lo, mas não devia deliberar
sobre nada mais.
Depois que o arauto procedia à leitura do projeto de decreto, a discussão
estava aberta. O arauto dizia: Quem quer tomar a palavra? Os oradores
subiam à tribuna, por ordem de idade. Todos podiam falar, sem distinção de
fortuna nem de profissão, mas com a condição de que provasse que gozava de
direitos civis políticos, que não devia ao Estado, que era de bons costumes,
que se casara legitimamente, que possuía bens imóveis na Ática, que cumprira
todos seus deveres para com os pais, que havia feito todas as expedições
militares para as quais fora convocado, e que não se desfizera do escudo em
nenhum combate(5).
Uma vez tomadas essas precauções contra a eloqüência, o povo abandonavase
a ela inteiramente. Os atenienses, como diz Tucídides, não acreditavam que
a palavra prejudicasse à ação. Pelo contrário, sentiam necessidade de serem
esclarecidos. A política não era mais, como no regime precedente, um caso de
tradição e de fé. Era necessário refletir e pesar as razões. A discussão era
necessária, porque toda questão era mais ou menos obscura, e somente a
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
palavra podia pôr a verdade à luz. O povo ateniense queria que cada problema
lhe fosse apresentado sob todas as suas diversas faces, e que lhe mostrassem
claramente os prós e os contras. Tinha em grande conta seus oradores; dizem
até que pagavam-lhe pelos discursos que pronunciavam na tribuna(6). Fazia
mais ainda: dava-lhes ouvidos, razão pela qual não devemos imaginar uma
multidão barulhenta, turbulenta. A atitude do povo, pelo contrário, era muito
outra; o poeta cômico representa-o escutando boquiaberto, imóvel em seus
bancos de pedra(7). Os historiadores e os oradores nos descrevem
freqüentemente essas reuniões populares; quase nunca vemos um orador
interrompido; quer se trate de Péricles ou Cléon, Ésquino ou Demóstenes, o
povo está atento; quer o lisonjeiem ou o repreendam, ele escuta, deixando que
se exprimam as opiniões mais contraditórias com paciência digna de louvor.
Às vezes ouvem-se murmúrios; jamais gritos ou algazarra. O orador, diga o
que disser, pode sempre chegar ao fim do discurso.
Em Esparta a eloqüência é desconhecida, porque os princípios do governo não
são os mesmos. A aristocracia ainda governa, e tem tradições fixas, que a
dispensam de debater longamente o pró e o contra de cada questão Em Atenas
o povo quer ser instruído, e não se decide senão depois de debates
contraditórios; não age senão quando está convencido, ou se julga tal. Para
dirigir o mecanismo do sufrágio universal faz-se necessária a palavra; a
eloqüência é a mola do governo democrático. Por isso os oradores logo
recebem o título de demagogos, isto é, de condutores da cidade, e são eles,
com efeito, que a fazem agir, que determinam todas suas resoluções.
Previu-se o caso em que um orador apresentasse proposta contrária às leis
existentes. Atenas possuía magistrados especiais, chamados guardas das leis.
Em número de sete, vigiavam a assembléia, sentados em cadeiras elevadas, e
pareciam representar a lei, que está acima do povo. Se percebiam que uma lei
era atacada, interrompiam o orador no meio do discurso, e ordenavam a
dissolução imediata da assembléia. O povo se dispersava, sem ter o direito de
votar(8).
Havia uma lei, pouco aplicada, na verdade, que punia todo orador convencido
de haver dado mau conselho ao povo. Havia outra que proibia o acesso à
tribuna a todo orador que aconselhasse três vezes resoluções contrárias às leis
existentes(9).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Atenas sabia muito bem que a democracia não se pode sustentar senão pelo
respeito às leis. O cuidado de procurar modificações que pudessem ser úteis à
legislação pertencia especialmente aos tesmótetas. Suas proposições eram
apresentadas ao senado, que tinha o direito de rejeitá-las, mas não de convertêlas
em leis. Em caso de aprovação o senado convocava a assembléia, e lhe
comunicava o projeto dos tesmótetas. Mas o povo não devia resolver nada
imediatamente; a discussão era adiada para outro dia, e enquanto isso
escolhiam-se cinco oradores que tinham a missão especial de defender a
antiga lei, e pôr em evidência os inconvenientes da inovação proposta. No dia
fixado, o povo se reunia novamente, e escutava primeiro os oradores
encarregados da defesa das leis antigas, e depois os que apoiavam as novas.
Ouvidos os discursos, o povo ainda não se pronunciava. Contentava-se com
nomear uma comissão, muito numerosa, mas composta exclusivamente de
homens que tivessem exercido o cargo de juiz. Essa comissão retomava o
exame do caso, ouvindo novamente os oradores, discutia e deliberava. Se
rejeitasse a lei proposta, seu julgamento não tinha apelação. Se a aprovava,
reunia ainda uma vez o povo, que para essa terceira vez, devia enfim votar, e
então os sufrágios transformavam o projeto em lei(10).
Apesar de toda essa prudência, podia ainda acontecer que uma proposição
injusta ou funesta fosse adotada. Mas a nova lei levava para sempre o nome
do autor, que podia mais tarde ser perseguido judicialmente, e punido. O
povo, como verdadeiro soberano, era considerado impecável; mas cada orador
ficava sempre responsável pelo conselho dado(11).
Tais eram as regras às quais a democracia prestava obediência. Por isso não
devemos concluir que jamais tenha cometido faltas. Seja qual for a forma de
governo, monarquia, aristocracia, democracia, há dias em que a razão é que
governa, e outros em que é a paixão. Nenhuma constituição jamais suprimiu
as fraquezas e vícios da natureza humana. Quanto mais minuciosas as regras,
mais elas acusam que o governo da sociedade é difícil e cheio de perigos. A
democracia não podia durar senão à força de prudência.
Admiramo-nos por isso de todo o trabalho que essa democracia exigia dos
homens. Era um governo muito trabalhoso. Vede como se passa a vida de um
ateniense. Um dia é chamado à assembléia de seu demo, onde deve deliberar a
respeito dos interesses religiosos ou financeiros dessa pequena associação.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Outro dia é convocado para a assembléia da tribo: trata-se de regulamentar
uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de promulgar decretos, ou
de nomear chefes ou juízes. Três vezes por mês, regularmente, deve assistir à
assembléia geral do povo, e não tem direito de faltar. Ora, a reunião é longa e
ele não vai apenas para votar: chegando pela manhã) tem de ficar até uma
hora avançada do dia para ouvir os oradores. Não pode votar se não chegou
no princípio da reunião, e se não ouviu todos os discursos. Esse voto é para
ele um negócio dos mais sérios; ora se trata de nomear chefes políticos ou
militares, isto é, aqueles a quem seu interesse e sua vida vão ser confiados por
um ano; ora é um imposto que deve ser criado, ou uma lei que deve ser
modificada; ora deve votar sobre a guerra, sabendo que terá de dar seu
sangue, ou o de seus filhos. Os interesses individuais estão unidos
inseparavelmente ao interesse do Estado. O homem não pode ser nem
indiferente, nem leviano. Se se engana, sabe que logo sofrerá as
conseqüências, e que em cada voto arrisca a fortuna e a vida. No dia em que
se decidiu a malograda expedição da Sicília, não havia cidadão que não
soubesse que um dos seus participaria da mesma, e que devia aplicar toda sua
atenção para avaliar todas as vantagens e perigos que semelhante guerra
poderia trazer. Havia absoluta necessidade de reflexão e de esclarecimento,
porque um desastre para a pátria representava para cada cidadão diminuição
de sua dignidade pessoal, de sua segurança, de sua riqueza.
O dever do cidadão limitava-se ao voto. Quando chegava sua vez, ele se
tornava magistrado do demo ou da tribo. Cada dois anos, em média(12), era
heliasta, isto é, juiz, e passava todo esse ano nos tribunais, ocupado em ouvir
os advogados e em aplicar as leis. Talvez não houvesse cidadão que não fosse
chamado duas vezes na vida para fazer parte do Senado dos Quinhentos;
então, durante um ano, sentava-se todos os dias, da manhã à noite, recebendo
os depoimentos dos magistrados, fazendo-os prestar contas, respondendo aos
embaixadores estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixadores
atenienses, examinando todos os casos que deviam ser submetidos ao povo, e
preparando todos os decretos. Enfim, ele podia ser magistrado da cidade,
arconte, estratego, astínomo, se a sorte ou o sufrágio o designasse para esses
cargos. Vê-se que era trabalhoso ser cidadão de um Estado democrático; era o
mesmo que ocupar quase toda uma existência, deixando muito pouco tempo
para os trabalhos pessoais e a vida doméstica. Por isso Aristóteles dizia, com
muita justiça, que o homem que tinha necessidade de trabalhar para viver não
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
podia ser cidadão. Tais eram as exigências da democracia. O cidadão, como o
funcionário público de nossos dias, pertencia inteiramente ao Estado. Davalhe
seu sangue na guerra, seu tempo na paz. Não era livre de deixar de lado os
negócios públicos para se dedicar com mais cuidado aos negócios
particulares. Antes, devia negligenciar a estes para trabalhar em proveito da
cidade. Os homens passavam a vida a se governar. A democracia não podia
durar senão sob a condição do trabalho incessante de todos os cidadãos. Por
pouco que o zelo se afrouxasse, ela devia ou perecer ou se corromper.
CAPÍTULO XII
RICOS E POBRES. DESAPARECE A DEMOCRACIA. OS TIRANOS
POPULARES
Quando uma série de revoluções estabeleceu a igualdade entre os homens, e
não havia mais ocasião para se combater por princípios e direitos, os homens
passaram a guerrear pelo interesse. Esse novo período da história das cidades
teve início para todas ao mesmo tempo. Em umas, ele seguiu de muito perto o
estabelecimento da democracia; em outras, não apareceu senão depois de
várias gerações que souberam governar-se com calma. Mas todas as cidades,
cedo ou tarde, caíram em lutas deploráveis.
À medida que se afastavam do antigo regime, formara-se uma classe pobre.
Antes, quando cada homem fazia parte de uma gens, e tinha um chefe, a
miséria era quase desconhecida. O homem era alimentado pelo chefe; aquele a
quem ele prestava obediência devia retribuir atendendo a todas as suas
necessidades. Mas as revoluções, que haviam dissolvido o ghénos, também
haviam mudado as condições da vida humana. No dia em que o homem se
libertou dos laços da clientela, viu levantarem-se diante de si as necessidades
e dificuldades da existência. A vida tornara-se mais independente, mas
também mais laboriosa, e sujeita a acidentes. Cada um, de agora em diante,
devia cuidar do próprio bem-estar; cada um tinha agora sua propriedade e seu
trabalho. Uns enriqueciam por sua atividade e boa sorte, e outros continuavam
pobres. A desigualdade da riqueza é inevitável em qualquer sociedade que não
queira continuar no estado patriarcal ou na condição de tribo.
A democracia não suprimiu a miséria; pelo contrário, tornou-a mais sensível.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A igualdade de direitos políticos tornou mais evidentes ainda a desigualdade
de condições.
Como não havia nenhuma autoridade que se levantasse acima dos ricos e dos
pobres ao mesmo tempo, e que fosse capaz de conservá-los em paz, seria de
desejar que as condições econômicas e as condições de trabalho fossem tais
que ambas as classes se vissem forçadas a viver em harmonia. Seria
necessário, por exemplo, que tivessem necessidade uma da outra, que o rico
não pudesse enriquecer a não ser dependendo do trabalho do pobre, e que o
pobre encontrasse meios de viver ajudando o rico. Então a desigualdade de
fortunas teria estimulado a inteligência do homem, e não teria provocado a
corrupção e a guerra civil.
Mas muitas cidades careciam absolutamente de indústria e de comércio, e
portanto não tinham recursos para aumentar a riqueza pública, a fim de dar
algo ao pobre sem prejudicar a ninguém. Nas cidades onde havia comércio
quase todos os benefícios eram para os ricos, como conseqüência do valor
exagerado do dinheiro. Se havia indústria, os trabalhadores, em sua maior
parte, eram escravos. Sabemos que o rico de Roma ou de Atenas tinha em sua
casa oficinas para tecelões, cinzeladores, armeiros, todos escravos. Mesmo as
profissões liberais eram quase que proibidas ao cidadão. O médico era quase
sempre um escravo, que curava os doentes em proveito de seu senhor. Os
empregados de banco, muitos arquitetos, os construtores de navios, os baixos
funcionários do Estado, eram escravos. A escravidão era um flagelo que fazia
sofrer à própria sociedade. O cidadão quase não tinha empregos, não
encontrava trabalho. A falta de ocupação logo o tornava preguiçoso. Como
não via trabalhar senão os escravos, desprezava o trabalho. Desse modo os
hábitos econômicos, as disposições morais, tudo se aliava para impedir que o
pobre saísse da miséria e vivesse honestamente. Riqueza e pobreza não
estavam constituídas de maneira a poder viver em paz.
O pobre tinha igualdade de direitos. Mas certamente os sofrimentos diários
inspiravam-lhe a idéia de que a igualdade de fortunas seria bem mais
preferível. Ora, não passou muito tempo sem que ele percebesse que a
igualdade que tinha podia servir-lhe para conquistar a que não tinha, e que,
senhor dos sufrágios, podia vir a ser senhor da riqueza.
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Começou por querer viver de seu direito de sufrágio. Fez-se pagar para
assistir à assembléia, ou para julgar nos tribunais(1). Se a cidade não era
bastante rica para arcar com tais despesas, o pobre tinha outros recursos.
Vendia o próprio voto, e como as ocasiões de votar eram freqüentes,
conseguia viver. Em Roma, esse comércio se fazia regularmente, e às claras;
em Atenas, era mais escondido. Em Roma, onde o pobre não entrava nos
tribunais, ele se vendia como testemunha; em Atenas, como juiz. Tudo isso
não tirava o pobre da miséria, e lançava-o na degradação.
Não bastando esses expedientes, o pobre usou de meios mais enérgicos.
Organizou uma guerra em regra contra a riqueza. Essa guerra, a princípio, foi
disfarçada sob formas legais; os ricos foram encarregados de todas as
despesas públicas; carregaram-nos de impostos, encarregaram-nos de
construir as trirremes, e queriam ainda que oferecessem festas ao povo(2).
Depois, multiplicaram-se as multas nos julgamentos, declarou-se a
confiscação dos bens pelas menores faltas. Será possível dizer quantos
homens foram condenados ao exílio pela única razão de que eram ricos? A
fortuna do exilado ia para o tesouro público, de onde saía, sob a forma de
trióbolo, para ser dividida entre os pobres. Mas tudo isso ainda não bastava,
porque o número de pobres aumentava sempre mais. Os pobres, então, em
muitas cidades, passaram a usar do direito de voto para decretar abolição de
dívidas, ou confiscação em massa, e total subversão.
Nas épocas precedentes ainda se respeitava o direito de propriedade, porque
tinha por fundamento uma crença religiosa. Enquanto cada patrimônio estava
ligado a um culto, e era considerado inseparável dos deuses domésticos de
uma família, ninguém pensou que se tivesse o direito de privar um homem de
seu campo. Mas na época em que as revoluções nos conduziram, essas velhas
crenças foram abandonadas, e a religião da propriedade desapareceu. A
riqueza não é mais um terreno sagrado e inviolável. Não parece mais um dom
dos deuses, mas um presente do acaso. Surge então o desejo de se apoderar
dela, tirando-a de quem tem; e esse desejo, que outrora pareceria impiedade,
começa a parecer legítimo. Não se vê mais o princípio superior que consagra
o direito de propriedade; cada um só sente a própria necessidade, e por esta
mede seu direito.
Já dissemos que a cidade, sobretudo entre os gregos, tinha um poder sem
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limites, que a liberdade era desconhecida, e que o direito individual não
significava nada em relação com a vontade do Estado. Resultava daí que a
maioria de votos podia decretar o confisco dos bens dos ricos, e que os gregos
não viam nisso nem ilegalidade, nem injustiça. O que o Estado decidira era o
direito. Essa ausência de liberdade individual foi causa de desordens para a
Grécia. Roma, que respeitava um pouco mais o direito do homem, também
sofreu menos.
Plutarco conta que em Megara, depois de uma insurreição, decretou-se que as
dívidas seriam abolidas, e que os credores, além da perda do capital, seriam
obrigados a reembolsar os juros já pagos(3).
Em Megara, como em outras cidades diz Aristóteles(4) o partido
popular, apoderando-se do poder, começou por declarar o confisco dos bens
contra algumas famílias ricas. Mas, uma vez nesse caminho, não lhe foi mais
possível parar. Era necessário fazer cada dia uma nova vítima, e no fim o
número dos ricos atingidos pelo confisco e pelo exílio tornou-se tão grande,
que formaram um exército.
Em 412, o povo de Samos condenou à morte duzentos de seus adversários,
exilou outros quatrocentos, dividindo suas terras e casas(5).
Em Siracusa, o povo, apenas se viu livre do tirano Dionísio, logo na primeira
assembléia decretou a divisão das terras(6).
Nesse período da história grega, todas as vezes que vemos uma guerra civil,
os ricos são de um partido e os pobres do outro. Estes querem apoderar-se da
riqueza, aqueles querem conservá-la ou retomá-la. Em toda guerra civil
diz um historiador grego o problema é a mudança das fortunas(7).
Todo demagogo fazia como aquele Molpágoras de Cios, que entregava à
multidão os que possuíam dinheiro, massacrava uns, exilava outros, e
distribuía seus bens entre os pobres. Em Messênia, desde que o partido
popular tomou o poder, passou a exilar os ricos e a dividir suas terras(8).
As classes elevadas, entre os antigos, nunca tiveram bastante inteligência nem
habilidade para dirigir os pobres ao trabalho, ajudando-os a sair honrosamente
da miséria e da corrupção. Alguns homens de exceção tentaram fazê-lo, mas
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sem êxito. Resultava daí que a cidade flutuava sempre entre duas revoluções,
uma que despojava os ricos, outra que os fazia voltar à posse de sua fortuna.
Isso durou desde a guerra do Peloponeso até à conquista da Grécia pelos
romanos.
Em cada cidade o rico e o pobre eram inimigos, que viviam um ao lado do
outro, um ambicionando a riqueza, outro vendo a própria riqueza cobiçada.
Entre eles não havia nenhuma relação, nenhum serviço, nenhum trabalho que
os unisse. O pobre não podia adquirir a riqueza senão despojando o rico. O
rico não podia defender seus bens senão com extrema habilidade, ou com a
força. Ambos se olhavam com rancor. Em cada cidade havia dupla
conspiração: os pobres conspiravam por cobiça, os ricos por medo. Aristóteles
afirma que os ricos pronunciavam entre si este juramento: Juro ser eterno
inimigo do povo, e de lhe fazer todo o mal que puder(9).
Não é possível dizer qual das duas partes cometeu mais atrocidades e crimes.
O ódio apagava do coração qualquer sentimento de humanidade. Em
Mileto houve uma guerra entre ricos e pobres. Estes, a princípio, venceram, e
forçaram os ricos a fugir da cidade. Mas depois, lamentando não ter podido
degolá-los, tomaram seus filhos, fecharam-nos em currais, e deixaram-nos
pisar pelas patas dos bois. Os ricos tornaram a conquistar a cidade. Pegaram,
por sua vez, os filhos dos pobres, besuntaram-nos com piche, e queimaramnos
vivos(10).
Que acontecia então com a democracia? Ela não era precisamente responsável
por esses excessos e crimes, mas foi a primeira a ser atingida. Não havia mais
regras. Ora, a democracia não pode viver senão por meio de regras muito
restritas, e melhor ainda observadas. Não se viam mais verdadeiros governos,
mas facções no poder. O magistrado não exercia mais sua autoridade em
proveito da paz e da lei, mas em proveito dos interesses e cobiças de um
partido. O comando não tinha mais nem títulos legítimos, nem caráter
sagrado; a obediência não tinha mais nada de voluntário; sempre
constrangida, estava sempre à espera de uma desforra. A cidade, como diz
Platão, não era mais que um ajuntamento de homens, dos quais parte era
senhora, parte escrava. Dizia-se que o governo era aristocrático quando os
ricos estavam no poder, democrático quando estavam os pobres. Na realidade,
a verdadeira democracia deixara de existir.
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A partir do dia em que as necessidades e interesses materiais a invadiram, ela
se alterou, se corrompeu. A democracia, com os ricos no poder, tornara-se
oligarquia violenta; a democracia dos pobres transformara-se em tirania. Do
quinto até o segundo século antes de nossa era vemos que em todas as cidades
da Grécia e da Itália, excetuando-se ainda Roma, as formas republicanas são
postas em perigo, e que se tornam odiosas a um partido. Ora, podemos
distinguir claramente quem são os que desejam destruí-las e quem são os que
as querem conservar. Os ricos, mais esclarecidos e orgulhosos, continuam
fiéis ao regime republicano, enquanto que os pobres, para quem os direitos
políticos têm menos valor, escolhem de bom grado por chefe a um tirano.
Quando essa classe pobre, depois de muitas guerras civis, reconhece que suas
vitórias de nada servem, que o partido contrário sempre voltava ao poder, e
que depois de longas alternativas de confiscos e restituições, a luta estava
sempre por recomeçar, imaginou estabelecer um regime monárquico que fosse
conforme a seus interesses, e que, reprimindo para sempre o partido contrário,
lhe assegurasse para o futuro os benefícios da vitória. É por isso que criou os
tiranos.
A partir desse momento os partidos mudaram de nome; não se era mais
aristocrata ou democrata; combatia-se pela liberdade ou pela tirania. Sob essas
duas palavras eram ainda a riqueza e a pobreza que estavam em luta.
Liberdade significava governo onde os ricos tinham o comando e defendiam
suas fortunas; tirania indicava exatamente o contrário.
É um fato geral, e quase sem exceção na história da Grécia e da Itália, que os
tiranos saiam dos partidos populares, e tenham por inimigo o partido
aristocrático. O tirano diz Aristóteles não tem por missão senão
proteger o povo contra os ricos; sempre começou por ser demagogo; faz parte
da essência da tirania combater a aristocracia. O meio de chegar à tirania
diz ele ainda é conquistar a confiança do povo; ora, para isso é preciso
que alguém se declare inimigo dos ricos. Assim fizeram Pisístrato em Atenas,
Teágenes em Megara, Dionísio em Siracusa(11).
O tirano sempre combate os ricos. Em Megara, Teágenes surpreende no
campo os rebanhos dos ricos, e degola-os. Em Cumes, Aristodemo perdoa as
dívidas, e tira as terras dos ricos para dá-las aos pobres. Assim fazem Nícocles
em Sícion, Aristômaco em Argos. Todos esses tiranos nos são representados
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pelos escritores como extremamente cruéis; não é provável que todos o
fossem por natureza, mas o eram pela necessidade premente em que se
encontravam de dar terras ou dinheiro aos pobres. Eles não podiam manter-se
no poder senão enquanto satisfaziam à ambição da plebe, e alimentavam suas
paixões.
O tirano das cidades gregas é um personagem do qual ninguém hoje em dia
pode dar-nos idéia. É um homem que vive no meio de seus súditos, sem
intermediário e sem ministros, e que governa diretamente. Não está na
posição elevada e independente de um soberano de grande Estado. Tem todas
as pequenas paixões do homem particular; não é insensível aos lucros de uma
confiscação; é acessível à cólera e ao desejo de vingança pessoal; tem medo;
sabe que tem inimigos ao lado, e que a opinião pública aprova o assassinato,
quando o agredido é um tirano. Podemos adivinhar o que pode ser o governo
de tal homem. Salvo duas ou três exceções honrosas, os tiranos que se
levantaram em duas ou três cidades gregas, no quarto ou terceiro século, não
reinaram senão lisonjeando o que havia de pior na multidão, e derrubando
violentamente tudo o que era superior pelo nascimento, riqueza ou
merecimento. Seu poder era ilimitado; os gregos puderam avaliar quanto o
governo republicano, quando não professa grande respeito pelos direitos
individuais, se transforma facilmente em despotismo. Os antigos haviam dado
tal poder ao Estado, que no dia em que um tirano tomava nas mãos essa
onipotência, os homens não tinham mais nenhuma garantia contra ele, pois,
ele era legalmente o senhor de suas vidas e bens.
CAPÍTULO XIII
REVOLUÇÕES DE ESPARTA
Não devemos acreditar que Esparta tenha vivido dez séculos sem ver
revoluções. Tucídides nos diz, pelo contrário, que ela sofreu com as
dissensões mais que nenhuma outra cidade grega(1). A história dessas lutas
internas, na verdade, é-nos pouco conhecida, mas isso aconteceu porque o
governo de Esparta tinha por hábito rodear-se do mais profundo mistério(2).
A maior parte das lutas que a agitaram ficaram encobertas e foram esquecidas;
pelo menos, sabemos o suficiente para poder afirmar que, se a história de
Esparta difere sensivelmente das outras cidades, nem por isso deixou de
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passar pela mesma série de revoluções.
Os dórios já se haviam organizado como povo quando invadiram o
Peloponeso. Qual a causa que os obrigou a sair do país? Seria uma invasão de
um povo estranho, uma revolução interna? Não o sabemos. O que parece certo
é que nesse momento da existência do povo dório o antigo regime da gens já
havia desaparecido. Não se distingue mais em seu meio aquela antiga
organização da família; não se encontram mais vestígios do regime patriarcal,
de nobreza religiosa nem de clientela hereditária; não se vêem senão
guerreiros iguais debaixo de um só rei. É, portanto, provável que uma
primeira revolução social já houvesse acontecido, ou na Dórida, ou no
caminho que conduzia esse povo até Esparta. Se se compara a sociedade dória
do século nono com a sociedade jônia da mesma época, percebe-se que a
primeira estava muito mais avançada que a outra na série de transformações.
A raça jônia entrou mais tarde no caminho das revoluções; é verdade que ela o
percorreu mais depressa.
Se os dórios, por ocasião de sua chegada a Esparta, não tinham mais o regime
da gens, não haviam podido libertar-se do mesmo de modo tão completo, a
ponto de não guardarem dele algumas instituições, como por exemplo, a
indivisão e a inalienabilidade do patrimônio. Essas instituições não tardaram
em restabelecer na sociedade espartana a aristocracia.
Todas as tradições mostram-nos que na época em que apareceu Licurgo havia
duas classes entre os espartanos, e que ambas estavam em luta(3). A realeza
tinha uma tendência natural para tomar o partido da classe inferior. Licurgo,
que não era rei, se pôs a frente dos melhores(4), forçou o rei a prestar um
juramento que diminuía seu poder, instituiu um senado oligárquico, e fez,
enfim, com que, de acordo com expressão de Aristóteles, a tirania se
transformasse em aristocracia(5).
As declamações de alguns antigos e de muitos modernos sobre a sabedoria
das instituições de Esparta, sobre a felicidade inalterável de que gozava, sobre
a igualdade, sobre a vida em comum, não devem iludir-nos. De todas as
cidades que há sobre a terra, Esparta é talvez aquela em que a aristocracia
reinou mais duramente, e em que menos se conheceu a igualdade. Não é
necessário falar da divisão igual das terras; se essa igualdade algum dia foi
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estabelecida, pelo menos é certo que não se manteve, porque nos tempos de
Aristóteles alguns possuíam domínios imensos, enquanto outros não tinham
nada, ou quase nada; em toda a Lacônia contavam-se apenas cerca de mil
proprietários(6).
Deixamos de lado ilotas e lacônios, e examinemos apenas a sociedade
espartana: encontramos aí uma jerarquia de classes sobrepostas uma à outra.
Em primeiro lugar estão os neodâmodas, que parecem ser antigos escravos
libertos(7); depois os epeumactas, admitidos para preencher os vazios
causados pela guerra entre os espartanos(8); em categoria pouco superior
figuravam os motácios, que, muito semelhantes a clientes domésticos, viviam
com um senhor, formavam sua corte, partilhavam de suas ocupações, de seus
trabalhos, de suas festas, e combatiam a seu lado(9). Vinha em seguida a
classe dos bastardos, nóthoi, que descendiam de espartanos legítimos, mas
que a religião e a lei afastavam deles(10); depois ainda uma classe chamada
dos inferiores, hypoméiones(11), que eram talvez irmãos mais novos
deserdados pelas famílias. Enfim, acima de tudo isso, levantava-se a
aristocracia, composta de homens que se chamavam Iguais, hómoioi. Esses
homens eram com efeito iguais entre si, mas muito superiores a todos os
outros. O número dos membros dessa classe é-nos desconhecido; sabemos
apenas que era muito restrito. Um dia, um de seus inimigos contou-os na
praça pública, e não encontrou mais que sessenta no meio de uma multidão de
quatro mil indivíduos(12). Somente esses iguais podiam tomar parte no
governo da cidade. Estar fora dessa classe diz Xenofonte é ficar
fora do corpo político(13). Demóstenes diz que o homem que entra na classe
dos iguais somente por isso se torna um dos senhores do governo(14).
Chamam-nos de Iguais, diz ele ainda, porque entre os membros de uma
oligarquia deve haver igualdade.
Esses Iguais eram os únicos que tinham a plenitude dos direitos civis;
somente eles formavam o que em Esparta se chamava de povo, isto é, o corpo
político. Dessa classe saíam, por eleição, os vinte e oito senadores. Entrar para
o senado chamava-se na língua oficial de Esparta obter o prêmio da virtude
(15). Não sabemos quanto mérito, nascimento ou riqueza eram necessários
para compor essa virtude. Vemos logo que não bastava o nascimento, porque
havia pelo menos um arremedo de eleição(16); podemos ainda acreditar que a
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riqueza devia ter muita importância em uma cidade que tinha na mais alta
consideração o amor do dinheiro, e na qual tudo era permitido aos ricos(17).
Seja como for, esses senadores, que eram inamovíveis, gozavam de grande
autoridade, pois Demóstenes afirma que no dia em que um homem entra para
o senado, torna-se déspota para a multidão(18). Esse senado, de que os reis
eram simples membros, governava o Estado de acordo com o processo
habitual dos corpos aristocráticos; magistrados anuais, cuja eleição lhe
pertencia inteiramente, exerciam em seu nome autoridade absoluta. Esparta
possuía assim um regime republicano, com todas as aparências de
democracia: reis, sacerdotes, magistrados anuais, senado deliberativo,
assembléias populares. Mas esse povo não era mais que a reunião de duzentos
ou trezentos homens.
Assim foi desde Licurgo, e, sobretudo, depois do estabelecimento dos éforos,
o governo de Esparta. Uma aristocracia composta de alguns ricos, fazia pesar
um jugo de ferro sobre os ilotas, sobre os lacônios, e até sobre a maior parte
dos espartanos. Por sua energia, por sua habilidade, por seu pouco escrúpulo e
pouco apego às leis morais, ela soube conservar o poder durante cinco
séculos, mas suscitou ódios cruéis, e teve que reprimir grande número de
insurreições.
Não é necessário que falemos das conspirações dos ilotas. Não conhecemos
todas as conspirações dos espartanos; o governo era muito hábil para não
deixar de apagar até seus vestígios e lembranças. Houve contudo alguns que a
história não pôde esquecer. Sabemos que os colonos que fundaram Tarento
eram espartanos que haviam desejado derrubar o governo. Uma indiscrição do
poeta Tirteu deu a conhecer à Grécia que durante as guerras da Messênia parte
da população havia conspirado para conseguir a divisão das terras(19).
O que salvava Esparta era a divisão extrema que sabia fazer entre as classes
inferiores. Os ilotas não se davam com os lacônios; os motácios desprezavam
os neodâmodas. Era impossível qualquer união, e a aristocracia, graças à sua
educação militar e à estreita união de seus membros, era sempre forte para
fazer frente a cada uma dessas classes inimigas.
Os reis tentaram o que nenhuma classe podia realizar. Todos aqueles que
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aspiraram sair do estado de inferioridade em que a aristocracia os mantinha
procuraram apoio entre pessoas de condição inferior. Durante a guerra
médica, Pausânias formou o projeto de levantar ao mesmo tempo a realeza e
as classes baixas, derrubando a oligarquia. Os espartanos condenaram-no à
morte acusando-o de manter relações com o rei da Pérsia; talvez seu
verdadeiro crime fosse o de ter pensado em libertar os ilotas(20). Podemos
contar na história como são numerosos os reis exilados pelos éforos; a causa
dessas condenações é fácil adivinhar, e Aristóteles no-la diz: Os reis de
Esparta, para fazer frente aos éforos e ao senado, tornavam-se demagogos
(21).
Em 397 uma conspiração quase derrubou esse governo oligárquico. Certo
Cinadon, que não pertencia à classe dos Iguais, era o chefe dos conjurados.
Quando queria conseguir adeptos, levava-os para a praça pública, e fazia com
que contassem os cidadãos; incluindo os reis, os éforos, os senadores,
chegava-se a um total de mais ou menos setenta. Cinadon dizia-lhes então:
Esses são os nossos inimigos; todos os outros, pelo contrário, que enchem a
praça, em número de mais de quatro mil, são nossos aliados. E
acrescentava: Quando encontrardes em campanha algum espartano, vede
nele um senhor e um inimigo; todos os outros são amigos. Ilotas,
lacônios, neodâmodas, hypoméiones, todos desta vez estavam unidos, e eram
cúmplices de Cinadon, porque todos diz o historiador tinham tal ódio
pelos senhores, que não havia um só dentre eles que não confessasse que lhes
seria agradável devorá-los a todos crus. Mas o governo de Esparta estava
admiravelmente servido: para ele não havia segredo. Os éforos pretenderam
que as entranhas das vítimas lhes haviam revelado a conjuração. Não deram
tempo aos conjurados de agir: prenderam-nos e mataram-nos em segredo. A
oligarquia estava mais uma vez salva(22).
Favorecida por esse governo, a desigualdade foi crescendo cada vez mais. A
guerra do Peloponeso e as expedições à Ásia faziam afluir dinheiro para
Esparta; mas este se espalhava de maneira muito desigual, e não enriquecera
senão os que já estavam ricos. Ao mesmo tempo, desaparecia a pequena
propriedade. O número de proprietários, que eram ainda mil nos tempos de
Aristóteles, estava reduzido a cem um século depois(23). A terra estava
dividida entre poucos, em um tempo em que não havia nem indústria, nem
comércio para dar trabalho ao pobre, e em que os ricos faziam cultivar seus
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imensos domínios por escravos. De uma parte estavam alguns homens que
tinham tudo, de outra um grande número que não tinha absolutamente nada.
Plutarco nos apresenta, na vida de Ágis e na de Cleômenes, um quadro da
sociedade espartana; vê-se aí amor desenfreado à riqueza, à qual tudo se
sujeitava; em alguns, o luxo, a indolência, o desejo de aumentar
ilimitadamente a própria riqueza; além destes, apenas uma multidão
miserável, indigente, sem direitos políticos, sem nenhum valor na cidade,
invejosa, odienta, e que semelhante estado social condenava ao desejo de
revoluções.
Quando a oligarquia levou as coisas até os últimos limites do possível, tornouse
necessária uma revolução, pela qual a democracia, contida e reprimida por
tanto tempo, rompesse enfim os diques. Supõe-se também que depois de tão
longa compressão a democracia não devia limitar-se a reformas políticas, mas
devia conseguir logo de início as reformas sociais que se faziam necessárias.
O pequeno número de espartanos de nascimento não eram mais de
setecentos, contando-se todas as classes e o enfraquecimento dos
caracteres, seguido de uma longa opressão, foram a causa de que o sinal das
mudanças não partisse das classes inferiores. Partiu de um rei. Ágis tentou
levar a cabo essa inevitável revolução por meios legais, o que aumentou para
ele as dificuldades da empresa. Apresentou ao senado, isto é, aos próprios
ricos, dois projetos de lei visando a abolição das dívidas e a divisão das terras.
Não nos devemos surpreender ao ver que o senado não rejeitou essas
proposições; Ágis, talvez, deve ter tomado medidas para que fossem aceitas.
Mas as leis, uma vez votadas, deviam ser postas em execução; ora, reformas
dessa natureza são sempre de tal modo difíceis que os mais ousados
fracassam. Ágis, amarrado pela resistência dos éforos, viu-se constrangido a
sair da legalidade: depôs esses magistrados, e nomeou outros por sua própria
autoridade; armou depois seus correligionários, e estabeleceu, durante um
ano, um regime de terror. Durante esse tempo pôde pôr em prática as leis
sobre as dívidas, e fazer queimar todos os títulos de crédito na praça pública.
Mas não teve tempo para dividir as terras. Não se sabe se Ágis hesitou a esse
respeito, ou se sua própria obra o deixou assustado, ou se a oligarquia
espalhou contra ele hábeis acusações, porque o povo se afastou dele, e deixouo
cair. Os éforos degolaram-no, e o governo aristocrático foi restabelecido.
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Cleômenes retomou os projetos de Ágis, mas com mais tato e menos
escrúpulos. Começou por massacrar os éforos, suprimiu ousadamente essa
magistratura, odiosa aos reis e ao partido popular, e proscreveu os ricos.
Depois desse golpe de Estado, fez a revolução, decretou a divisão das terras, e
deu direito de cidade a quatro mil lacônios. É digno de nota que nem Ágis,
nem Cleômenes confessavam que estavam fazendo uma revolução, mas
ambos, valendo-se do nome do velho legislador Licurgo, pretendiam conduzir
Esparta a seus antigos costumes. É fora de dúvida que a constituição de
Cleômenes distanciava-se muito de Licurgo. O rei era, na verdade, senhor
absoluto; nenhuma autoridade lhe fazia contrapeso; reinava à moda dos
tiranos que havia na maior parte das cidades gregas, e o povo de Esparta,
satisfeito pela conquista das terras, parecia importar-se muito pouco com
liberdades políticas. Essa situação não durou muito. Cleômenes quis estender
o regime democrático a todo o Peloponeso, onde Arato, precisamente nessa
época, trabalhava para estabelecer um regime de liberdade e de sábia
aristocracia. Em todas as cidades o partido popular agitou-se em nome de
Cleômenes, esperando obter, como em Esparta, abolição das dívidas e divisão
das terras. Foi essa insurreição imprevista das classes inferiores que obrigou
Arato a mudar todos os planos; julgou poder contar com a Macedônia, cujo
rei, Antígono Doson, adotava então por política combater em toda parte os
tiranos e o partido popular, e o chamou ao Peloponeso. Antígono e os aqueus
venceram Cleômenes em Selásia. A democracia espartana foi ainda uma vez
vencida, e os macedônios restabeleceram o antigo governo (222 anos antes de
Jesus Cristo).
Mas a oligarquia já não podia manter-se. Houve muitas perturbações; em um
ano, três éforos, favoráveis ao partido popular, massacraram dois colegas; no
ano seguinte, os cinco éforos pertenciam ao partido oligárquico; o povo tomou
armas, e degolou-os a todos. A oligarquia não queria reis; o povo queria;
nomeou-se um, escolhido fora da família real, o que nunca se viu em Esparta.
Esse rei, chamado Licurgo, foi por duas vezes derrubado do trono: a primeira
vez pelo povo, porque recusava dividir as terras; a segunda vez pela
aristocracia, porque desconfiavam de que as queria dividir. Não se sabe como
acabou; mas depois dele Esparta tem um tirano, Macânidas, prova certa de
que o partido popular retomara o poder.
Filópemen, que, à frente da estirpe dos aqueus, por toda parte declarava
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guerra aos tiranos democratas, venceu e matou a Macânidas. A democracia
espartana adotou logo outro tirano, Nábis. Este deu direitos de cidadania a
todos os homens livres, elevando os lacônios à mesma categoria dos
espartanos; chegou até a libertar os ilotas. Seguindo o costume dos tiranos das
cidades gregas, fez-se chefe dos pobres contra os ricos; proscreveu ou
condenou à morte aqueles que por sua riqueza se elevavam acima dos demais
(24).
Essa nova Esparta democrática não deixou de ter grandeza; Nábis deu à
Lacônia uma ordem que não se via há muito tempo; submeteu a Esparta a
Messênia, parte da Arcádia e a Élida. Apoderou-se de Argos. Formou a
marinha, o que estava muito longe das antigas tradições da aristocracia
espartana; com sua frota, dominou sobre todas as ilhas que rodeiam o
Peloponeso, estendendo sua influência até Creta. Por toda parte reergueu a
democracia; senhor de Argos, seu primeiro cuidado foi confiscar os bens dos
ricos, abolir as dívidas e dividir as terras. Podemos ver em Políbio quanto a
liga dos aqueus odiava esse tirano democrata, instigando Flamínio a lhe fazer
guerra em nome de Roma. Dois mil lacônios, sem contar os mercenários,
tomaram armas para defender Nábis. Depois de uma derrota, quis fazer a paz;
o povo recusou-se, tanto a causa do tirano era a da democracia! Flamínio,
vitorioso, tirou-lhe parte de suas forças, mas deixou-o reinar na Lacônia, ou
porque a impossibilidade de restabelecer o antigo governo fosse por demais
evidente, ou porque Roma estava interessada em que alguns tiranos fizessem
contrapeso à liga dos aqueus. Nábis foi assassinado mais tarde por um etólio,
mas sua morte não restabeleceu a oligarquia; as mudanças que levara a cabo
no estado social mantiveram-se depois de sua morte, e a própria Roma se
recusou a restabelecer a antiga situação de Esparta.
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LIVRO QUINTO
DESAPARECE O REGIME MUNICIPAL
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CAPÍTULO I
NOVAS CRENÇAS. A FILOSOFIA MUDA AS NORMAS DA POLÍTICA
Vimos em tudo o que precedeu como se constituiu o regime municipal entre
os antigos. A princípio uma religião muito antiga fundara a família, depois a
cidade; estabelecera em primeiro lugar o direito doméstico e o governo da
gens; depois as leis civis e o governo municipal. O Estado estava
estreitamente ligado à religião; dela nascera, e com ela se confundia. É por
isso que, na cidade primitiva, todas as instituições políticas haviam sido
instituições religiosas; as festas eram cerimônias do culto; as leis, fórmulas
sagradas; os reis e magistrados, sacerdotes. É por isso ainda que a liberdade
individual era desconhecida, e o homem era incapaz de libertar a própria
consciência da onipotência da cidade. É por isso, enfim, que o Estado
mantivera-se dentro dos limites da cidade, e nunca puderam ultrapassar a
linha traçada em sua origem pelos deuses nacionais. Cada cidade tinha, não
somente independência política, mas também um culto e um código. A
religião, o direito, o governo, tudo era municipal. A cidade era a única força
viva; nada lhe era superior ou inferior; nem a unidade nacional, nem a
liberdade individual.
Resta-nos dizer de que modo esse regime desapareceu, isto é, como, mudandose
o princípio da associação humana, o governo, a religião e o direito se
despojaram desse caráter municipal que tiveram na antiguidade.
A ruína do regime político que a Grécia e a Itália haviam criado pode ser
atribuída a duas causas principais. Uma pertence à ordem dos fatos morais e
intelectuais, outra à ordem dos fatos materiais; a primeira é transformação das
crenças, a segunda é a conquista romana. Esses dois grandes fatos são
contemporâneos; desenvolveram-se e concluíram-se juntos, durante a série de
cinco séculos que precede a era cristã.
A religião primitiva, cujos símbolos eram a pedra imóvel do lar e o túmulo
dos antepassados, religião que havia constituído a família antiga, organizando
depois a cidade, alterou-se com o tempo, e envelheceu. O espírito humano
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cresceu em forças, e adotou novas crenças. Começou-se a ter idéia da natureza
imaterial; a noção da alma humana tornou-se mais precisa, e quase ao mesmo
tempo surgiu nos espíritos a idéia de uma inteligência divina.
Que pensar então das divindades das primeiras idades; dos mortos, que viviam
nos túmulos; dos deuses lares, que haviam sido homens; dos antepassados
sagrados, que deviam continuar a alimentar como se ainda vivessem?
Semelhante fé tornou-se impossível. Tais crenças não estavam mais no nível
do espírito humano. É bem verdade que esses preconceitos, por mais
grosseiros que fossem, não foram facilmente arrancados do espírito do vulgo;
reinaram por muito tempo ainda; mas desde o quinto século antes de nossa era
os homens que refletiam se foram libertando desses erros. Compreendiam a
morte de outra maneira; alguns acreditavam no aniquilamento, outros em uma
segunda existência espiritual em um mundo de almas; em todo caso não
admitiam mais que o morto vivesse no sepulcro, e se alimentasse com as
dádivas que lhes ofereciam. Começou-se também a se ter idéia muito elevada
da divindade, para que se continuasse a acreditar que os mortos pudessem ser
deuses. Pelo contrário, imaginavam a alma humana indo procurar nos Campos
Elísios sua recompensa, ou a pena de suas faltas; e, por notável progresso, não
se divinizavam mais entre os homens senão aqueles que o reconhecimento ou
a lisonja queria colocar acima da humanidade.
A idéia da divindade transformou-se pouco a pouco, pelo efeito natural do
poder maior do espírito. Essa idéia, que o homem a princípio aplicara à força
invisível que sentia em si próprio, ele a aplicou aos poderes
incomparavelmente maiores que via na natureza, à espera de que se elevasse
até a concepção de outro ser, que estivesse fora e acima da natureza. Então os
deuses lares e os heróis perderam a adoração dos seres racionais.
Quanto ao lar, que não parece ter sentido senão enquanto se ligava ao culto
dos mortos, perdeu também seu prestígio. Continuou-se a ter na casa um lar
doméstico, ao qual saudavam, adoravam, ofereciam libações; mas não passava
de um culto de hábito, a que nenhuma fé dava vida.
O lar das cidades, ou o pritaneu, foi arrastado insensivelmente para o
descrédito em que caíra o lar doméstico. Não se sabia mais o que significava,
esquecidos de que o fogo sempre aceso do pritaneu representava a vida
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invisível dos antepassados, dos fundadores, dos heróis nacionais. Continuavase
a alimentar esse fogo, a cantar velhos hinos, cerimônias vãs, das quais não
ousavam desembaraçar-se, mas cujo sentido ninguém mais compreendia.
Até as divindades da natureza, que se haviam associado aos lares, mudaram
de caráter. Depois de haver começado por serem divindades domésticas,
depois de se tornarem divindades da cidade, transformaram-se ainda uma vez.
Os homens acabaram por perceber que os seres diferentes que chamavam de
Júpiter, podiam bem ser um mesmo e único ser; e assim aconteceu com outros
deuses. O espírito desembaraçou-se de uma multidão de divindades, e sentiu
necessidade de reduzir-lhes o número. Compreendeu-se então que os deuses
não pertenciam mais a uma família ou cidade, mas que todos pertenciam ao
gênero humano, e velavam pelo universo. Os poetas iam de cidade em cidade
ensinando aos homens, em lugar dos velhos hinos das cidades, novos cantos
nos quais não se falava nem de deuses lares, nem de divindades políadas, e
onde se liam as lendas dos grandes deuses da terra e do céu; e o povo grego
esquecia os velhos hinos domésticos ou nacionais por essa poesia nova, que
não era filha da religião, mas da arte e da livre imaginação. Ao mesmo tempo,
alguns grandes santuários, como os de Delfos e de Delos, atraíam os homens,
fazendo que com estes se esquecessem dos cultos locais. Os mistérios e a
doutrina que continham habituavam-nos a desprezar a religião vazia e
insignificante da cidade.
Assim, lenta e obscuramente, foi sendo feita uma revolução intelectual. Os
próprios sacerdotes não lhe opunham resistência, porque enquanto os
sacrifícios continuavam a ser oferecidos nos dias determinados, parecia-lhes
que a antiga religião estava salva; as idéias podiam mudar, a fé podia morrer,
contanto que os ritos permanecessem intactos. Aconteceu então que, sem que
as práticas fossem modificadas, as crenças se transformaram, e a religião
doméstica e municipal perdeu todo o domínio sobre as almas.
Depois apareceu a filosofia, que derrubou todas as regras da velha política.
Era impossível tocar nas opiniões dos homens sem tocar também nos
princípios fundamentais do governo. Pitágoras, tendo uma concepção vaga do
Ser supremo, desprezou os cultos locais, e isso foi o bastante para que
rejeitasse os velhos moldes de governo, e tentasse fundar uma nova sociedade.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência, que reina sobre todos os homens e
sobre todas as criaturas. Afastando-se das antigas crenças, afastou-se também
da antiga política. Como não acreditava nos deuses do pritaneu, deixava de
cumprir todos os deveres de um cidadão; fugia das assembléias, e não queria
ser magistrado. Sua doutrina representava um perigo para a cidade; os
atenienses condenaram-no à morte.
Vieram depois os sofistas, e tiveram mais influência que esses dois grandes
espíritos. Eram homens ardentes no combate dos velhos erros. Na luta que
travaram contra tudo o que se ligava ao passado, não pouparam nem as
instituições da cidade, nem os preconceitos da religião. Examinaram e
discutiram ousadamente as leis que ainda regiam o Estado e a família. Iam de
cidade em cidade, pregando novos princípios, ensinando não precisamente a
indiferença entre o justo e o injusto, mas uma nova justiça, menos acanhada e
menos exclusiva que a antiga, mais humana, mais racional, e livre das
fórmulas das idades anteriores. Foi uma empresa atrevida, que levantou uma
tempestade de ódios e de rancores. Acusaram-nos de não ter nem religião,
nem moral, nem patriotismo. A verdade é que sobre todas essas coisas não
tinham doutrina bem definida, e que julgavam fazer muito combatendo os
preconceitos. Eles removiam, como diz Platão, o que até então era
irremovível. Colocavam a regra do sentimento religioso e da política na
consciência humana, e não nos costumes dos antepassados ou na tradição
imutável. Ensinavam aos gregos que para governar um Estado não bastava
mais invocar velhos costumes e leis sagradas, mas era necessário persuadir os
homens, e agir sobre vontades livres. Substituíam o conhecimento dos
costumes antigos pela arte de raciocinar e de falar, a dialética e a retórica.
Seus adversários ligavam-se à tradição, enquanto eles se ligavam à eloqüência
e ao espírito.
Uma vez despertada assim a reflexão, o homem não quis mais crer sem
conhecer suas crenças, nem quis deixar-se governar sem discutir suas
instituições. Duvidou da justiça de suas velhas leis sociais, e surgiram outros
princípios. Platão põe na boca de um sofista estas belas palavras: Vós todos
que aqui estais, eu vos considero parentes uns dos outros. A natureza, apesar
da lei, vos fez concidadãos. Mas a lei, esse tirano do homem, violenta a
natureza em muitas ocasiões. Opor assim a natureza à lei e ao costume,
era atacar na própria base a política antiga. Em vão os atenienses exilaram
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Pitágoras e queimaram seus escritos; o golpe estava dado; o resultado do
ensino dos sofistas foi imenso. A autoridade das instituições desaparecia com
a autoridade dos deuses nacionais, e o hábito do livre exame estabelecia-se
nas casas e na praça pública.
Sócrates, reprovando o abuso que os sofistas faziam do direito de duvidar,
pertencia contudo à sua escola. Como eles, rejeitava o império da tradição, e
acreditava que as regras de conduta estavam gravadas na consciência humana.
Não se diferenciava deles senão em que estudava essa consciência
religiosamente, e com desejo firme de nela encontrar a obrigação de ser justo
e de fazer o bem. Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima das
leis. Distinguia a moral da religião; antes dele não se concebia o dever senão
como um decreto dos deuses antigos; Sócrates demonstrou que o princípio do
dever está na consciência do homem. Em tudo isso, quer quisesse ou não, ele
fazia guerra ao culto das cidades. Em vão tomava o cuidado de assistir a todas
as festas, e de tomar parte em todos os sacrifícios; suas crenças e palavras
desmentiam-lhe a conduta. Sócrates fundava uma religião nova, que era
contrária à religião da cidade. Acusaram-no, com verdade, de não adorar os
deuses que o Estado adorava. Condenaram-no à morte por haver atacado os
costumes e as crenças dos antepassados, ou, como se dizia, por haver
corrompido a geração presente. A impopularidade de Sócrates e o ódio
violento de seus concidadãos se explicam, se pensarmos nos hábitos religiosos
dessa sociedade ateniense, onde havia tantos sacerdotes, e onde eles eram tão
poderosos. Mas a revolução que os sofistas haviam iniciado, e que Sócrates
continuara com mais moderação, não foi interrompida pela morte de um
ancião. A sociedade grega libertou-se dia a dia cada vez mais do domínio das
velhas crenças e das velhas instituições.
Depois dele, os filósofos discutiram com toda a liberdade os princípios e
regras da associação humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo,
Aristóteles, Teofrasto, e muitos outros, escreveram tratados sobre a política.
Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da
autoridade e da obediência, das obrigações e do direito, apresentaram-se a
todos os espíritos.
Sem dúvida, o pensamento não se pôde libertar facilmente dos laços
estabelecidos pelo costume. Platão sofreu ainda, em certos pontos, o império
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das velhas idéias. O Estado que ele imagina é ainda a cidade antiga, acanhada,
e que não deve conter mais de 5.000 membros. O governo é ainda regulado de
acordo com os antigos princípios, a liberdade é desconhecida; o fim proposto
pelo legislador é menos o aperfeiçoamento do homem do que a segurança e
grandeza da sociedade. A própria família é quase sufocada, para que não faça
concorrência à cidade. Somente o Estado é proprietário; somente ele é livre;
somente ele tem vontade; somente ele tem religião e crenças, e todos os que
não pensarem como ele devem morrer. Todavia, no meio de tudo isso, surgem
idéias novas. Platão proclama, como Sócrates e os sofistas, que a regra da
moral e da política está em nós mesmas, que a tradição nada representa, que é
à razão que devemos consultar, e que as leis não são justas senão enquanto
estão conformes à natureza humana.
Essas idéias são ainda mais precisas em Aristóteles. A lei diz ele é a
razão. Aristóteles ensina que se deve procurar, não o que é conforme ao
costume dos antepassados, mas o que é bom em si. E acrescenta que à medida
que o tempo marcha é necessário mudar as instituições, pondo de lado o
respeito pelos antepassados: Nossos primeiros pais diz ele quer tenham
nascido do seio da terra, quer tenham sobrevivido a algum dilúvio,
assemelhavam-se, segundo tudo faz acreditar, ao que há de mais vulgar e de
mais ignorante entre os homens de hoje. Seria absurdo evidente querer
amarrar-se à opinião deles. Aristóteles, como todos os filósofos,
menosprezava absolutamente a origem religiosa da sociedade humana; não
fala dos pritaneus e ignora que os cultos locais tenham sido a base do Estado.
O Estado diz ele não é nada mais que uma associação de seres
iguais, à procura de uma existência fácil e feliz. Desse modo a filosofia
rejeita os velhos princípios das sociedades, e procura novas bases sobre as
quais possa apoiar as leis sociais e a idéia de pátria(1).
A escola cínica vai ainda mais longe: ela nega a pátria. Diógenes vangloriavase
de não ter direitos civis em nenhum lugar, e Crates dizia que sua pátria era
o desprezo da opinião alheia. Os cínicos acrescentavam esta verdade, então
muito nova, de que o homem é cidadão do universo, e de que a pátria não são
os estreitos limites de uma cidade. Consideravam o patriotismo municipal
como um preconceito, e suprimiam do número dos sentimentos o amor da
cidade.
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Por fastio, ou por desprezo, os filósofos afastavam-se cada vez mais dos
negócios públicos. Sócrates ainda cumprira os deveres de cidadão; Platão
tentara trabalhar para o Estado reformando-o. Aristóteles, mais indiferente,
limitou-se ao papel de observador, e fez do Estado um objeto de estudos
científicos. Os epicuristas deixaram de lado os negócios públicos. Não se
intrometam dizia Epicuro a não ser se constrangidos por algum poder
superior. Os cínicos nem queriam ser cidadãos.
Os estóicos retornaram à política. Zenão, Cleanto e Crísipo escreveram
numerosos tratados sobre o governo dos estados. Mas seus princípios estavam
muito afastados da política municipal. Eis em que termos um antigo nos
informa a respeito das doutrinas contidas em seus escritos: Zenão, em seu
tratado sobre o governo, propõe-se demonstrar-nos que não somos habitantes
de tal demo ou de tal cidade, separados uns dos outros por um direito
particular e leis exclusivas, mas que devemos ver em todos os homens
concidadãos, como se todos pertencêssemos à mesma cidade, ao mesmo demo
(2). Por aí se vê o caminho percorrido pelas idéias, desde Sócrates até
Zenão. Sócrates julgava-se ainda obrigado a adorar, como podia, os deuses do
Estado. Platão ainda não concebia outro governo senão o da cidade. Zenão
passa por cima desses limites restritos da associação humana. Despreza as
divisões que a religião antiga havia estabelecido. Como concebe o Deus do
universo, tem também a idéia de um Estado que compreenderia toda a
humanidade(3).
Mais eis um princípio ainda mais novo. O estoicismo, alargando a associação
humana, liberta o indivíduo. Como rejeita a religião da cidade, rejeita também
a servidão. Não quer mais que a pessoa humana se sacrifique ao Estado.
Distingue e separa nitidamente o que deve permanecer livre no homem, e
liberta pelo menos a consciência. Diz ao homem que deve fechar-se em si
mesmo, que deve encontrar em si o dever, a virtude, a recompensa. Não lhe
proíbe ocupar-se dos negócios públicos, antes convida-o a isso, advertindo-o,
porém, de que seu principal trabalho deve ter por objeto o progresso
individual, e que, seja qual for o governo, sua consciência deve continuar
independente. Grande princípio, que a cidade antiga sempre desprezou, mas
que devia um dia tornar-se uma das regras mais sagradas da política.
Começa-se então a compreender que há outros deveres além dos deveres para
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
com o Estado, outras virtudes além das virtudes cívicas. A alma se prende a
outros objetos além da pátria. A cidade antiga havia sido tão poderosa e
tirânica que o homem fizera dela a razão de todo o seu trabalho e de todas as
suas virtudes; ela havia sido a regra do belo e do bem, e não havia heroísmo
senão para ela. Mas eis que Zenão ensina ao homem que ele tem uma
dignidade, não de cidadão, mas de homem; que além de seus deveres para
com a lei tem outros para consigo mesmo, e que o supremo merecimento não
é viver ou morrer pelo Estado, mas ser virtuoso, e agradar à divindade.
Virtudes um tanto egoístas, e que fizeram decair a independência nacional e a
liberdade, mas pelas quais o indivíduo adquiriu importância. As virtudes
públicas foram desaparecendo, mas as virtudes pessoais tomaram maior
evidência, e começaram a surgir entre os homens. A princípio elas tiveram
que lutar contra a corrupção ou contra o despotismo. Mas pouco a pouco se
enraizaram na humanidade, e com o tempo transformaram-se em um poder
com o qual todo governo teve de contar, e tornou-se necessário que as regras
da política fossem modificadas para dar-lhes lugar livre.
Assim se transformaram pouco a pouco as crenças; a religião municipal,
fundamento da cidade, extinguiu-se. O regime municipal, tal como os antigos
o imaginaram, teve também de cair. Insensivelmente, os homens se
libertavam das regras rigorosas e das formas acanhadas de governo. Idéias
mais elevadas conclamavam os homens a formar sociedades maiores. A
tendência então era a unidade, aspiração geral dos dois séculos que
precederam a era cristã. É verdade que os frutos gerados por essas revoluções
da inteligência são de amadurecimento em extremo vagaroso. Mas veremos,
ao estudar a conquista romana, que os acontecimentos caminhavam no mesmo
sentido das idéias, que tendiam, como elas, à ruína do antigo regime
municipal, preparando novas modalidades de governo.
CAPÍTULO II
A CONQUISTA ROMANA
Parece à primeira vista surpreendente que entre as mil cidades da Grécia e da
Itália tenha-se encontrado apenas uma capaz de submeter todas as demais.
Esse grande acontecimento é contudo explicável pelas causas ordinárias que
determinam a marcha dos negócios humanos. A sabedoria de Roma consistiu,
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como toda sabedoria, em se aproveitar das circunstâncias favoráveis que
surgiam.
Podem-se distinguir na obra da conquista romana dois períodos. Um, de
acordo com o tempo em que o velho espírito municipal tinha ainda bastante
força; foi então que Roma teve de superar maiores obstáculos. O segundo
pertence ao tempo em que o espírito municipal já se achava muito
enfraquecido; a conquista então tornou-se fácil, e foi realizada rapidamente.
1.° Algumas palavras sobre as origens e a população de Roma
As origens de Roma e a composição de seu povo são dignas de nota. Elas
explicam o caráter particular de sua política, e o papel excepcional que lhe foi
confiado, desde o começo, entre as outras cidades.
A raça romana era estranhamente heterogênea. Sua base era latina, e
originária de Alba; mas os próprios albanos, de acordo com tradições que
nenhuma crítica nos autoriza a rejeitar, compunham-se de duas populações
associadas e distintas: uma era a raça aborígene, verdadeiros latinos; outra era
de origem estrangeira, e se dizia originária de Tróia, com Enéias, o sacerdote
fundador; era pouco numerosa, como parece, mas era considerável pelo culto
e as instituições que trouxera consigo(1).
Esses albanos, união de duas raças, fundaram Roma em um lugar onde já se
levantava outra cidade, Pallantium, fundada por gregos. Ora, a população de
Pallantium subsistiu na cidade nova, conservando os ritos do culto grego(2).
Havia também, no local onde surgiu mais tarde o Capitólio, uma cidade de
nome Satúrnia, que se dizia haver sido fundada por gregos(3).
Assim em Roma todas as raças se associam e se mesclam: há latinos, troianos,
gregos; logo haverá também sabinos e etruscos. Vede as diversas colinas: o
Palatino é a cidade latina, depois de ter sido a cidade de Evandro; o
Capitolino, depois de ter sido a morada dos companheiros de Hércules, tornase
morada dos sabinos de Tácio. O Quirinal recebe o nome dos quirites
sabinos ou do deus sabino Quirino. O Célio parece ter sido habitado desde o
princípio pelos etruscos(4). Roma não parecia uma única cidade; parecia uma
confederação de várias cidades, das quais cada uma ligava-se, pela origem, a
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outra confederação. Roma era o centro onde latinos, etruscos, sabélios e
gregos se encontravam.
Seu primeiro rei foi latino; o segundo, de acordo com a tradição, foi sabino; o
quinto era, como se diz, filho de grego; o sexto foi etrusco.
Sua língua era um composto dos elementos mais diversos, dominando o latim;
mas as raízes sabelianas eram numerosas, e nela se encontravam mais radicais
gregos que em qualquer outro dos dialetos da Itália central. Quanto a seu
próprio nome, não se sabia a que língua pertencia. De acordo com uns, Roma
era palavra troiana; segundo outros, era grega; há razões para julgá-la latina,
mas alguns antigos julgavam-na etrusca.
Os nomes das famílias romanas atestam também grande diversidade de
origem. Nos tempos de Augusto havia ainda cerca de cinqüenta famílias que,
remontando a série de seus ancestrais, chegavam aos companheiros de Enéias
(5). Outras diziam-se descendentes dos arcádios de Evandro, e, desde tempos
imemoriais, os homens dessas famílias ostentavam no calçado, como sinal
distintivo, um pequeno crescente de prata(6). As famílias Potícia e Pinária
descendiam dos chamados companheiros de Hércules, e essa descendência era
provada pelo culto hereditário desse deus(7). Os Túlios, os Quintos, os
Servílios tinham vindo de Alba depois da conquista dessa cidade. Muitas
famílias juntaram seus nomes ao sobrenome que lembrava sua origem
estrangeira; assim havia os Sulpícios Camerinos, os Comínios Aruncos, os
Sicínios Sabinos, os Cláudios Regilenses, os Aquílios Tuscos; a família
Náucia era troiana; os Aurélios eram sabinos; os Cecílios vinham de Preneste;
os Otávios eram originários de Velitras.
Dessa mistura original de povos tão diferentes resultavam os laços que Roma
mantinha com todos os povos que conhecia. Podia dizer-se latina com os
latinos, sabina com os satainos, etrusca com os etruscos e grega com os
gregos.
Seu culto nacional era também um conjunto de vários cultos, infinitamente
diversos, de acordo com os povos de que provinha. Tinha os cultos gregos de
Evandro e de Hércules; gloriava-se de possuir o paládio troiano. Seus penates
estavam na cidade latina de Lavínio. Adotou desde a origem o culto sabino do
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deus Conso. Outro deus sabino, Quirino, implantou-se tão fortemente em
Roma, que ela o associou a Rômulo, seu fundador. Tinha também deuses
etruscos, suas festas, seu augurato, e até suas insígnias sacerdotais.
Em uma época em que ninguém tinha o direito de assistir às festas religiosas
de uma nação, se não se pertencesse a essa nação por nascimento, o romano
tinha essa vantagem incomparável de poder tomar parte nas férias latinas, nas
festas sabinas, nas festas etruscas e nos jogos olímpicos(8). Ora, a religião era
um vínculo poderoso. Quando duas cidades tinham um culto comum, elas se
diziam parentes, deviam considerar-se aliadas e ajudarem-se mutuamente; não
se conhecia, nessa antiguidade, outra união que a estabelecida pela religião.
Por isso Roma conservava com grande cuidado tudo o que pudesse servir de
testemunha desse precioso parentesco com as outras nações. Aos latinos,
Roma apresentava suas tradições sobre Rômulo; aos sabinos, sua lenda de
Tarpéia e de Tácio; aos gregos alegava os velhos hinos que possuía em honra
da mãe de Evandro, hinos que não compreendia mais, mas que ainda persistia
em cantar. Guardava também com a maior atenção a lembrança de Enéias,
porque, se por Evandro Roma podia dizer-se parenta dos peloponesianos, por
Enéias ela o era de mais de trinta cidades espalhadas pela Itália, Sicília,
Grécia, Trácia e Ásia Menor, cidades essas que tiveram Enéias como
fundador, ou eram colônias de cidades fundadas por ele, todas tendo, por
conseqüência, culto comum com Roma. Pode-se ver nas guerras que fez na
Sicília, contra Cartago, e na Grécia, contra Filipe, que partido Roma soube
tirar desse antigo parentesco.
A população romana, portanto, era uma mistura de várias raças, seu culto uma
união de vários cultos, seu lar nacional uma associação de vários lares. Roma
era quase a única cidade que a religião municipal não isolava das demais.
Estava ligada a toda a Itália, a toda a Grécia. Não havia quase nenhum povo
que não pudesse admitir em seu lar.
2.° Primeiros progressos de Roma (753-350 antes de Cristo)
Durante os séculos em que a religião municipal esteve em vigor por toda
parte, Roma regulou por ela toda sua política.
Diz-se que o primeiro ato da nova cidade foi raptar algumas mulheres sabinas,
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lenda que parece bastante inverossímil, se se pensa na santidade do casamento
entre os antigos. Mas vimos acima que a religião municipal proibia
casamentos entre pessoas de cidades diferentes, a menos que essas duas
cidades não tivessem um laço de origem ou um culto comum. Esses primeiros
romanos tinham direito de matrimônio com Alba, de onde eram originários, o
que não acontecia com os outros vizinhos, os sabinos. O que Rômulo quis
conquistar logo de início não eram algumas mulheres, mas o direito de
casamento, isto é, o direito de contrair relações regulares com os sabinos. Para
isso, era necessário estabelecer entre as duas cidades um vínculo de caráter
religioso; adotou, portanto, o culto do deus sabino Conso, celebrando sua
festa. A tradição acrescenta que durante esse culto ele raptou as mulheres; se
tivesse agido dessa maneira os casamentos não poderiam ter sido celebrados
de acordo com a religião, porque o primeiro ato, e o mais necessário do
casamento era a traditio in manum, isto é, a entrega da filha pelo pai; Rômulo
não alcançaria sua finalidade. Mas a presença dos sabinos e de suas famílias
na cerimônia religiosa, e sua participação no sacrifício estabeleciam entre os
dois povos um laço tal que o connubium não poderia ser recusado. Não havia
necessidade de rapto material; o chefe dos romanos soubera conquistar o
direito de casamento. Por isso o historiador Dionísio, que consultava os textos
e hinos antigos, afirma que as sabinas se casaram de acordo com os ritos mais
solenes, o que é confirmado por Plutarco e Cícero(9). É digno de nota que o
primeiro esforço dos romanos tenha tido por resultado derrubar as barreiras
que a religião municipal levantava entre eles e o povo vizinho. Não nos
chegou nenhuma lenda análoga a respeito da Etrúria, mas parece bem certo
que Roma tinha com esse país as mesmas relações que com o Lácio e a
Sabina. Roma, portanto, teve a habilidade de se unir pelo culto e pelo sangue
a tudo o que a rodeava. Esforçava-se por ter o connubium com todas as
cidades, o que prova que conhecia bem a importância desse vínculo, é que não
queria que as outras cidades, suas aliadas, o tivessem entre si(10).
Roma entrou depois na longa série de suas guerras. A primeira foi contra os
sabinos de Tácio; terminou por uma aliança religiosa e política entre os dois
pequenos povos(11). Em seguida lutou contra Alba; os historiadores dizem
que Roma ousou atacar essa cidade, embora fosse uma de suas colônias.
Talvez essa mesma fosse a razão pela qual Roma julgou necessário à sua
grandeza destruí-la. Toda metrópole, com efeito, exercia sobre as colônias
uma supremacia religiosa; ora, a religião tinha então tanta força, que,
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enquanto Alba existisse, Roma não podia ser mais que uma cidade
dependente, e seus destinos estavam para sempre embargados.
Destruída Alba, Roma não se contentou em não ser mais colônia, e pretendeu
elevar-se à categoria de metrópole, herdando os direitos e a supremacia
religiosa que Alba havia exercido até então sobre as trinta colônias do Lácio.
Roma sustentou longas guerras para obter a presidência do sacrifício das
férias latinas. Era este um meio de adquirir o único gênero de superioridade e
domínio que então se concebiam.
Levantou um templo a Diana; obrigou os latinos a nele oferecer sacrifícios,
chamando até mesmo os sabinos para seu recinto(12). Desse modo acostumou
os dois povos a participar com ela, sob sua presidência, das festas, das
orações, das carnes sagradas das vítimas, reunindo-os sob sua supremacia
religiosa.
Roma é a única cidade que soube aumentar a população por meio da guerra.
Sua política era desconhecida a todo o resto do mundo grego-itálico; Roma
unia a si tudo o que vencia. Trouxe para dentro de seus muros os habitantes
das cidades vencidas, transformando-os pouco a pouco em romanos. Ao
mesmo tempo enviava colonos ao país conquistado, e dessa maneira Roma se
difundia por toda parte, porque seus colonos, formando cidades distintas sob o
ponto de vista político, conservava com a metrópole a comunidade religiosa;
ora, isso era o bastante para que eles se vissem constrangidos a subordinar sua
política à de Roma, a obedecer-lhe, e ajudá-la em todas as suas guerras.
Um dos traços marcantes da política de Roma é que adotava todos os cultos
das cidades vizinhas. Esforçava-se tanto para conquistar os deuses como as
cidades. Apoderou-se de uma Juno de Veios, de um Júpiter de Prenesta, de
uma Minerva de Falisca, de uma Juno de Lanúvio, de uma Vênus dos
samnitas, e de muitos outros deuses que não conhecemos(13). Porque era
costume em Roma diz um antigo(14) dar entrada às religiões das
cidades vencidas, ora repartindo-as entre suas gentes, ora dando-lhes lugar em
sua religião nacional.
Montesquieu louva os romanos, como refinados políticos, por não impor seus
deuses aos povos vencidos. Mas isto seria absolutamente contrário às suas
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idéias e às de todos os antigos. Roma conquistava os deuses vencidos, e não
abria mão dos seus. Guardava para si seus protetores, e até trabalhava para
aumentar seu número. Esforçava-se para possuir mais cultos e deuses tutelares
que nenhuma outra cidade.
Como, aliás, esses cultos e deuses eram, na maior parte, tomados aos
vencidos, Roma estava, por seu intermédio, em comunhão religiosa com todos
os povos. Os laços de origem, a conquista do connubium, a da conquista da
presidência das férias latinas, a dos deuses vencidos, o direito que pretendia
ter de sacrificar em Olímpia e em Delfos, eram outros tantos meios pelos
quais Roma preparava seu domínio. Como todas as cidades, Roma tinha sua
religião municipal, fonte de seu patriotismo; mas era a única cidade que usou
dessa religião para seu engrandecimento. Enquanto que, pela religião, as
outras cidades estavam isoladas, Roma tinha a habilidade ou a boa sorte de
usá-la para atrair e dominar tudo.
3.° De que modo Roma conquistou o império (350-140 antes de Cristo)
Enquanto Roma crescia assim lentamente, pelos meios que a religião e as
idéias da época punham à sua disposição, uma série de transformações sociais
e políticas desenrolava-se em todas as cidades e na própria Roma,
modificando ao mesmo tempo o governo dos homens e sua maneira de
pensar. Já descrevemos acima essa revolução; o que devemos notar aqui é que
ela coincide com o grande desenvolvimento do poderio romano. Esses dois
fatos, que se produziram ao mesmo tempo, não deixaram de ter certa
influência mútua. As conquistas de Roma não teriam sido tão fáceis, se o
velho espírito municipal não estivesse então extinto por toda parte, e podemos
crer também que o regime municipal não teria caído tão depressa se a
conquista romana não lhe tivesse dado o último golpe.
Em meio às mudanças que surgiam nas instituições, nos costumes, nas
crenças, no direito, o próprio patriotismo mudara de natureza, e é uma das
coisas que mais contribuíram para o grande progresso de Roma. Dissemos
acima que significava esse sentimento na primeira idade das cidades. Fazia
parte da religião; amava-se a pátria porque se amavam os deuses protetores,
porque nela estavam o pritaneu, o fogo sagrado, as festas, as orações, os
hinos, e porque fora dela não havia deuses nem culto. Esse patriotismo era um
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patriotismo de fé e de piedade. Mas quando a casta sacerdotal viu-se privada
do domínio, essa espécie de patriotismo desapareceu juntamente com as
velhas crenças. O amor da cidade não acabou, mas tomou nova forma.
Não se amava mais a pátria por sua religião e seus deuses, mas somente por
suas leis, por suas instituições, pelos direitos e segurança que proporcionava a
seus membros. Vede, na oração fúnebre que Tucídides põe na boca de
Périeles, quais são as razões que tornam Atenas digna de amor: essa cidade
quer que todos sejam iguais diante da lei; dá aos homens a liberdade, e abre a
todos o caminho das honras; mantém a ordem pública, sustenta a autoridade
dos magistrados, protege os fracos, oferece a todos espetáculos e festas que
constituem a educação da alma. E o orador termina dizendo: Eis por que
nossos guerreiros morreram heroicamente para que não lhes tirassem a pátria;
eis por que os que sobrevivem estão prontos a sofrer e a se sacrificarem por
ela. O homem, portanto, ainda tem deveres para com a cidade, mas esses
deveres não derivam mais dos mesmos sentimentos de outrora. Ele ainda dá o
sangue e a vida, mas não mais para defender a divindade nacional e o lar de
seus pais, mas para defender as instituições de que usufrui, e as vantagens que
a cidade lhe proporciona.
Ora, esse novo patriotismo não teve exatamente os mesmos efeitos que o das
antigas idades. Como o coração não se prendia mais ao pritaneu, aos deuses
protetores, ao solo sagrado, mas apenas às instituições e às leis, e essas, aliás,
no estado de instabilidade em que todas as cidades então se encontravam,
mudavam freqüentemente, o patriotismo tornou-se um sentimento variável e
inconsistente, que dependia das circunstâncias, e que estava sujeito às mesmas
flutuações do governo. A pátria era amada apenas pelo regime político que
prevalecia momentaneamente; quem não gostasse de suas leis não tinha mais
razões para defendê-la.
Destarte o patriotismo municipal foi-se enfraquecendo, até desaparecer. A
opinião de cada homem lhe era mais sagrada que sua pátria, e o triunfo de sua
facção tornou-se-lhe mais caro que a grandeza ou a glória de sua cidade. Cada
um passou a preferir à cidade natal, se nela não encontrava as instituições de
que gostava, outra cidade, onde essas instituições estivessem em vigor.
Começou-se então a emigrar com mais freqüência, e o exílio passou a ser
menos temido. Que importava ser excluído do pritaneu, ou ser privado da
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água lustral? Já não se pensava mais nos deuses protetores, e todos se
acostumavam facilmente a passar sem a pátria.
Daí a armarem-se contra ela não havia muita distância. Houve quem fizesse
aliança com cidades inimigas para fazer triunfar o próprio partido na cidade
natal. De dois argivos, um desejava um governo aristocrático, e gostava mais
de Esparta que de Argos; outro preferia a democracia, e por isso preferia
Atenas. Nem um, nem outro dava tanta importância à independência da
própria cidade, ou sentia repugnância em se dizerem súditos de outra cidade,
contanto que esta sustentasse sua facção em Argos. Vê-se claramente em
Tucídides e em Xenofonte que foi esta disposição de espírito que gerou e fez
durar a guerra do Peloponeso. Em Platéias, os ricos eram do partido de Tebas
e de Lacedemônia, os democratas eram do partido de Atenas. Na Córcira, a
facção popular era por Atenas e a aristocracia por Esparta(15). Atenas tinha
aliados em todas as cidades do Peloponeso, e Esparta tinha-os em todas as
cidades jônicas. Tucídides e Xenofonte são concordes em afirmar que não
havia uma só cidade na qual o partido popular não fosse favorável aos
atenienses, e a aristocracia aos espartanos(16). Essa guerra representa um
esforço geral dos gregos para estabelecer por toda parte uma mesma
constituição, com a hegemonia de uma cidade; mas uns queriam a aristocracia
sob a proteção de Esparta, outros a democracia com o apoio de Atenas. O
mesmo aconteceu no tempo de Filipe: o partido aristocrático, em todas as
cidades, votou pelo domínio da Macedônia. Nos tempos de Filópemen, os
papéis se inverteram, mas os sentimentos continuaram os mesmos; o partido
popular aceitou o império da Macedônia, e todos os adeptos da aristocracia
uniam-se à liga dos aqueus. Destarte os votos e afeição dos homens não
tinham mais por objeto a cidade. Havia poucos gregos que não estivessem
prontos a sacrificar a independência municipal para ter a constituição que
preferiam.
Quanto aos homens honestos e escrupulosos, as dissensões perpétuas de que
eram testemunhas, tornaram-nos desgostosos do regime municipal, Não
podiam amar uma forma de sociedade na qual era necessário combater todos
os dias, onde o pobre e o rico estavam sempre em guerra, onde viam
alternarem-se indefinidamente violências populares e vinganças aristocráticas.
Queriam fugir de um regime que, depois de haver produzido uma verdadeira
grandeza, não causava senão sofrimentos e ódios. Começava-se a sentir a
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necessidade de abandonar o sistema municipal, e chegar a outra forma de
governo, diversa da da cidade. Muitos pensaram, pelo menos, em estabelecer
acima das cidades uma espécie de poder soberano que velasse pela
manutenção da ordem, e que forçasse as pequenas sociedades turbulentas a
viver em paz. É assim que Fócio, bom cidadão, aconselhava a seus
compatriotas que aceitassem a autoridade de Filipe, prometendo-lhes por esse
preço concórdia e segurança.
Na Itália as coisas não se passavam de outro modo. As cidades do Lácio, da
Sabina, da Etrúria eram perturbadas pelas mesmas revoluções e lutas,
enquanto desaparecia o amor à cidade. Como na Grécia, cada qual se unia a
uma cidade estrangeira para fazer prevalecer suas opiniões ou interesses na
própria cidade.
Essa disposição de espírito foi a sorte de Roma. Roma apoiou por toda a parte
a aristocracia, e por toda a parte a aristocracia foi sua aliada. Citemos alguns
exemplos. A gens Cláudia abandonou a Sabina depois de discórdias internas,
e se transportou para Roma, porque as instituições romanas lhe agradavam
mais que a de seu país. Pela mesma época, muitas famílias latinas emigraram
de Roma, porque não gostavam do regime democrático do Lácio, e Roma
acabava de restabelecer o domínio do patriciado(17). Em Árdea, a aristocracia
e a plebe estavam em luta; a plebe chamou em sua ajuda os volscos, e a
aristocracia entregou a cidade aos romanos(18). A Etrúria estava cheia de
dissensões; Veios derrubara seu governo aristocrático; os romanos a atacaram,
e as outras cidades etruscas, onde ainda dominava a aristocracia sacerdotal,
recusaram socorro aos veienses. A lenda acrescenta que nessa guerra os
romanos raptaram um arúspice veiense, e o obrigaram a revelar oráculos que
lhes assegurassem a vitória. Essa lenda não deixa por acaso entrever que os
sacerdotes etruscos é que abriram a cidade aos romanos?
Mais tarde, quando Cápua se revoltou contra Roma, notou-se que os
cavaleiros, isto é, o corpo aristocrático, não tomaram parte nessa insurreição
(19). Em 313, as cidades de Ausônia, Sora, Minturnas e Véscia foram
entregues aos romanos pelo partido aristocrático(20). Quando o governo
popular se estabeleceu entre os etruscos, estes se coligaram contra Roma; uma
única cidade, Arrécio, recusou-se a ingressar nessa coalizão, porque a
aristocracia ainda prevalecia em Arrécio(21). Quando Aníbal estava na Itália,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
todas as cidades se agitaram; mas não se tratava de independência; em cada
cidade a aristocracia estava do lado de Roma, e a plebe do lado dos
cartagineses(22).
A maneira pela qual Roma era governada pode explicar essa preferência
constante da aristocracia pelo seu regime. A série de revoluções desenrolou-se
ali, como em todas as outras cidades, mas mais lentamente. Em 509, quando
as cidades latinas já tinham tiranos, uma reação patrícia foi bem sucedida em
Roma. Depois a democracia levantou-se, mas com o tempo, com muita
moderação e prudência. O governo romano, portanto, foi por mais tempo
aristocrático do que qualquer outro, e por muito tempo continuou a ser a
esperança do partido aristocrático.
É verdade que a democracia acabou por vencê-lo em Roma; mas mesmo então
o modo de agir, e o que poderíamos chamar de artifícios do governo
continuaram aristocráticos. Nos comícios por centúrias os votos estavam
repartidos de acordo com a riqueza. Nos comícios tribais acontecia quase a
mesma coisa; de direito, não se admitia nenhuma distinção de riqueza; de fato,
a classe pobre, limitada em quatro tribos urbanas, não tinha senão quatro
sufrágios a opor aos trinta e um votos da classe dos proprietários. Aliás,
comumente, nada era mais calmo que essas reuniões; ninguém falava, a não
ser o presidente, ou o que dele recebia a palavra; não se ouviam oradores;
discutia-se pouco; tudo se reduzia, freqüentemente, em votar pelo sim ou pelo
não, e na contagem dos votos; essa última operação demandava muito tempo
e calma. A isso devemos acrescentar ainda que o senado não se renovava
todos os anos, como nas cidades democráticas da Grécia. Legalmente, era
composto em cada novo lustro pelos censores; na realidade, as listas se
assemelhavam muito de um lustro para outro, e os nomes riscados constituíam
exceção, de sorte que o senado era um corpo vitalício, que mais ou menos se
recrutava a si mesmo, e onde se pode notar que os filhos sucediam
ordinariamente aos pais. Tratava-se verdadeiramente de um corpo oligárquico.
Os costumes eram ainda mais aristocráticos que as instituições. Os senadores
tinham lugares reservados nos teatros. Somente os ricos podiam servir na
cavalaria. Os postos do exército, em grande parte, eram reservados aos jovens
das grandes famílias; Cipião tinha apenas dezesseis anos, e já comandava um
esquadrão(23).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
O domínio da classe rica manteve-se em Roma por mais tempo que em
nenhuma outra cidade, e isso por duas razões: a primeira eram as grandes
conquistas levadas a efeito, cujos lucros cabiam à classe rica; todas as terras
tomadas aos vencidos tornaram-se propriedade dessa classe; ela apoderou-se
do comércio dos países conquistados, acrescentando ainda a isso os enormes
lucros provenientes da cobrança dos impostos e da administração das
províncias. Essas famílias, enriquecendo-se assim em cada geração, tornaramse
demasiadamente opulentas, e cada uma delas representava um poder à parte
contra o povo. A outra causa era que o romano, mesmo o mais pobre, sentia
respeito inato pela riqueza. Quando a verdadeira clientela desapareceu, ela foi
como que ressuscitada sob a forma de homenagem às grandes fortunas, e
estabeleceu-se o costume de os proletários irem todas as manhãs a saudar os
ricos, e pedir-lhes o alimento do dia.
Não que a luta entre ricos e pobres não tenha existido em Roma, como em
todas as outras cidades. Mas esta só começou no tempo dos Gracos, isto é,
depois que a conquista estava quase no fim. Aliás, essa luta nunca teve em
Roma o caráter de violência que tinha por toda parte. O baixo povo de Roma
não tinha grandes desejos de riqueza; ajudou os Gracos sem muito interesse;
recusando-se a crer que esses reformadores trabalhavam para ele, abandonouos
no momento decisivo. As leis agrárias, tantas vezes apresentadas aos ricos
como verdadeira ameaça, deixaram sempre o povo indiferente, agitando-o
apenas na superfície. Vê-se bem que o povo não tinha grandes desejos de
possuir terras; aliás, se lhe ofereceram a partilha das terras públicas, isto é, do
domínio do estado, pelo menos não pensou em despojar os ricos de suas
propriedades. Em parte por respeito inveterado, em parte pelo hábito de nada
fazer, o povo gostava de viver ao lado e como que à sombra dos ricos.
Essa classe teve a sabedoria de admitir em seu meio as famílias mais
consideráveis das cidades vencidas ou aliadas. Tudo o que era rico na Itália
chegou pouco a pouco a formar a classe rica de Roma. Esse corpo cresceu
sempre em importância, e apoderou-se do Estado. Exerceu sozinho as
magistraturas, porque eram muito dispendiosas; compôs sozinho o senado,
porque exigia-se grande patrimônio para se ser senador. Assim viu-se
acontecer esse fato estranho: a despeito das leis democráticas, formou-se uma
nobreza, e o povo, que era todo-poderoso, teve que submeter-se a ela, sem
nunca fazer-lhe verdadeira oposição.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Roma era, portanto, no terceiro e no segundo século antes de nossa era, a
cidade mais aristocraticamente governada que houve na Itália e na Grécia.
Notemos por fim que, se nos negócios interiores o senado era obrigado a
agradar à multidão, no que dizia respeito à política exterior ele era mestre
absoluto. Era ele que recebia os embaixadores, que concluía as alianças, que
distribuía as províncias e legiões, que ratificava as ordens dos generais, que
determinava as condições impostas aos vencidos; todas essas coisas que, aliás,
em toda parte eram atribuições da assembléia popular. Os estrangeiros, em
suas relações com Roma, não tinham nada a tratar com o povo; não ouviam
falar senão do senado, que os mantinha na convicção de que o povo não tinha
poder algum. Esta foi a opinião que um grego manifestou a Flamínio: Em
seu país dizia ele a riqueza governa, e tudo o mais se lhe submete(24).
Resultou daí que, em todas as cidades, a aristocracia voltava os olhos para
Roma, contava com ela, adotou-a por protetora, aliou-se a seu destino. E isso
parecia tanto mais permitido quanto Roma não era para ninguém uma cidade
estrangeira: sabinos, latinos, etruscos viam nela uma cidade sabina, uma
cidade latina, uma cidade etrusca, e os gregos julgavam encontrar nelas os
deuses da Grécia.
Desde que Roma se manifestou à Grécia (199 antes de Cristo) a aristocracia
aliou-se a ela. Quase ninguém então pensava que teriam que escolher entre a
independência e a submissão; para a maior parte dos homens a questão não
existia senão entre a aristocracia e o partido popular. Em todas as cidades, uns
eram por Filipe, outros por Antíoco., outros por Perseu, outros por Roma.
Podemos ver em Políbio e em Tito Lívio que se em 198 Argos abre suas
portas aos macedônios, é porque o povo está no poder; e que, no ano seguinte,
é o partido dos ricos que entrega Opunto aos romanos; que entre os arcananos
a aristocracia faz um tratado de aliança com Roma, mas que no ano seguinte
esse tratado é rompido, porque nesse espaço de tempo a democracia
reconquistara o poder; que Tebas conserva-se aliada de Filipe enquanto o
partido popular é mais forte, e aproxima-se de Roma enquanto a aristocracia
se mantém poderosa; que em Atenas, em Demetríade, na Fócia, a plebe é
hostil a Roma; que Nábis, o tirano democrata, lhe declara guerra; que a estirpe
dos aqueus, enquanto é governada pela aristocracia, lhe é favorável, que
homens como Políbio e Filópemen desejavam a independência nacional, mas
preferiram o domínio de Roma à democracia; que na própria liga dos aqueus
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houve um momento em que o partido popular se levantou, e que a partir desse
momento a liga torna-se inimiga de Roma; que Dios e Critolau são ao mesmo
tempo chefes da facção popular e generais da liga contra os romanos; e que
eles combatem valentemente em Escarféia e em Leucópetra, talvez menos
pela independência da Grécia que pelo triunfo da democracia.
Tais fatos provam suficientemente como Roma, sem fazer grandes esforços,
conseguiu o poder absoluto. O espírito municipal desaparecia pouco a pouco.
O amor pela independência tornava-se um sentimento muito raro, e todos se
devotavam inteiramente aos interesses e às paixões dos partidos. A cidade,
insensivelmente, passava a ser esquecida. As barreiras que outrora haviam
separado as cidades, fazendo delas outros tantos mundos distintos, cujo
horizonte limitava os anseios e pensamento de cada um, caíam uma após
outra. Não se distinguia mais, para toda a Itália e para toda a Grécia, mais que
dois grupos de homens: de uma parte, a classe aristocrática; de outra, o
partido popular; uma desejava o domínio de Roma, outra o rejeitava. A
aristocracia venceu, e Roma conquistou o império.
4.° Roma destrói por toda parte o regime municipal
As instituições da cidade antiga haviam sido enfraquecidas e como que
esgotadas por uma série de revoluções. O domínio de Roma teve como
primeiro resultado sua completa destruição, fazendo desaparecer o que ainda
subsistia. É o que se pode ver observando-se a situação em que caíam os
povos à medida que se foram submetendo a Roma.
Em primeiro lugar, devemos afastar da mente todo o modo de ser da política
moderna, e não imaginar os povos entrando um após outro no Estado romano,
como em nossos dias as províncias conquistadas são anexadas a um reino que,
acolhendo esses novos membros, alarga seus limites. O Estado romano
civitas romana não crescia pela conquista; sempre se constituía apenas
pelas famílias que figuravam na cerimônia religiosa do censo. O território
romano ager romanus não se estendia mais que o Estado; continuava
fechado dentro dos limites imutáveis que os reis lhe haviam traçado, e que a
cerimônia das Ambarvais santificava todos os anos. Duas coisas apenas
cresciam em cada conquista: o domínio de Roma imperium romanum e
o território pertencente ao Estado romano ager publicus.
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Enquanto durou a república, ninguém imaginou que os romanos e os outros
povos pudessem formar uma só nação. Roma bem podia acolher,
individualmente, alguns vencidos, dentro de seus muros, transformando-os
com o tempo em romanos; mas não podia assimilar toda uma população
estrangeira à sua população, todo um território ao seu território. Isso não era
devido à política particular de Roma, mas a um princípio que era constante na
antiguidade, princípio de que Roma mais do que outra cidade, muito
voluntariamente se afastaria, mas do qual não se podia libertar inteiramente.
Portanto, quando um povo era vencido, não entrava no Estado romano in
civitate mas apenas no domínio de Roma in imperio. Ele não se unia a
Roma, como hoje as províncias se unem à capital; entre os diversos povos e
ela, Roma não conhecia senão duas espécies de vínculo: a submissão ou a
aliança (dedititii, socii).
Pareceria depois disso que as instituições municipais deveriam subsistir entre
os vencidos, e que o mundo deveria ser um vasto ajuntamento de cidades
distintas entre si, tendo por cabeça uma cidade soberana. Tudo passava-se
diferentemente. A conquista romana tinha por efeito operar no interior de cada
cidade uma verdadeira transformação.
De uma parte estavam os súditos, dedititii; estes eram os que, tendo
pronunciado a fórmula de deditio, haviam entregue ao povo romano suas
pessoas, suas muralhas, suas terras, suas águas, suas casas, seus templos, seus
deuses. Eles renunciavam, portanto, não apenas a seu governo municipal,
mas ainda a tudo o que dele derivava entre os antigos, isto é, a sua religião, a
seu direito privado. A partir desse momento esses homens não formavam mais
entre si um corpo político; não tinham mais nada de uma sociedade regular.
Sua urbe podia continuar de pé, mas sua cidade já havia desaparecido. Se
continuavam a viver juntas, faziam-no sem leis, sem instituições, sem
magistrados. A autoridade arbitrária de um praefectus, enviado por Roma,
mantinha entre eles a ordem material(25).
Por outra parte eram aliados, foederati ou socii. Eram menos maltratados. No
dia em que entraram para o domínio de Roma, haviam estipulado que
conservariam o regime municipal e continuariam organizados como cidades.
Continuavam, portanto, em cada cidade a ter constituição própria,
magistraturas, senado, pritaneu, leis, juízes. A cidade era considerada
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
independente, e parecia não ter outras relações com Roma que as de um aliado
com outro aliado. Todavia, nos termos do tratado que havia sido redigido no
momento da conquista, Roma inserira esta fórmula: Majestatem populi
romani comiter conservato(26). Estas palavras estabeleciam a dependência
da cidade aliada com relação à cidade soberana, e como os termos eram muito
vagos, resultava de aí que a medida dessa dependência sempre estava sujeita à
vontade do mais forte. Essas cidades, que se chamavam livres, recebiam
ordens de Roma, obedeciam aos procônsules, e pagavam impostos aos
publicanos; seus magistrados prestavam contas ao governador da província,
que recebia também a apelação de seus juízes(27). Ora, a natureza do regime
municipal era tal entre os antigos, que era necessária uma independência
completa ou não podia existir. Entre a continuação das instituições citadinas e
a subordinação a um poder estrangeiro, havia uma contradição que talvez não
apareça claramente aos olhos dos modernos, mas que devia impressionar
todos os homens da época. A liberdade municipal e o império de Roma eram
coisas inconciliáveis; a primeira não passava de aparência, de uma mentira,
um passatempo bom para entreter os homens. Cada uma daquelas cidades
enviava, quase todos os anos, uma deputação a Roma, e seus negócios mais
íntimos e mais minuciosos eram regulados pelo senado. Elas tinham ainda
seus magistrados municipais, arcontes, estrategos, livremente eleitos; mas o
arconte não tinha outra atribuição que inscrever seu nome sobre os registros
públicos para marcar o ano, e o estratego, outrora chefe do exército e do
Estado, apenas cuidava das vias públicas e da inspecção dos mercados(28).
As instituições municipais, portanto, desapareciam tanto entre os povos
chamados aliados e como entre os chamados súditos, com a única diferença
de que os primeiros conservavam-lhe ainda as formas exteriores. Para dizer a
verdade, a cidade, tal como a antiguidade a havia concebido, não se via mais
em nenhuma parte, a não ser dentro dos muros de Roma(29).
Além do mais, Roma, destruindo por toda parte o regime da cidade, não o
substituía por coisa nenhuma. Os povos, aos quais privava de suas
instituições, Roma não dava em troca as instituições romanas. Nem mesmo
pensava em criar novas instituições para uso das cidades vencidas. Jamais
criou uma constituição para os povos de seu império, e não soube estabelecer
regras fixas para governá-los. A própria autoridade que exercia sobre eles
nada tinha de regular. Como não faziam parte de seu Estado, de sua cidade,
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Roma não exercia sobre eles nenhuma ação legal. Para ela seus súditos eram
estrangeiros; por isso, com relação a eles, Roma não exercia senão um poder
irregular e ilimitado, que o antigo direito municipal conferia ao cidadão com
relação ao estrangeiro ou ao inimigo. Foi sobre esse princípio que se baseou
por muito tempo a administração romana; eis como ela procedia.
Roma enviava um de seus cidadãos a um país; fazia desse país província
desse homem, isto é, seu encargo, seu cuidado e negócio pessoal; este era o
sentido da palavra província na linguagem antiga. Ao mesmo tempo, conferia
a esse cidadão o imperium; isso significava que Roma desfazia-se em seu
favor, por ter determinado, da soberania que tinha sobre o país. Desde então
esse cidadão representava em sua pessoa todos os direitos da república, e, por
essa razão, tornava-se senhor absoluto do país. Fixava a importância dos
impostos, exercia o poder militar, administrava a justiça. Suas relações com os
súditos ou aliados não eram reguladas por nenhuma constituição. Quando
tomava assento no tribunal julgava de acordo com a própria vontade;
nenhuma lei podia ser-lhe imposta, nem a das províncias, porque era romano,
nem a de Roma, porque julgava provincianos. Para que houvesse leis entre ele
e seus administrados seria necessário que ele próprio as fizesse, porque
somente ele tinha autoridade para se obrigar a si mesmo. Assim o imperium
de que estava revestido, incluía o poder legislativo. Daí resulta que os
governadores tiveram o direito e contraíram o hábito de publicar, ao entrar na
província, um código de leis que chamavam de edito, ao qual obrigavam-se
moralmente a obedecer. Mas como os governadores eram substituídos todos
os anos, esses códigos também mudavam todos os anos, porque a lei não
procedia senão da vontade do homem momentaneamente revestido do
imperium. Esse princípio era tão rigorosamente aplicado que, quando um
julgamento havia sido pronunciado pelo governador, mas não havia sido
inteiramente executado no momento de sua partida da província, a chegada do
sucessor anulava de pleno direito esse julgamento, e o processo devia ser
recomeçado(30).
Tal era a onipotência do governo. O governo era a lei. Quanto a invocar a
justiça romana contra suas violências e seus crimes, os provincianos não o
podiam fazer senão por intermédio de um cidadão romano que lhes servisse
de patrono(31), porque por si próprios eles não tinham o direito de alegar a lei
da cidade, nem de apelar para seus tribunais. Eram estrangeiros; a linguagem
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
jurídica e oficial chamava-os de peregrini; tudo o que a lei dizia do hostis
continuava a se aplicar a eles.
A situação legal dos habitantes do império aparecia claramente nos escritos
dos jurisconsultos romanos. Por aí vemos que os povos são considerados
como não tendo mais suas leis próprias, sem que por isso tivessem as leis
romanas. Para eles, portanto, o direito não existe de maneira nenhuma. Aos
olhos do jurisconsulto romano o provinciano não era nem marido, nem pai,
isto é, a lei não lhe reconhecia nem poder marital, nem autoridade paterna.
Para ele não existe propriedade; há até dupla impossibilidade para que isso
aconteça: impossibilidade causada por sua condição pessoal, porque não é
cidadão romano; impossibilidade causada pela condição de sua terra, que não
é terra romana, e a lei não admite direito de propriedade completo senão
dentro dos limites do ager romanus(32). Por isso os jurisconsultos ensinam
que as terras das províncias nunca são propriedade particular, e que os
homens só podem ter ali a posse e o usufruto(33). Ora, o que eles dizem, no
segundo século de nossa era, do solo das províncias, era igualmente verdade
em relação ao solo da Itália antes do dia em que a Itália havia conquistado o
direito de cidade romana, como veremos adiante.
Prova-se, portanto, que os povos, à medida que entravam no império romano,
perdiam sua religião municipal, seu governo, seu direito privado. Podemos
muito bem acreditar que Roma moderasse na prática o que seu domínio tinha
de destrutivo. Assim vemos claramente que se a lei romana não reconhecia ao
súdito a autoridade paterna, contudo deixava que essa autoridade subsistisse
nos costumes. Se não se permitia a tal homem dizer-se proprietário do solo,
deixava-se-lhe ainda a posse do mesmo; ele cultivava a terra, vendia-a, legavaa.
Nunca se dizia que essa terra fosse sua, mas se dizia que era como sua, pro
suo. Não era sua propriedade, dominium, mas fazia parte de seu patrimônio, in
bonis(34). Roma imaginava assim em proveito do súdito uma multidão de
rodeios e artifícios de linguagem. Certamente o gênio romano, se suas
tradições municipais o impediam de fazer leis para os vencidos, não podia
contudo suportar que a sociedade fosse dissolvida. Em princípio punham-na
fora da lei; de fato viviam como se tivessem uma lei. Mas, salvo isso, e salvo
a tolerância do vencedor, deixavam todas as instituições do vencido
esquecidas, e faziam desaparecer todas as suas leis. O imperium romanum
apresentou, sobretudo sob o regime republicano e senatorial, este singular
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espetáculo: apenas uma cidade ficava de pé, conservando suas instituições e
direito; todo o resto, isto é, oitenta milhões de almas, ou não tinha mais
nenhuma espécie de leis, ou, pelo menos, leis que fossem reconhecidas pela
cidade soberana. O mundo então não era precisamente um caos; mas a força, a
arbitrariedade, a convenção, na falta de leis e de princípios, sustentavam
sozinhos a sociedade.
Foi esse o efeito da conquista romana sobre os povos que sucessivamente
caíram sob seu domínio. Da cidade nada ficou: em primeiro lugar, a religião,
depois o governo, e, enfim, o direito privado; todas as instituições municipais,
há muito tempo abaladas, foram enfim desenraizadas e aniquiladas. Mas
nenhuma sociedade regular, nenhum sistema de governo substituiu
imediatamente o que desaparecia. Houve uma pausa entre o momento em que
os homens viram o regime municipal dissolver-se, e aquele em que viram
nascer outro modo de sociedade. A nação não sucedeu imediatamente à
cidade, porque o imperium romanum não se assemelhava de nenhum modo a
uma nação. Era uma multidão confusa, onde não havia verdadeira ordem
senão em um ponto central, e onde todo o resto gozava apenas de uma ordem
fictícia e transitória, e isso somente a preço de obediência. Os povos vencidos
não conseguiram constituir-se em corpo organizado senão conquistando, por
sua vez, os direitos e instituições que Roma queria conservar para si; para isso
era-lhes necessário entrar na cidade romana, ter nela um lugar, insistir para
consegui-lo, transformá-la também, a fim de fazer deles e de Roma um
mesmo corpo. Foi um trabalho longo e difícil.
5.° Os povos vencidos entram sucessivamente a fazer parte da cidade romana
Acabamos de ver como a condição de súdito de Roma era deplorável, e como
a condição do cidadão devia ser invejada. Não é só a vaidade que sofria; havia
interesses mais reais e queridos. Quem não era cidadão romano não era
considerado marido ou pai; não podia ser legalmente proprietário ou herdeiro.
Tal era o valor do título de cidadão romano, que sem ele ficava-se fora do
direito, e com ele passava-se a fazer parte da sociedade regular. Aconteceu,
pois, que esse título tornou-se objeto dos mais vivos desejos dos homens. O
latino, o italiano, o grego, mais tarde o espanhol e o gaulês desejaram ser
cidadãos romanos, único meio de se ter direitos e de valer alguma coisa.
Todos, um após outro, quase pela ordem em que haviam entrado para o
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império romano, trabalharam a fim de entrar na cidade romana, e, o que
conseguiram depois de longos esforços.
Essa lenta introdução dos povos no Estado romano é o último ato da longa
história da transformação social dos antigos. Para observar esse grande
acontecimento em todas as suas fases sucessivas, é necessário observar seu
início no quarto século antes de nossa era.
O Lácio havia sido submetido; dos quarenta pequenos povos que o habitavam,
Roma havia exterminado a metade, despojando alguns de suas terras, e
deixando aos demais o título de aliados. Em 340 se aperceberam de que essa
aliança só lhes trazia desvantagens, pois deviam obedecer em tudo, e estavam
condenados a prodigar, cada ano, sangue e dinheiro para único proveito de
Roma. Essas nações, portanto, se uniram; seu chefe, Ânio, formulou assim
suas reclamações no senado de Roma: Dêem-nos igualdade; que as vossas
leis sejam as nossas; que não formemos convosco senão um único Estado, una
civitas; que não tenhamos senão um nome, e que todos nos chamem
igualmente de romanos(35). Ânio formulava assim, desde o ano 340, os
votos de todos os povos do império, votos que não deviam ser completamente
realizados senão depois de cinco séculos e meio. Então esse pensamento era
muito novo, inesperado; os romanos consideraram-no monstruoso, criminoso;
era, com efeito, contrário à velha religião e aos velhos direitos das cidades. O
cônsul Mânlio respondeu que, se semelhante proposição fosse aceita, ele,
cônsul, mataria com suas próprias mãos o primeiro latino que viesse tomar
assento no senado; depois, voltando-se para o altar, tomou a divindade por
testemunha, dizendo: Ouviste, Júpiter, as palavras ímpias da boca desse
homem. Poderás tolerar, ó deus, que um estrangeiro venha sentar-se em teu
templo sagrado, como senador, como cônsul? Mânlio exprimiu assim o
velho sentimento de repulsa que separava o cidadão do estrangeiro. Ele era o
porta-voz da antiga ordem religiosa, que prescrevia que o estrangeiro fosse
detestado pelos homens, porque era amaldiçoado pelos deuses da cidade.
Parecia-lhe impossível que um latino fosse senador, porque o local de reunião
do senado era um templo, e os deuses romanos não podiam suportar em seu
santuário a presença de estrangeiros(36).
Veio a guerra; os latinos fizeram a deditio, isto é, entregaram aos romanos
suas cidades, seus cultos, suas leis, suas terras. Sua posição era crítica. Um
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cônsul diz no senado que, se não queriam que Roma ficasse rodeada por
imenso deserto, era necessário regular a sorte dos latinos com alguma
clemência. Tito Lívio não explica claramente o que se fez; mas parece que
deram aos latinos o direito de cidade romana, mas sem compreender na ordem
política, o direito de sufrágio, nem na ordem civil o direito de casamento;
pode-se notar além disso que esses novos cidadãos não eram contados pelo
censo. Vê-se bem que o senado enganava os latinos, dando-lhes o nome de
cidadãos romanos; esse título encobria verdadeira sujeição, porque os homens
que o levavam tinham obrigações de cidadão sem ter os respectivos direitos.
Isso é tão verdade que diversas cidades latinas se revoltaram para que lhes
retirassem esse pretenso direito de cidadania.
Cem anos se passaram, e, sem que Tito Lívio nos advirta, reconhecemos que
Roma mudou de política. A condição dos latinos, tendo direito de cidade sem
sufrágio e sem connubium, não existe mais. Roma tirou-lhes o título de
cidadãos, ou antes, fez desaparecer essa mentira, e decidiu-se a dar às diversas
cidades seu governo municipal, suas leis, suas magistraturas.
Mas, por um rasgo de grande habilidade, Roma abria uma porta que, por mais
estreita que fosse, permitiu-lhes entrar para a sociedade romana, ao conceder
que todo latino que tivesse exercido a magistratura em sua cidade natal fosse
cidadão romano ao término do mandato(37). Desta vez o dom de direito de
cidade era completo e sem reservas: sufrágios, magistraturas, inscrição no
censo, casamento, direito privado, tudo nele estava incluído. Roma resignavase
a partilhar com o estrangeiro sua religião, seu governo, suas leis; somente
que seus favores eram individuais, e endereçavam-se não a cidades inteiras,
mas a alguns homens de algumas delas. Roma não admitia em seu seio senão
o que havia de melhor, de mais rico, de mais considerado no Lácio.
Esse direito de cidade tornou-se então precioso, em primeiro lugar porque era
completo, e depois porque era um privilégio. Por ele podia-se figurar nos
comícios da cidade mais poderosa da Itália; podia-se ser cônsul e comandar
legiões. Tinha-se também com que satisfazer às ambições mais modestas;
graças a ele podia-se contrair matrimônio com uma família romana; podia-se
morar em Roma, e ser nela proprietário; podia-se negociar em Roma, que já
se tornava o primeiro lugar no comércio do mundo. Podia-se entrar nas
companhias dos publicanos, isto é, participar dos enormes benefícios
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
provenientes do recebimento dos impostos ou da especulação sobre as terras
do ager publicus. Onde quer que se morasse, estava-se muito bem protegido;
escapava-se à autoridade dos magistrados municipais, ficava-se protegido
contra os caprichos dos próprios magistrados romanos. Com ser cidadão de
Roma ganhavam-se honras, riqueza, segurança.
Os latinos, portanto, mostraram-se muito interessados em conseguir esse
título, e usaram de todos os meios para conquistá-lo. No dia em que Roma
quis mostrar-se um pouco severa, descobriu que 12.000 latinos o haviam
conseguido por fraude(38).
Ordinariamente Roma fechava os olhos, pensando que desse modo crescia sua
população, reparando assim as perdas da guerra. Mas as cidades latinas
sofriam; seus cidadãos mais ricos tornavam-se cidadãos romanos, e o Lácio se
empobrecia. O imposto, de que os mais ricos estavam isentos, como cidadãos
romanos, tornava-se cada vez mais pesado, e o contingente de soldados que
deviam fornecer a Roma cada ano tornava-se mais difícil de completar.
Quanto maior era o número dos que conseguiam o direito de cidade, mais
dura era a condição dos que o não tinham. Tempos houve em que as cidades
latinas pediram que esse direito de cidade deixasse de ser privilégio.
As cidades italianas que, submetidas há dois séculos, estavam quase na
mesma condição que as cidades latinas, e viam assim seus mais ricos
habitantes abandoná-las para se tornarem romanos, reclamaram para si o
direito de cidadania. A sorte dos súditos ou dos aliados tornara-se bem menos
suportável nessa época, pois a democracia romana agitava então a grande
questão das leis agrárias. Ora, o princípio de todas essas leis era que nem o
súdito, nem o aliado podia ser proprietário do solo, salvo ato formal da cidade,
e que a maior parte das terras italianas pertencia à república; um partido
exigia que essas terras, ocupadas quase em sua totalidade por italianos,
fossem retomadas pelo Estado, e divididas entre os povos de Roma. Os
italianos estavam, portanto, ameaçados de ruína geral; sentiam vivamente a
necessidade de ter direitos civis, e não podiam consegui-los senão tornando-se
cidadãos romanos.
A guerra que se seguiu chamou-se guerra social; com efeito, eram os aliados
de Roma que tomavam armas para deixar de ser aliados, e tornar-se romanos.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Roma, vitoriosa, foi todavia forçada a conceder o que lhe pediam, e os
italianos receberam o direito de cidadania. Assimilados desde então aos
romanos, puderam votar no fórum; na vida privada, eram dirigidos pelas leis
romanas; reconheceram-lhes os direitos sobre o solo, e a terra italiana, assim
como a terra romana, começou a poder ser propriedade também dos latinos.
Estabeleceu-se então o jus italicum, que era o direito, não da pessoa italiana,
pois o italiano tornara-se romano, mas do solo itálico, que se tornou suscetível
de propriedade como o era o ager romanus(39).
A partir desse tempo a Itália inteira formou um único Estado. Restava ainda
fazer entrar na unidade romana as províncias.
Deve-se fazer distinção entre as províncias do Ocidente e a Grécia. A
Ocidente estavam a Gália e a Espanha, que, antes da conquista, não haviam
conhecido o verdadeiro regime municipal. Roma aplicou-se a criar esse
regime entre os povos, seja porque não julgava possível governá-los de outra
maneira, seja porque, para assimilá-los pouco a pouco às populações italianas,
era necessário fazê-las passar pelo mesmo caminho seguido por essas
populações. Por essa razão os imperadores, que suprimiam toda a vida política
em Roma, conservavam cuidadosamente as formas da liberdade municipal nas
províncias. Assim se formaram cidades na Gália; cada uma delas teve seu
senado, seu corpo aristocrático, suas magistraturas eletivas; cada uma teve até
seu culto local, seu Genius, sua divindade políada, à imagem do que havia na
antiga Grécia e na antiga Itália. Ora, esse regime municipal assim
estabelecido, não impedia que os homens conseguissem a cidadania romana,
pelo contrário, preparava-os para isso. Uma jerarquia habilmente combinada
entre essas cidades marcava os graus pelos quais elas deviam aproximar-se
insensivelmente de Roma, para enfim assimilarem-se a ela. Distinguiam-se: 1.
° os aliados, que tinham governo e leis próprias; 2.° as colônias, que gozavam
do direito civil dos romanos, sem gozar dos direitos políticos; 3.° as cidades
de direito itálico, isto é, aquelas a quem o favor de Roma havia concedido o
direito de propriedade completa sobre suas terras, como se essas terras
estivessem na Itália; 4.° as cidades de direito latino, isto é, aquelas cujos
habitantes podiam, segundo uso outrora estabelecido no Lácio, tornar-se
cidadãos romanos, depois de haver exercido uma magistratura municipal.
Essas distinções eram tão profundas, que entre pessoas de duas categorias
diferentes não havia casamento possível nem religião alguma legal. Mas os
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imperadores cuidaram para que as cidades pudessem levantar-se, com o
tempo, gradativamente, da condição de súditas à de aliadas ao direito itálico, e
do direito itálico ao direito latino. Quando uma cidade conseguia isso, suas
principais famílias tornavam-se romanas uma após outra.
A Grécia entrou assim, pouco a pouco, no Estado romano. Cada cidade
conservou primeiramente as formas e o mecanismo do regime municipal. No
momento da conquista a Grécia mostrara-se desejosa de conservar sua
autonomia; o que lhe foi concedido, talvez por mais tempo do que desejara.
Ao cabo de poucas gerações ela quis tornar-se romana; a vaidade, a ambição,
o interesse trabalhavam para isso.
Os gregos não sentiam por Roma esse ódio que se sente ordinariamente por
um soberano estrangeiro; eles a admiravam, sentiam por ela veneração;
espontaneamente devotavam-lhe um culto, levantavam-lhe templos, como a
um deus. Cada cidade esquecia-se da própria divindade políada, e adorava em
seu lugar à deusa Roma e ao deus César; dedicavam-lhe as mais belas festas e
os primeiros magistrados não tinham função mais alta que a de celebrar com
grande pompa os jogos augustos(40). Os homens acostumaram-se assim a
levantar os olhos acima de suas cidades; viam em Roma a cidade por
excelência, a verdadeira pátria, o pritaneu de todos os povos. A cidade em que
moravam parecia-lhes pequena; seus interesses não ocupavam mais seus
pensamentos; as honras que ela proporcionava não satisfaziam mais às suas
ambições. Nada tinha valor se não se era cidadão romano. É verdade que, sob
os imperadores, esse título não conferia mais direitos políticos, mas oferecia
vantagens mais sólidas, porque o homem que dele se revestia conquistava ao
mesmo tempo plenos direitos de propriedade, o direito de contrair
matrimônio, a autoridade paterna e todo o direito privado de Roma. As leis
que cada um encontrava em sua cidade eram leis variáveis, e sem fundamento,
que não tinham senão um valor de tolerância; o romano desprezava-as e o
próprio grego dava-lhes pouco valor. Para se ter leis fixas, reconhecidas por
todos, e verdadeiramente santas, era necessário ter leis romanas.
Não se pode dizer que toda a Grécia, ou uma de suas cidades tenha
formalmente pedido esse direito tão desejado, mas os homens trabalharam
individualmente a fim de consegui-lo, e Roma, de muito boa vontade, o
concedia. Uns o alcançaram por graça do imperador; outros compraram-no;
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
concederam-no também a quem dava três filhos à sociedade, ou aos que
serviam nos corpos do exército; às vezes, para obtê-lo, bastava construir um
navio destinado ao comércio, com determinada tonelagem, ou ter levado trigo
a Roma. Um meio fácil e pronto para conseguir esse direito era vender-se
como escravo a um cidadão romano, porque a libertação nas formas legais
levava ao direito de cidadania(41).
O homem que possuía o título de cidadão romano não fazia mais parte, nem
civil, nem politicamente, de sua cidade natal. Podia continuar a morar nela,
mas era considerado estrangeiro; não estava mais sujeito às leis da cidade, não
obedecia mais a seus magistrados, não suportava mais seus impostos(42). Era
a conseqüência do antigo princípio que não permitia que um mesmo homem
pertencesse ao mesmo tempo a duas cidades(43). Aconteceu, naturalmente,
que depois de algumas gerações houve em cada cidade grega tão grande
número de homens, ordinariamente os mais ricos, que não reconheciam nem o
governo, nem o direito dessa cidade. O regime municipal morreu assim
lentamente, e como de morte natural. Dia veio em que a cidade não
significava mais nada; as leis locais não se aplicavam a mais ninguém, e os
juízes municipais não sabiam mais em quem aplicar as leis.
Enfim, quando oito ou dez gerações andaram suspirando pelo direito de
cidadania romana, e tudo o que tinha algum valor o havia conseguido,
apareceu um decreto imperial que o concedeu a todos os homens livres, sem
distinção,
O que é estranho aqui é que não se pode precisar com certeza nem a data
desse decreto, nem o nome do príncipe que o promulgou; atribuem-no, com
alguma verossimilhança, a Caracala, isto é, a um príncipe que nunca teve
grande visão, e, por isso, só lhe atribuem como simples medida de caráter
fiscal. Talvez, na história dos decretos, não se encontre outro mais importante
que esse: ele suprimia a distinção que existia desde a conquista romana entre
o povo dominador e os povos vencidos; fazia até desaparecer a distinção
muito mais antiga, que a religião e o direito haviam traçado entre as cidades.
Contudo os historiadores desse tempo não o anotaram, e o conhecemos apenas
por dois textos muito vagos dos jurisconsultos, e uma breve indicação de Díon
Cássio(44). Se esse decreto não impressionou aos contemporâneos e não foi
notado pelos que então escreviam a história, é porque a mudança de que ele
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
era a expressão legal já terminara há muito tempo. A desigualdade entre
cidadãos e súditos diminuíra de geração para geração, e aos poucos
desaparecera. O decreto pôde passar desapercebido, sob o véu de uma medida
fiscal; ele proclamava e fazia passar para o domínio do direito o que já era um
fato consumado.
O título de cidadão começou então a cair em desuso, ou, se ainda era
empregado, o era para designar a condição de homem livre, oposta à do
escravo. A partir desse tempo tudo o que fazia parte do império romano,
desde a Espanha até o Eufrates, formava verdadeiramente um só povo, um só
Estado. A distinção das cidades havia desaparecido; a das nações não aparecia
senão muito vagamente. Todos os habitantes desse imenso império eram
igualmente romanos. O gaulês abandonou o nome de gaulês, e tomou
apressadamente o de romano; assim fez o espanhol, assim fez o habitante da
Trácia e o da Síria. Não havia mais senão um só nome, uma só pátria, um só
governo, um só direito.
Por aí vemos como a cidade romana se desenvolveu de idade em idade. A
princípio não abrangia senão patrícios e clientes; depois, a classe dos plebeus;
depois latinos e italianos; enfim, vieram os da província. A conquista não fora
suficiente para operar essa grande mudança. Fazia-se necessária a lenta
transformação das idéias, as concessões prudentes, mas não interrompidas dos
imperadores, e o interesse e solicitude individuais. Então todas as cidades,
pouco a pouco, foram desaparecendo, e a cidade romana, a última a ficar de
pé, também se transformou a ponto de se tornar a reunião de uma dúzia de
povos grandes sob um único senhor. Assim caiu o regime municipal.
Não cabe a nosso tema dizer por qual sistema de governo esse regime foi
substituído, nem procurar saber se essa mudança foi a princípio mais
vantajosa que funesta aos diversos povos. Devemos parar no momento em que
as velhas formas da sociedade que a antiguidade havia estabelecido
desapareceram para sempre.
CAPÍTULO III
O CRISTIANISMO MUDA AS CONDIÇÕES DE GOVERNO
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
A vitória do cristianismo marca o fim da sociedade antiga. Com a nova
religião acaba essa transformação social que vimos começar seis ou sete
séculos antes.
Para saber como os princípios e as regras essenciais foram então mudadas,
basta que nos lembremos de que a antiga sociedade havia sido constituída por
uma nova religião, cujo principal dogma era o de que cada deus protegia
exclusivamente uma família ou uma cidade, e não existia senão para ela. Essa
religião havia gerado o direito: as relações entre os homens, a propriedade, a
herança, o processo, tudo foi regulado, não pelos princípios de eqüidade
natural, mas pelos dogmas dessa religião em vista das necessidades de seu
culto. Fora ela também que havia estabelecido um governo entre os homens: o
do pai. na família, o do rei ou do magistrado na cidade. Tudo viera da religião,
isto é, da opinião que o homem fazia da divindade. Religião, direito, governo
confundiam-se; não eram mais que uma só coisa sob três aspectos diferentes.
Procuramos pôr à luz esse regime social dos antigos, no qual a religião era
senhora absoluta na vida particular e na vida pública; onde o Estado era uma
comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei
uma fórmula santa; onde o patriotismo era a piedade, o exílio uma
excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida, onde o homem
estava sujeito ao Estado por sua alma, por seu corpo, por seus bens; onde o
ódio era obrigatório contra o estrangeiro, onde a noção do direito e do dever,
da justiça e do afeto paravam nos limites da cidade; onde a associação
humana era necessariamente limitada dentro de certa circunferência ao redor
do pritaneu, e onde não se via a possibilidade de fundar sociedades maiores.
Tais foram os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o
primeiro período de sua história.
Mas, pouco a pouco, como vimos, a sociedade se modificou. O direito e o
governo se transformaram, ao mesmo tempo que a religião. Já nos cinco
séculos que precedem o cristianismo, a aliança não era mais tão íntima entre a
religião, de uma parte, e o direito e a política de outra. Os esforços das classes
oprimidas, a decadência da casta sacerdotal, o trabalho dos filósofos, o
progresso do pensamento haviam abalado os velhos princípios da associação
humana. Fizeram-se incessantes esforços para libertar o homem do império da
antiga religião, à qual o homem não podia mais crer; o direito e a política,
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como a moral, haviam-se pouco a pouco desembaraçado de seus laços.
Devemos notar apenas que essa espécie de divórcio provinha do desgaste da
antiga religião; se o direito e a política começavam a ser algo independentes, é
porque os homens deixavam de crer; se a sociedade não era mais governada
pela religião, é porque sobretudo a religião não tinha mais forças. Ora, dia
veio em que o sentimento religioso retomou vida e vigor, e em que, sob a
forma cristã, a crença reconquistou o império sobre a alma. Não iria, no
entanto, reaparecer a antiga confusão do governo e do sacerdócio, da fé e da
lei?
Com o cristianismo, não somente o sentimento religioso foi reavivado, mas
tomou ainda uma expressão mais alta e menos material. Enquanto outrora se
haviam feito deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começouse
então a conceber Deus como verdadeiramente estranho, por sua essência, à
natureza humana de uma parte, e ao mundo de outra. O divino foi
decididamente colocado fora da natureza visível e acima dela. Enquanto que
outrora cada homem fizera seu deus, tendo tantos deuses quantas as famílias e
as cidades, Deus apareceu então como ser único, imenso, universal, animando
sozinho os mundos, satisfazendo sozinho à necessidade de oração que há no
homem. Enquanto outrora a religião, entre os povos da Grécia e da Itália, nada
mais era que um conjunto de práticas, uma série de ritos que se repetiam sem
ter nenhum sentido, uma seqüência de fórmulas que muitas vezes já não se
compreendiam mais, porque a língua envelhecera, uma tradição que se
transmitia de idade em idade, e não recebia seu caráter sagrado senão de sua
antiguidade, em vez disso a religião foi um conjunto de dogmas e um grande
objetivo proposto à fé. A religião deixou de ser exterior, e limitou-se
sobretudo ao pensamento humano. Não foi mais material, tornou-se espírito.
O cristianismo mudou a natureza e a forma da adoração: o homem não deu
mais a Deus alimento e bebida; a oração não foi mais uma fórmula de
encantamento; foi um ato de fé e um pedido humilde. A alma manteve outras
relações com a divindade; a crença dos deuses foi substituída pelo amor de
Deus.
O cristianismo trazia ainda outras novidades. Não era a religião doméstica de
uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. Ele não
pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamara a
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si a humanidade inteira. Jesus Cristo dizia a seus discípulos: Ide e ensinai a
todos os povos.
Esse princípio era tão extraordinário e tão inesperado que os primeiros
discípulos tiveram um momento de hesitação; pode-se ver nos Atos dos
Apóstolos que muitos deles se recusaram a princípio a propagar a nova
doutrina fora do povo no qual nascera. Seus discípulos pensavam, como os
antigos judeus, que o Deus dos judeus não queria ser adorado por
estrangeiros; como os romanos e os gregos dos tempos anteriores, eles
acreditavam que cada raça tinha seu deus, que propagar o nome e o culto
desse deus era o mesmo que privar-se de um bem próprio e de um protetor
especial, e que tal propaganda era ao mesmo tempo contrária ao interesse e ao
dever. Mas Pedro replicou a seus discípulos: Deus não faz diferenças entre
os gentios e nós. São Paulo gostava de repetir esse grande princípio em
todas as ocasiões e sob todas as formas: Deus diz ele abre aos gentios
as portas da fé. Não será ele Deus senão dos judeus? Não, certamente, pois o é
também dos gentios... Os gentios são chamados à mesma herança que os
judeus.
Havia em tudo isso algo de muito novo, porque em toda parte, desde os
primeiros tempos da humanidade, concebera-se a divindade como ligada
especialmente a uma raça. Os judeus haviam acreditado no Deus dos judeus,
os atenienses em Palas ateniense, os romanos em Júpiter Capitolino. O direito
de praticar o culto era privilégio. O estrangeiro havia sido rejeitado pelos
templos; o que não era judeu não podia entrar no templo dos judeus; o
lacedemônio não tivera o direito de invocar Palas ateniense. É justo dizer que
nos cinco séculos que precederam o cristianismo todo o homem que pensava
já se insurgia contra essas regras muito restritas. A filosofia havia ensinado
tantas vezes, desde Anaxágoras, que o Deus do universo recebia
indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis
admitira iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis, e de
alguns outros haviam aceitado indiferentemente adoradores de todas as
nações. Os judeus haviam começado a admitir o estrangeiro em sua religião;
os gregos e os romanos admitiram-nos em suas cidades. O cristianismo,
surgindo depois de todos esses progressos do pensamento e das instituições,
apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus
universal, um Deus que era de todos, que não tinha mais povo escolhido, e
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que não distinguia nem raças, nem famílias, nem estados.
Para esse Deus não havia mais estrangeiros. O estrangeiro não profanava mais
o templo, não maculava mais o sacrifício apenas com sua presença. O templo
foi aberto para todos os que crêem em Deus. O sacerdócio deixou de ser
hereditário, porque a religião não era mais um patrimônio. O culto não foi
mais mantido em segredo; os ritos, as orações, os dogmas não se mantiveram
mais escondidos; pelo contrário, passou a existir um ensinamento religioso,
que não somente se dá, mas que se oferece, que se leva aos lugares mais
afastados, que vai em busca dos mais indiferentes. O espírito de propaganda
substituiu a lei de exclusão.
Isso teve grandes conseqüências, tanto para as relações entre os povos como
para o governo dos Estados.
Entre os povos, a religião não mandava mais o ódio; não obrigou mais o
cidadão a detestar o estrangeiro; pelo contrário, pertencia à sua essência
ensinar que ele tinha para com o estrangeiro, para com o inimigo, deveres de
justiça, e até de benevolência. As barreiras entre os povos e as raças ficaram
assim diminuídas; desapareceu o pomoerium Jesus Cristo diz o
apóstolo derrubou a muralha da separação e da inimizade. Os
membros são muitos diz ele ainda mas todos fazem um só corpo. Não
há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos; nem
bárbaro, nem cita. Todo o gênero humano está disposto na unidade.
Passou-se até a ensinar aos povos que todos descendiam de um mesmo pai
comum. Com a unidade de Deus, a unidade da raça humana apareceu aos
espíritos; e desde então passou a ser necessidade da religião proibir o homem
de odiar os outros homens.
Quanto ao governo do Estado, pode-se dizer que o cristianismo transformou-o
em sua essência, precisamente porque não cuidou disso. Nas velhas idades,
religião e Estado eram uma só coisa; cada povo adorava a seu Deus, e cada
deus governava o seu povo; o mesmo código regulava as relações entre os
homens e os deveres para com os deuses da cidade. A religião dominava o
Estado, e indicava-lhe os chefes pela voz da sorte ou dos auspícios; o Estado,
por sua vez, intervinha no domínio da consciência, e punia toda infração aos
ritos e ao culto da cidade. Em lugar disso Jesus Cristo ensina que seu império
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não é deste mundo. Separa a religião do governo. Como a religião não é mais
terrestre, imiscui-se nas coisas da terra o menos possível. Jesus Cristo
acrescenta: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. É a
primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César,
nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião
romana; era o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o
culto e o dogma. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía
precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos
de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino
que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores.
Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império
queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que
obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus.
O cristianismo acaba com os cultos locais, extingue os pritaneus, destrói
definitivamente as divindades políadas. Faz mais ainda: não toma para si o
império que esses cultos haviam exercido sobre a sociedade civil. Professa,
que religião e Estado nada têm em comum; separa o que toda a antiguidade
havia confundido. Podemos aliás notar que durante três séculos a nova
religião viveu completamente fora da ação do Estado; soube passar sem sua
proteção, e até lutou contra ele. Esses três séculos estabeleceram um abismo
entre o domínio do governo e o domínio da religião. E como a lembrança
dessa época gloriosa não podia ser esquecida, aconteceu que essa distinção
tornou-se verdade vulgar e incontestável, que os esforços de uma parte do
clero não foi capaz de desarraigar.
Esse princípio foi fecundo em grandes resultados. De uma parte, a política viuse
definitivamente livre das regras acanhadas que a antiga religião lhe havia
traçado. Os homens puderam ser governados sem ter que se sujeitar a
costumes sagrados, sem pedir a opinião dos auspícios e dos oráculos, sem
conformar todos os atos às crenças e necessidades do culto. A política foi
mais livre em seus métodos; nenhuma outra autoridade, com exceção da lei
moral, a constrangia. Por outra parte, se o Estado dominou mais em certas
coisas, sua ação também foi mais limitada. Toda uma metade do homem lhe
escapava. O cristianismo ensinava que o homem não pertencia mais à
sociedade senão em parte, que não está ligado a ela senão por seu corpo e por
seus interesses materiais; que, sujeito a um tirano, deve submeter-se; que,
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cidadão de uma república, deve dar sua vida por ela; mas que, quanto à alma,
o homem é livre, e não tem obrigações senão para com Deus.
O estoicismo já havia marcado essa separação, restituindo o homem a si
mesmo, e criando a liberdade interior. Mas, do que não era nada mais que o
esforço da energia de uma seita corajosa, o cristianismo fez a regra universal e
inabalável das gerações seguintes; do que não era senão consolo de alguns,
fez o bem comum da humanidade.
Se nos lembrarmos agora do que ficou dito acima sobre a onipotência do
Estado entre os antigos, se pensarmos a qual ponto a cidade, em nome de seu
caráter sagrado, e da religião que lhe era inerente, exercia império absoluto,
veremos que esse princípio novo foi a fonte de onde brotou a liberdade do
indivíduo. Uma vez que a alma se sentiu livre, o mais difícil estava feito, e a
liberdade tornou-se possível na ordem social.
Os sentimentos e os costumes então se transformaram, assim como a política.
A idéia que se fazia acerca dos deveres do cidadão se enfraquecera. O dever
por excelência não consistia mais em dar o tempo, as forças e a vida ao
Estado. A política e a guerra já não são tudo para o homem; todas as virtudes
não estão mais compreendidas no patriotismo, porque a alma não tinha mais
pátria. O homem sentiu que tinha outras obrigações além das de viver e
morrer pela cidade. O cristianismo distinguiu as virtudes particulares das
virtudes públicas. Diminuindo estas, elevou aquelas; colocando Deus, a
família, a pessoa humana acima da pátria, e o próximo abaixo do concidadão.
Também o direito mudou de natureza. Em todas as nações antigas o direito
estava sujeito à religião, recebendo dela todas as suas regras. Entre os persas e
os hindus, entre os judeus, entre os gregos, os italianos e os gauleses, a lei
estava contida nos livros sagrados ou na tradição religiosa. Por isso cada
religião criara o direito à sua imagem. O cristianismo é a primeira religião que
não pretendeu que o direito derivasse dela, ocupando-se dos deveres dos
homens, e não de suas relações de interesse. O cristianismo não regulou nem
o direito de propriedade, nem a ordem das sucessões, nem as obrigações, nem
os processos. Colocou-se fora do direito, como fora de tudo o que fosse
puramente terrestre. O direito, portanto, tornou-se independente; pôde
procurar suas regras na natureza, na consciência humana, na idéia poderosa de
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justiça que está em nós. Pôde desenvolver-se com toda a liberdade, reformarse,
melhorar-se sem nenhum obstáculo, seguir o progresso da moral, dobrar-se
aos interesses e necessidades sociais de cada geração.
A feliz influência da nova idéia é bem visível na história do direito romano.
Durante os poucos séculos que precederam o triunfo do cristianismo, o direito
romano já procurava libertar-se da religião, e aproximar-se da eqüidade e da
natureza; mas procedia apenas por sutilezas e artifícios, que enervavam e
enfraqueciam sua autoridade moral. A obra de regeneração do direito,
anunciada pela filosofia estóica, continuada pelos nobres esforços dos
jurisconsultos romanos, esboçadas pelos artifícios e sutilezas do pretor, não
pôde obter êxito completo senão com a ajuda da independência que a nova
religião dava ao direito. Podemos ver, à medida que o cristianismo
conquistava a sociedade, os códigos romanos admitirem novas regras, não
mais por subterfúgios, mas abertamente, e sem hesitação. Destruídos os
penates domésticos, extintos os fogos sagrados, a antiga constituição da
família desapareceu para sempre, e com ela as regras que dela derivavam. O
pai perdeu a autoridade absoluta que seu sacerdócio lhe outorgara outrora,
conservando apenas as que a natureza lhe confere para as necessidades da
criança. A mulher, que o velho culto colocava em posição inferior ao marido,
tornou-se moralmente sua igual. O direito de propriedade foi mudado em sua
essência; os limites sagrados dos campos desapareceram; a propriedade não
derivou mais da religião, mas do trabalho; a aquisição tornou-se mais fácil, e
as formalidades do antigo direito foram definitivamente esquecidas.
Assim, apenas porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua
constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque
o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens
foram modificadas para sempre.
Nosso estudo deve parar nesse limite que separa a política antiga da política
moderna. Contamos a história de uma crença. Essa crença se estabelece, e a
sociedade humana se constitui. Ela se modifica, e a sociedade humana
atravessa uma série de revoluções. Ela desaparece, e a sociedade humana
muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos.
FIM
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Notas
Livro I - Cap. I
(1) Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum. Cícero, Tusc., I, 16.
Essa crença era tão forte, acrescenta Cícero, que mesmo quando se
estabeleceu o costume de queimar os corpos, continuou-se a acreditar que os
mortos viviam debaixo da terra. Cf. Eurípides, Alceste, 163; Hécuba,
passim.
(2) Virgílio, En. III, 67; Ovídio, Fast, V, 451; Plínio, Ep.. VII, 27. A
descrição de Virgílio refere-se ao uso dos cenotáfios; admitia-se que quando
não se podia encontrar o corpo de um parente, se realizasse uma cerimônia
que reproduzisse exatamente todos os ritos da sepultura, acreditando-se com
isso encerrar a alma do morto no túmulo, mesmo na falta do corpo. Eurípides,
Helena, 1061, 1240. Escoliastes ad Píndar., IV, 234. Virgílio, VI, 505; XII,
214.
(3) Ilíada, XXIII, 221. Eurípides, Alceste, 479. Pausânias, II, 7, 2. Catulo, C.
10. Sérvio, ad Aeneid., II, 640; III, 68; XI, 97. Ovídio, Fast., IV, 852; Metam.,
X, 62. Juvenal, VII, 207. Marcial, I, 89; V, 35; IX, 30.
(4) Eurípides, Alceste, 637, 638; Orestes, 1416-1418. Virgílio, En., VI, 221;
XI. 191-196. O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos é atestado,
quanto a Atenas, por Tucídides, II, 34. A lei de Sólon proibia enterrar mais de
três vestidos com o morto (Plutarco, Sólon, 21). Luciano fala ainda deste
costume: Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os mortos,
como se eles fossem usá-los debaixo da terra! Ainda nos funerais de
César, em época de grande superstição, observou-se o antigo costume,
levando-se à fogueira os munera, roupas, armas, jóias (Suetônio, César, 34);
Cf. Tácito, Ann., III, 3.
(5) Eurípides, Ifigênia em Táurida, 163. Virgílio, En., V, 76-80; VI, 225.
(6) Ilíada, XXI, 27-28; XXIII, 165-176. Virgílio, En., X, 519-20; XI, 80-84;
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197. Idêntico costume existia na Gália, César. B. G., V, 17.
(7) Eurípides, Hécuba, 40-41; 107-113; 637-638.
(8) Píndaro, Pitiq., IV, 284, ed. Heyne; ver o Escoliastes.
(9) Cícero, Tusculunas, I, 16. Eurípides. Tróia, 1085. Heródoto, V, 92.
Virgílio, VI, 371, 379. Horácio, Odes, I, 23. Ovídio, Fast., V, 483. Plínio,
Epist. VII, 27. Suetônio, Calíg., 59. Sérvio, ad. Aen., III, 63.
(10) Ilíada, XXII, 358; Odisséia, XI. 73.
(11) Plauto, Mostellaria, III, 2.
(12) Suetônio, Calígula, 59.
(13) Vide, na Ilíada, XXII, 338-344, Heitor pedindo ao vencedor que não o
deixe insepulto: Rogo-te por teus joelhos, por tua vida, por teus pais, não dês
meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos; aceita o ouro que meu pai te
há de oferecer em abundância, e manda-lhe meu corpo, a fim de que troianos
e troianas me prestem as honras devidas na fogueira. No mesmo sentido,
em Sófocles, Antígone enfrenta a morte para que seu irmão não fique
insepulto (Sóf., Antígone, 467). O mesmo sentimento é expresso por
Virgílio, IX, 213; Horácio, Odes, 1, 18, v. 24-36; Ovídio, Heróides, X, 119-
123; Tristes, III, 3, 45. Igualmente, nas maldições, o que se podia desejar
de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto (Virgílio,
Eneida, IV, 620).
(14) Xenofonte, Helênicas, I, 7.
(15) Ésquilo, Os sete contra Tebas, 1013. Sófocles, Antígone, 198. Eurípides,
Fen., 1627-1632. Cf. Lísias, Epitáf., 7-9. Todas as cidades antigas
acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos a privação da sepultura.
(16) Isso em latim chama-se inferias ferre, parentare, ferre solemnia.
Cícero, De legibus, II, 21. Lucrécio, III, 52. Virgílio, Eneida, VI, 380; IX,
214. Ovid., Amor., I, 13, 3. Essas dádivas, às quais os mortos tinham
direito, chamavam-se Manium jura. Cf. Cícero, De legib., II, 21. Cícero
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aludia a isso em Pro Flacco, 38, e na primeira Filípica, 6. Esses costumes
eram ainda observados nos tempos de Tácito (Hist., II, 95); Tertuliano atacaos
como se estivessem ainda em pleno vigor em seu tempo (De ressurr. carnis,
I; De testim. animae, 4),
(17) Virgílio. En.. III, 301-303; V. 77-81. Ovídio, Fast., II, 535-542.
(18) Eurípídes, Ifigênia em Táurida, 157-163.
(19) Eurípides, Hécuba, 536; Electra, 505 e seguintes.
(20) Ésquilo, Coéforas, 162.
(21) Ésquilo, Coéforas, 432-484. Nos Persas, Ésquilo atribui a Atossa as
idéias dos gregos: Trago a meu esposo estes manjares, para satisfação dos
mortos: leite, mel dourado e o fruto da vinha; chamemos a alma de Dario, e
derramemos estas bebidas, que a terra há de tragar, e que penetrarão até os
deuses lá debaixo. (Persas, 610- 620). Quando as vítimas eram oferecidas
às divindades do céu, a carne era comida pelos ofertantes; mas quando eram
oferecidas aos mortos, a carne era queimada por completo (Pausânias, II, 10).
(22) Luciano, Caron, 22. Ovídio, Fastos, II, 566.
(23) Luciano, Caron, 22: Cavam valas junto aos túmulos e ali cozinham
alimentos para os mortos.
(24) Festo, v. Culina.
(25) Plutarco, Aristides, 21.
(26) Luciano, De luctu,9.
Livro I - Cap. II
(1) Plutarco, Sólon, 21.
(2) Aristóteles, citado por Plutarco, Quest. rom., 52; grecq., 5. Ésquilo, Coéf.,
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475.
(3) Eurípides, Fenic., 1321. Odisséia., X, 526. Ésquilo, Coéf., 475: Ó bemaventurados,
que habitais debaixo da terra, ouvi minha invocação; vinde em
socorro de vossos filhos, e dai-lhes a vitória. É em virtude dessa idéia que
Virgílio chama ao pai morto de Sancte parens, divinus parens: Virg., En., V,
30; V, 47. Plutarco, Quest. rom., 14. Cornélio Nepos, Fragm., XII.
(4) Cícero, De legibus, II, 22.
(5) Santo Agostinho, Cidade de Deus, VIII, 26, IX, 11.
(6) Eurípides, Alceste, 1015.
(7) Cícero, De leg., II, 9. Varrão, em Santo Agostinho, Cidade de Deus,
VIII, 26.
(8) Virgílio, En., IV, 34.
(9) Eurípides, Troianas, 96; Electra, 505-510. Virgílio, En.. VI, 177; III, 63,
305; V. 48. O gramático Nônio Marcelo diz que os antigos chamavam ao
sepulcro de templo; e, com efeito, Virgílio emprega o vocábulo templum para
designar o túmulo ou cenotáfio que Dido constrói para seu esposo (Eneida,
IV, 457). Plutarco, Quest. rom., 14. Continua a chamar-se ara a pedra
levantada sobre o túmulo (Suetônio, Nero, 50). Essa palavra é usada nas
inscrições fúnebres; Orelli, n.°s 4521, 4522, 4826.
(10) Varrão, De lingua lat., V, 74.
(11) Leis de Manu, I, 95; III, 82, 122, 127, 146, 189, 274.
(12) Esse culto tributado aos mortos exprimia-se em grego pelas palavras
enaghízo, enaghismós. Pólux, VIII, 91; Heródoto, I, 167, Aristides, 21; Catão,
15; Pausânias, IX, 13, 3. A palavra enaghízo empregava-se para os sacrifícios
oferecidos aos mortos; thyo, para os que se ofereciam aos deuses do céu; essa
diferença é bem acentuada por Pausânias, II, 10, 1, e pelo escoliastes de
Eurípides, Feníc., 281. Cf. Plutarco, Quest. rom., 34.
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(13) Vide em Heródoto, I, 167, a história das almas dos fócios, que
assustaram a toda uma região, até que lhes celebraram o aniversário da morte,
e vários heróis semelhantes em Heródoto e Pausânias, VI, 6, 7. Do mesmo
modo, em Ésquilo, Clitemnestra, advertida de que os manes de Agamenon
estão irritados contra ela, apressa-se em mandar alimentos a seu túmulo. Vide
também a lenda romana narrada por Ovídio, Fastos, II, 549-556: Esqueceramse,
um dia, do dever das parentalia, e as almas saíram dos túmulos, e viramnas
correr, gritando pelas ruas da cidade e pelos campos do Lácio, até que
ofereceram sacrifícios em seus túmulos. Cf. a história que nos conta ainda
Plínio, o Jovem, VII, 27.
(14) Ovídio, Fast., II, 518. Virgílio, En., VI 379. Comparar com o grego
hiláskomai (Pausânias, VI, 6, 8). Tito Lívio, 1, 20.
(15) Eurípides, Alceste, 1004 (1016). Acredita-se que, se não dermos
nenhuma atenção a esses mortos, e negligenciarmos seu culto, eles nos
castigam, e que, pelo contrário, nos protegem se os tornarmos propícios
mediante nossas ofertas. Porfírio, De abstin., II, 37. Vide Horácio, Odes,
II, 23; Platão, Leis, IX, p. 926-927.
(16) Ésquilo, Coéforas, 122-145.
(17) É possível que o sentido primitivo de héros tenha sido o de homem
morto. A linguagem das inscrições, que é a do vulgo, e que é ao mesmo tempo
a em que o antigo sentido das palavras se conserva por mais tempo, usa às
vezes héros com o mesmo significado de defunto, Boeckh, Corp. ínscr., n.°s
1629, 1723, 1781, 1782, 1784, 1786, 1789, 3398; F. Lebas, Monum. de
Moréia, p. 205. Vide Teógnis, ed. Welcker, v. 513, e Pausânias, VI, 6, 9.
Os tebanos usavam uma antiga expressão para significar morrer: héroa
ghénes-thai (Aristóteles, Fragmentos, ed. Heitz, t. IV, p. 260; Cf. Plutarco,
Proverb. quibus Alex. usi sunt. c. 47). Os gregos também davam à alma do
morto o nome de dáimon. Eurípides, Alceste, 1140 e Escoliastes. Ésquilo,
Persas, 620. Pausânias, VI, 6.
(18) Tito Lívio, III, 58. Virgílio, VI, 119; X, 534; III, 303. Orelli, n.°s 4440,
4441, 4447, 4459, etc. Tito Lívio, III, 19.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(19) Apuléio, De deo Socratis. Sérvio, ad Aeneid., III, 63.
(20) Censorinus, De die natali, 3.
(21) Cícero, Timeu, 11. Dionísio de Halicarnasso traduz lar familiaris por
Kat okían héros (Antiq. rom., IV, 2).
Livro I - Cap. III
(1) Os gregos chamavam a esse altar de nomes diversos: bõmos, eschára,
hestía; esse último acabou por prevalecer no uso, e foi a palavra pela qual
passaram a designar a deusa Vesta. Os latinos chamavam o mesmo altar de
vesta, ara ou focus. Nonius Marcellus, ed. Quicherat, p. 53.
(2) Hinos homér., XXIX. Hinos órfic., LXXXIV. Hesíodo, Opera, 679.
Ésquilo, Agam., 1056. Eurípides, Hercul. fur., 503, 599. Tucídides, I, 136.
Aristófanes, Plut., 795. Catão, De re rust., 143. Cícero, Pro domo, 40. Tibulo,
I, 1, 4. Horácio, Épod., II, 43. Ovídio, A. A., I, 637. Virgílio, En., II, 512.
(3) Virgílio, VII, 71. Festo, v. Felicis. Plutarco. Numa, 9.
(4) Eurípides, Herc. fur., 715. Catão, De re rust., 143. Ovídio, Fast., III, 698.
(5) Macróbio, Saturn., I, 12.
(6) Plutarco, Numa, 9; Festo, ed. Müller, p. 106.
(7) Ovídio, A. A., I, 637. Plauto, Captiv., II, 39-40. Mercator V, 1, 5. Tibulo,
I, 3, 34. Horácio, Odes, II, 23, 1-4, Catão, De re rust., 143. Plauto, Aululária,
prólogo.
(8) Hinos órfic., 84.
(9) Virgílio, En., II, 523. Horácio, Epit., I, 5. Ovídío, Trist., IV, 8, 22.
(10) Eurípides, Alceste, 162-168.
(11) Plauto, Aululárla, prólogo.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(12) Eustato, in Odyss., p. 1756 e 1756 e 1814. O Zeus a quem se refere
muitas vezes é um deus doméstico, o lar.
(13) Iseu, De Cironis hered., 16.
(14) Ésquilo, Agam., 851-853.
(15) Catão, De re rust., 2. Eurípides, Hercul. fur., 523.
(16) Virgílio, En., I. 704.
(17) Virgílio, Geórg., IV, 383-385.
(18) Ovídío, Fast., VI, 315.
(19) Plutarco, Quest. rom. 64; id., Simposíaca, VII, 4, 7; Id., ibid., VII, 4, 4.
Ovídio, Fastos, VI, 300; VI, 630; II, 634. Cf. Plauto, Aululária, II, 7, 16;
Horácio, Odes, III, 23; Sát., II, 3, 166; Juvenal, XII, 87-90; Plutarco, De fort.
Rom., 10. Compare-se com o Hino Homérico XXIX, 8. Plutarco,
Fragmentos, Com. sobre Hesíodo, 44. Sérvio, na Eneida, I, 730.
(20) Horácio, Sat., II, 6, 66. Ovídio, Fastos, II, 631-683. Juvenal, XII, 83-
90. Petrônío, Sátir., c. 60.
(21) Idêntica prescrição na religião romana: Varrão, em Nônio, p. 479, ed.
Quicherat, p. 557.
(22) Porfírio, De abstin., II, p. 106; Plutarco, De frigido, 8.
(23) Hinos hom., 29; Ibid., 3, v. 33. Platão, Cratila, 18. Hesíquio, Diodoro, VI,
2. Aristófanes, Aves, 865.
(24) Pausânias, V, 14.
(25) Cícero, De nat. deor., II, 27. Ovídio, Fast., VI, 304.
(26) Ovídio, Fast., VI, 291.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(27) Hesíodo, Opera, 678-680. Plutarco, Com. sobre Hesíodo., frag. 48.
(28) Tibulo, II, 2. Horácio, Odes, IV, 11, 6. Ovídio, Trlst., III, 13: V. 5. Os
gregos davam a seus deuses domésticos ou heróis o epíteto de ephéstioi ou
estiúchoi.
(29) Plauto, Aulul., II, 7, 16. Columela, XI, 1, 19. Cícero, Pro domo, 41; Pro
Quintio, 27, 28.
(30) Sérvio, In Aen., III, 134.
(31) Virgílio, En., II, 297; IX, 257-258; V, 744.
(32) Eurípides, Oreste, 1420-1422.
(33) Sérvio, In Aen., V. 64; VI, 152. Vide Platão, Mlnos, p. 315.
Livro I - Cap. IV
(1) A lei de Sólon proibia que se acompanhasse chorando o enterro de pessoa
que não fosse parente (Plutarco, Sólon, 21). Igualmente não autorizava às
mulheres acompanhar o morto senão até o grau de primas (Demóstenes, In
Macartatum, 62-63). Cf. Cícero, De legibus, II, 26, Varrão L. L., VI, 13, Gaio.
II, 5, 6.
(2) Lei de Sólon, em Plutarco, Sólon, 21. Cícero, De legib., II, 26.
(3) Pólux, III, 10.
(4) Assim lemos em Iseu, De Meneclis hered., 46: Se Menecles não tem
filhos, os sacrifícios domésticos não serão celebrados em sua honra, e
ninguém levará a oferta anual a seu túmulo. Outras passagens do mesmo
orador mostram que é sempre o filho que deve levar as bebidas ao túmulo: De
Apollod. hered., 30.
(5) Pelo menos no princípio, porque depois também as cidades tiveram seus
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
heróis tópicos e nacionais, como veremos adiante. Veremos também que a
adoção criava um parentesco factício, e dava o direito de honrar uma série de
antepassados.
(6) Luciano, De luctu.
(7) Leis de Manu, III, 138; III, 274.
(8) É o que a língua grega chama de noiéin tá nomizómena (Ésquines, in
Timarch., 40; Dinarca, In Aristog., 18). Cf. Plutarco, Catão, 15. Note-se como
Dinarca repreende Aristógiton por não oferecer o sacrifício anual a seu pai,
morto em Eretréia. Dinarca, In Aristog., 18.
(9) O antigo uso dos túmulos de família é atestado da maneira mais formal:
Demóstenes, In Eubulidem, 28. A lei de Sólon proibia enterrar nos túmulos
de família pessoas estranhas (Cíc., De leg., II, 26). Demóstenes, In
Macartatum, 79, descreve o túmulo onde repousam todos os que descendem
de Buselos; chama-se o monumento dos busélidas; é um grande recinto
fechado, de acordo com antiga regra. O túmulo dos laquíadas é
mencionado por Marcelino, biógrafo de Tucídides, e por Plutarco, Címon, 4.
Há uma antiga anedota que prova quanto se considerava necessário que
cada morto fosse enterrado no túmulo de família; conta-se que os
lacedemônios, prestes a combaterem contra os messênios, ataram no braço
direito marcas particulares, contendo o nome de cada um, e o do pai, a fim de
que, em caso de morte, o corpo pudesse ser reconhecido e transportado para o
túmulo paterno; essa característica dos costumes antigos nos foi conservada
por Justino, III, 5. Ésquilo alude ao mesmo costume quando diz, falando de
guerreiros que vão morrer, que eles serão transportados para o túmulo dos
pais (Sete contra Tebas, v. 914). Os romanos também tinham túmulos de
família. Cícero, De offic., I, 17. Como na Grécia, era proibido enterrar
estranhos no túmulo de família; Cícero, De legib., II, 22. Vide Ovídio, Tristes,
IV, 3, 45; Veléio, II, 119; Suetônio, Nero, 50; Tibério, 1; Cícero, Tuscul., I, 7;
Digesto, XI, 7; XLVII, 12, 5.
(10) Eurípides, Helena, 1163-1168.
(11) Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio. Seriam essas
imagens simples retratos de família, ou ídolos?
(12) Do mesmo modo, nos Vedas, Agni é ainda invocado como deus
doméstico.
(13) Iseu, De Cironis haereditate, 15-18.
(14) Esse recinto chamava-se hérkos.
(15) Cícero, De nat. Deor., II, 27. Sérvio, in Aen., III, 12.
(16) Cícero, De arusp. resp., 17.
(17) Varrão, De ling. lat., VII, 88.
(18) Hesíodo, Opera, 701. Macróbio, Sat., I, 16. Cíc., De legib., II, 11.
(19) Rig-Veda, tr. Langlois, t. I, p. 113. As leis de Manu mencionam
freqüentemente os ritos particulares de cada família: VIII, 3; IX, 7.
(20) Sófocles, Antíg., 199; Ibid., 659. Confrontar com Aristófanes, Vespas,
388; Ésquilo, Pers., 404; Sófocles, Electra, 411; Platão, Leis, V, p. 729; Di
generis, Ovídio, Fast, II, 631.
(21) Os Vedas chamam de fogo sagrado a causa da posteridade masculina.
Vide o Mitakchara, trad. Orianne, p. 139.
Livro II - Cap. I
(1) É evidente que aqui falamos do direito mais antigo. Veremos mais adiante
que essas velhas leis foram modificadas.
(2) Heródoto, V. 73; I, 176. Plutarco, Rômulo, 9.
Livro II - Cap. II
(1) Dicearca, citado por Estêvão de Bizâncio.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(2) Tyein ghámon, sacrum nuptiale.
(3) Pólux, III, 3, 38.
(4) Pólux. III. 38,
(5) Heródoto, VI, 130. Iseu, De Philoctem, hered., 14. Demóstenes dá
algumas palavras da fórmula, In Stephanum, II, 18. Essa parte do casamento
chamava-se écdosis, traditio, Pólux, III, 35. Demóstenes, Pro Phormione, 32.
(6) Pólux, III, 41.
(7) Plutarco, Quest. grecq., 27.
(8) Plutarco, Quest. rom. 29. Photius, Lex., p. 52.
(9) Ilíada, XVIII, 492. Hesíodo, Scutum, 275. Eurípides, Ifig. in Aulis, 732;
Fenícias, 344, Helena, 722-725. Pólux, III, 41. Luciano, Aétion, 5.
(10) Ilíada, XVIII, 495. Hesíodo, Scutum, 280. Aristófanes, Aves, 1720; Pag.
1332. Pólux, III, 37; IV, 80. Photius Blblioth., c. 230.
(11) Plutarco, Licurgo, 15. Dionísio de Halicarnasso, II, 30.
(12) Ignem undamque jugalem (Valer. Flaccus, Argonaut., VIII, 245).
(13) Plutarco, Sólon, 20; Praec. conjug., I. Idêntico costume entre os
macedônios: Quinto Cúrcio, VIII, 16.
(14) Platão, Leis, VIII, p. 841. Plutarco, Teseu, 10; Amatorius, 4.
(15) Sobre as formas singulares da traditio e da sponsio em direito romano,
vide o texto curioso de Sérvio Sulpício, em Aulo Gélio, IV, 4 C. Plauto,
Aululária, II, 2, 41-49; II, 3, 4; Trinummus, V, 4. Cícero, ad Atticum, I, 3.
(16) Ovídio, Fastos, II, 558-561.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(17). Plutarco, Romulus, 15.
(18) Varrão, De líng. Lat., V, 61. Plutarco, Quest. rom., 1. Sérvio, ad Aeneida,
IV, 167.
(19) Plutarco. Quest. rom., 29; Romulus, 15. Macróbio, Saturn., I, 15. Festo,
v. rapi.
(20) Plínio, Hist. Nat., XVIII, 3, 10. Dionísio de Halicarnasso, II, 25. Tácito,
Ann., IV, 16; XI, 26-27. Juvenal, X, 329-336. Sérvio, ad. Aen., IV, 103; ad
Georg., I, 31. Gaio, I, 110-112. Ulpiano, IX, Digesto, XXIII, 2, 1. Também
entre os etruscos o casamento era celebrado com um sacrifício (Varrão, De re
rust., II, 4). Idênticos costumes entre os antigos hindus (Leis de Manu, III,
27-30, 172; VIII. 227; IX, 194. Mitakchara, trad. Orianne, p. 166, 167, 236).
(21) Falaremos mais adiante de outras formas de casamento que foram usadas
entre os romanos, e nas quais não intervém a religião. Por agora basta dizer
que o casamento sagrado nos parece o mais antigo, porque corresponde às
mais antigas crenças, e não desapareceu senão depois que estas se
enfraqueceram.
(22) Digesto, XXIII, 2. Código de Just., IX, 32, 4. Dionísio de Halic., n, 25.
(23) Pelo menos a princípio. Dionísio de Halicarnasso, II, 25, diz
expressamente que nada podia dissolver tal casamento. A faculdade do
divórcio parece ter-se introduzido muito cedo no direito ático.
(24) Festo, v. Diffarreatio. Pólux, III, c. 3. Lê-se em uma inscrição: Sacerdos
confarreationum et diffarreationum. Orelli, n.° 2648.
(25) Plutarco, Quest. rom., 50.
Livro II - Cap. III
(1) Bhagavad-Gita, I, 40.
(2) Iseu, De Apollod. hered., 30; Demóstenes, In Macart., 75.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(3) Cícero, De legib., II. 19. Dionísio, IX, 22.
(4) Iseu, VII, De Apollod. her., 30. Cf. Estobeu, Serm. LXVII, 25
(5) Dionísio de Halicarnasso, IX, 22.
(6) Cícero, De legibus, III, 2.
(7) Plutarco, Lycurg., 15; Apoteg. dos Lacedemônios; Cf. Vida de Lisandro,
30.
(8) Pólux, III, 48.
(9) Iseu, VI, De Philoct. her., 47. Demóstenes, In Macartatum, 51
(10) Menandro, Fragm. 185. Demóstenes, In Neaeram, 122. Luciano, Timon,
17. Ésquilo, Agamemnon, 1207. Alcifron, I, 16.
(11) Leis de Manu, IX, 81.
(12) Heródoto, V, 39; VI, 61.
(13) Aulo Gélio, IV, 3. Valério Máximo, II, 1, 4. Dionísio, II, 25.
(14) Plutarco, Sólon, 20. É assim que devemos compreender o que
Xenofonte e Plutarco dizem de Esparta; Xen., Resp. Laced. I; Plutarco,
Licurgo, 15. Cf. Leis de Manu, IX, 121.
(15) Leis de Manu, IX, 69, 146. O mesmo acontecia entre os hebreus,
Deuteronômio, 25.
(16) Ésquilo, Coéf., 264 (262). Também em Eurípídes (Fenic., 16). Laio
pede a Apolo que lhe dê filhos varões.
(17) Aristófanes, Aves, 922. Demóstenes, in Baeot. de dote, 28. Macróbio,
Sat., I, 17. Leis de Manu, II, 30.
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(18) Platão, Teeteta. LIsías, em Harpocrácio, v. Amphidrômia.
(19) Macróbio, Sat., I, 17.
Livro II - Cap. IV
(1) Leis de Manu, IX, 10.
(2) Iseu, De Menecl. hered., 10-46. O mesmo orador, no discurso em defesa
da herança de Astifilos, c. 7, mostra um homem que antes de morrer adotou
um filho a fim de que este o honrasse depois da morte, e continuasse sua
descendência.
(3) Leis de Manu, IX, 168, 174. Dattaca-Sandrica, tr. Orianne. p. 260.
(4)Vide também Iseu. De Meneclis hered., 11-14.
(5) Cícero, Pro domo, 13, 14. Comparar o que diz Aulo Gélio com relação à
ad-rogação. que era a adoção de um homo sui juris (Aulo Gélio, V, 19).
(6) Iseu, De Apollod. her., 1. Cícero, Pro domo, 13. Tácito, Hist., I, 15.
(7) Valério Máximo, VII, 7. Cícero, Pro domo, 13.
(8) Cícero. Pro domo.
(9) Tito Lívio, XLV, 40.
(10) Iseu, De Philoct. her., 45: De Aristarchi her., 11. Demóstenes, in
Leocharem, 68. Antiphon, Fragm. 15. Harpocrácio, ed. Bekker. p. 140.
Comparar com Leis de Manu, IX, 142.
(11) Sérvio, ad Aen., II, 156.
(12) Aulo Gélio, XV, 27. Comparar com o que os gregos chamavam de
apokéryxis. Platão, Leis, XI, p. 928. Cf. Luciano, XXIX, o filho deserdado.
Pólux, IV, 93. Hesíquio, v. Apokeryetós.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Livro II - Cap. V
(1) Platão, Leis, V, p. 729.
(2) Plutarco, De frat. amore, 7.
(3) Digesto, liv. 50, tít. 14, § 196.
(4) Leis de Manu, V. 60; Mitakchara, tr. Orianne, p. 213.
(5) Gaio, I, 156. Id., III, 10. Ulpiano, XXVI. Institutas de Justiniano, III, 2.
Livro II - Cap. VI
(1) Alguns historiadores são da opinião de que em Roma a propriedade a
princípio fora pública, e só se tornara particular sob o governo de Numa. Esse
erro vem de uma falsa interpretação de três textos, de Plutarco (Numa, 16), de
Cícero (República, II, 14) e de Dionísio (II, 74). Esses três autores, com
efeito, dizem que Numa distribuiu certas terras aos cidadãos; mas indicam
com muita clareza que essa divisão só dizia respeito às terras que as últimas
conquistas de seu predecessor acrescentaram ao primitivo território romano.
Quanto ao ager Romanus, isto é, ao território que rodeava Roma a uma
distância de cinco milhas (Estrabão, V, 3, 2), já era propriedade particular
desde a origem da cidade. Vide Dionísio, II, 7; Varrão, De re rustica, I, 10;
Nônio Marcelo, ed. Quicherat, p. 61.
(2) Assim, em Creta cada um dava para os banquetes comuns a décima parte
das colheitas (Ateneu, IV, 22). Do mesmo modo em Esparta, cada um devia
fornecer de seu patrimônio uma quantidade determinada de farinha, vinho e
de frutos para as despesas da mesa comum (Aristóteles, Polít., II, 7, ed. Didot,
p. 515; Plutarco, Licurgo, 12; Dicearca, em Ateneu, IV, 10).
(3) Vide Plutarco, De primo frigido, 21; Macróbio, I, 23; Ovídio, Fast., VI,
299.
(4) Sófocles, Trachin., 606.
(5) Na época em que esse antigo culto foi quase suplantado pela religião mais
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
brilhante de Zeus, em que se associou Zeus à divindade do lar, o novo deus
tomou para si o epíteto de erkéios. Não é menos verdade que originariamente
o verdadeiro protetor do recinto era o deus doméstico. Dionísio de
Halicarnasso o atesta (I, 67), quando diz que os deuses erkéioi são os mesmos
que os penates. Isso, aliás, se torna mais claro se compararmos uma passagem
de Pausânias (IV, 17) com uma passagem de Eurípides (Tróia, 17) e uma de
Virgílio (En., II, 514); essas três passagens dizem respeito ao mesmo fato, e
mostram que o Zeus erkéios não é outro que o lar doméstico.
(6) Festo, v. Ambitus. Varrão, L. L, V, 22. Sérvio, ad Aen., II, 469.
(7) Diodoro, V, 68. Essa mesma crença é referida por Eustato, que afirma que
a casa se originou do lar (Eust., ad Odyss., XIV, v. 158; XVII, V. 156).
(8) Cícero, Pro domo, 41.
(9) Ovídio, Fastos, V, 141.
(10) Tal era, pelo menos, a regra antiga, pois acreditava-se que o banquete
fúnebre servia de alimento aos mortos. Vide Eurípides, Troianas, 381 (389).
(11) Cícero, De legib., II, 22; II, 26. Gaio, Instit., II, 6. Digesto, liv. XLVII,
tít. 12. Devemos notar que o escravo e o cliente, como veremos mais adiante,
faziam parte da família, e eram enterrados no túmulo comum. A guerra que
prescrevia que cada homem fosse enterrado no túmulo de família só admitia
exceção no caso em que a própria cidade celebrasse funerais públicos.
(12) Licurgo, Contra Leocrato, 25. Em Roma, para que uma sepultura fosse
mudada de lugar, era necessário autorização dos pontífices. Plínio, Cartas, X,
73.
(13) Cícero, De legib., II, 24. Digesto, liv. XVIII, tít. I, 6.
(14) Lei de Sólon, citada por Gaio, no Digesto, X, 1, 13. Plutarco, Aristides,
1; Címon, 19. Marcelino, Vida de Tucídides, § 17.
(15) Demóstenes, in Calliclem, 13, 14, descreve também o túmulo aos
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
busélidas, colina bastante extensa e fechada, segundo antigo costume, onde
repousam em comum todos os descendentes de Buselos (Dem., in Macart.,
79).
(16) Siculo Flaco, edit. Goez, p. 4, 5. Vide Fragm. terminalia, edit. Goez, p.
147. Pompônio, no Digesto, liv. XLVII, tít. 12, 5. Paulo, no Digesto VIII, 1,
14. Digesto, XIX, 1, 53; XI, 7, 2, § 9; XI, 7, 43 e 46.
(17) Idêntica tradição entre os etruscos. Fragm. intitulado: Idem Vegoiae
Arrunti, ed. Lachmann, p. 350.
(18) Tíbulo, I, 1, 23. Cícero, De legib., II, 11.
(19) Cícero, De legibus, I, 21.
(20) Catão, De re rust., 141. Script. rei agrar., edit. Goez, p. 308. Dionísio de
Halicarnasso, II, 74. Ovídio, Fast., II, 639. Estrabão, V, 3.
(21) Siculo Flaco, De oonditione agrorum, edit. Lachmann, p. 141; edit.,
Goez, p. 5.
(22) Leis de Manu, VII, 245. Vrihaspati, citado por Sicé, Législat. hindoue, p.
159.
(23) Varrão, L. L., V. 74.
(24) Pólux, IX, 9. Hesíquio, hóros. Platão, Leis, VIII, p. 842. Plutarco e
Dionísio traduzem terminus por hóros. Aliás, a palavra térmon existia também
na língua grega (Eurípides, Electra, 96).
(25) Ovídio, Fastos, II, 677.
(26) Festo, v. Terminus, ed. Müller, p. 363.
(27) Script. rei agrar., edit. Goez, p. 258; ed. Lachamann, p. 351.
(28) Platão, Leis, VIII, p. 842.
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(29) Aristóteles, Política, II, 6, 10 (ed. Didot, p. 512). Heráclida do Ponto,
Fragm. hist. graec., ed. Didot, t. II. p. 211. Plutarco, Instituta laconica, 22.
(30) Aristóteles, Política, II, 4, 4.
(31) Aristóteles, Política, II, 3, 7. Essa lei do velho legislador não visava a
igualdade de fortunas, porque Aristóteles acrescenta: embora as propriedades
fossem desiguais. Visava unicamente a manutenção da propriedade na
família. Também em Tebas o número de propriedades era imutável.
Aristóteles, Pol. II, 9, 7.
(32) O homem que havia alienado seu patrimônio era condenado à atimía.
Ésquines, In Timarchum, 30; Diógenes Laércio, Sólon, I, 55. Essa lei, que
certamente não era mais observada nos tempos de Ésquines, subsistia apenas
na forma, como vestígio da antiga regra (Bekker, Anecdota, p. 199 e 310).
(33) Aristóteles, Polít., VI, 2, 5.
(34) Mltakchara, trad. Orianne, p. 50. Easa regra desapareceu pouco a pouco,
quando o bramanismo passou a dominar.
(35) Fragmento de Teofrasto, citado por Estobeu, Serm. 42.
(36) Essa regra desapareceu na idade democrática das cidades.
(37) Uma lei dos helenos proibia hipotecar a terra: Aristóteles, Polit., VII, 2.
A hipoteca era desconhecida no antigo direito ateniense antes de Sólon apóiase
em uma palavra mal compreendida de Plutarco. O vocábulo hóros, que
significa mais tarde um limite hipotecário, significava nos tempos de Sólon o
limite sagrado que assinalava o direito de propriedade. Vide mais adiante, liv.
IV, c. 6. A hipoteca não apareceu senão mais tarde no direito ático, e somente
sob a forma de venda e sob condição de resgate.
(38) No artigo da lei das Doze Tábuas, que trata do devedor insolvente, lemos
Si volet suo vivito: pois o devedor, quase escravizado, conserva ainda algo de
próprio; sua propriedade, quando a tem, não lhe é confiscada. Os contratos
conhecidos em direito romano sob os nomes de mancipação com fidúcia, e de
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
pignus eram, antes da ação serviana, meios indiretos de assegurar ao credor o
pagamento da dívida; eles provam indiretamente que a expropriação por
dívidas não existia. Mais tarde, quando se suprimiu a servidão corporal, foi
necessário encontrar um meio para se ter direitos sobre os bens do devedor.
Isso não era fácil; mas a distinção que se fazia entre a propriedade e a posse
ofereceu um recurso. O credor obteve do pretor o direito de vender, não a
propriedade, dominium, mas os bens do devedor, bona. Somente então, por
uma expropriação disfarçada, o devedor perdia o gozo de sua propriedade.
Livro II - Cap. VII
(1) Cícero, De legibus, II, 19-20. Tal era a importância dos sacra, que o
jurisconsulto Gaio escreveu a respeito uma curiosa Passagem (Gaio. II, 55).
Festo, v. Everriator (Ed. Müller, p. 77)
(2) Iseu, VI, 81. Platão chama o herdeiro de diádochos theõn (Leis, V. pg.
740)
(3) Leis de Manu, IX, 186.
(4) Digesto, liv. XXXVIII, tít. 16, 14.
(5) Institutas, III, 1, 3; III, 9, 7; III, 19, 2,
2°
(1) Em Iseu, In Xenoenctum, 4, vemos um pai que deixa um filho, duas filhas,
e outro filho emancipado; o primeiro filho herda sozinho. Em Lidas, Pro
Mantitheo, 10, vemos dois irmãos que dividem entre si o patrimônio, e que se
contentam em dotar as irmãs. O dote, aliás, nos costumes de Atenas, não era
senão uma parte muito reduzida da fortuna paterna. Demóstenes, In Baeotum,
de dote, 22-24, mostra também que as filhas não herdam. Enfim, Aristófanes,
Aves, 1653-1654, indica claramente que uma filha não herda, se tem irmãos.
(2) Gaio, III, 1-2; Institutas de Justiniano, II, 19, 2.
(3) É o que M. Gide nos mostra muito bem em seu Étude sur la condition de
la femme, p. 114.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(4) Gaio, I, 192.
(5) Institutas, III, 1, 15; III, 2, 3.
(6) Cícero, De rep., III, 7.
(7) Cícero, In Verr., II, 1, 42; Id., 43. Cf. Tito Lívio, Epitom., XLI; Gaio, II,
226 e 274; Santo Agostinho, De civit. Dei, III, 21.
(8) Demóstenes, In Eubulidem, 20. Plutarco, Temístocles, 32. Cornélio
Nepos, Címon., I. Devemos notar que a lei não permitia casamento com irmão
uterino, nem com irmão emancipado. Só era permitido o casamento com
irmão consangüíneo. porque somente este era herdeiro do pai.
(9) Iseu, De Pyrrhi hereditate, 68.
(10) Essa disposição do antigo direito ático não estava mais em pleno vigor no
século quarto. Encontramos, contudo, vestígios visíveis dessa disposição no
discurso de Iseu, De Cironis hereditate. O objeto do processo é este: morrendo
Círon, que deixou apenas uma filha, o irmão de Círon reclamava para si a
herança. Iseu dafendeu a filha. Não possuímos o discurso do adversário, que
sustentava, evidentemente, em nome dos velhos princípios, que a filha não
tinha nenhum direito; mas o autor da hypotésis, colocada como introdução ao
discurso de Iseu, adverte-nos de que esse habilíssimo advogado defendia
então uma causa Ingrata; sua tese, afirma ele, está conforme à eqüidade
natural, mas é contrária à lei.
(11) Iseu, De Pyrrhi hered., 64, 72-75; Iseu, De Aristarchi hered., 5;
Demóstenes, In Leocharem, 10. A filha única chamava-se epícleros, palavra
mal traduzida por herdeira; o significado primitivo e essencial dessa palavra é
aquela que está ao lado da herança, que é recebida com a herança. Em direito
rigoroso a filha não é herdeira; de fato, o herdeiro toma a herança syn auté,
como diz a lei citada no discurso de Demóstenes, In Macartatum, 51. Cf. Iseu,
III, 42: De Aristarchi hered., 13. A condição de epícleros não era particular
ao direito ateniense; encontramo-la em Esparta (Heródoto, VI, 57; Aristóteles,
Política, II, 6, 11), e em Thurii (Diodoro, XII, 18).
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(12) Iseu, De Pyrrhi hered., 64; De Aristarchi hered., 19.
(13) Demóstenes, In Eubulidem, 41; In Onetorem, I, argumento.
(14) Todas essas obrigações pouco a pouco se abrandaram. De fato, nos
tempos de Iseu e de Demóstenes, o parente mais próximo podia deixar de se
casar com a epiclera, contanto que renunciasse à sucessão, e dotasse sua
parenta (Demóst., In Macart., 54; Iseu, De Cleonymi hered., 39).
(15) Leis de Manu, IX, 127, 136. Vasishta, XVII, 16.
(16) Iseu, De Cironis hereditate, 1, 15, 16, 21, 24, 25, 27.
(17) Não o chamavam de neto; davam-lhe o nome partícular de thygatridoús.
(18) Iseu, De Cironis her., 31; De Arist. her., 12. Demóstenes, In Stephanum,
II, 20.
3°
(1) Leis de Manu, IX, 186-187.
(2) Demóstenes, In Macart., 51; In Leocharem. Iseu, VII, 20.
(3) Institutas, III, 2, 4.
(4) Ibid., III, 3.
3°
(1) Iseu, De Aristarchi hered., 45 e 11; De Astyph. hered., 33.
(2) Harpocrácio, v. Hóti oi poietói, Demóstenes, In Leocharem, 66-68
5°
(1) Plutarco, Sólon, 21.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(2) Iseu, De Pyrrhi. hered., 68. Demóstenes, In Stephanum, II, 14.
(3) Plutarco, Agis. 5.
(4) Aristóteles, Polít., II, 3, 4.
(5) Platão, Leis, XI.
(6) Se não tivéssemos da lei de Sólon senão as palavras diáthesthai hópos àn
ethéle, suporíamos que o testamento era permitido em todos os casos
possíveis; mas a lei acrescenta: àn me pãides õsi.
(7) Ulpiano, XX, 2. Gaio, I, 102, 119. Aulo Gélio, XV, 27. testamento calatis
comitiis foi sem nenhuma dúvida o que se usou primeiro; nos tempos de
Cícero já não era mais conhecido (De orat., I. 53).
6°
(1) Leis de Manu, IX, 105-107, 126. Essa antiga regra foi modificada à
medida que se enfraquecia a religião primitiva. No código de Manu já se
encontram artigos que autorizam e até recomendam a divisão da herança.
(2) Aristóteles, Polit., II, 9, 7; II, 3, 7; II, 4, 4.
(3) Presbéia, Demóstenes, Pro Phorm., 34. Na época de Demóstenes a
presbéia não era mais que uma palavra sem sentido, e havia muito tempo que
a sucessão se dividia em porções iguais entre os irmãos.
(4) Demóstenes, In Boeotum, de nomine.
(5) A antiga língua latina conservou vestígio dessa indivisão que, por mais
apagado que seja, merece contudo ser assinalado. Chamava-se sors a um lote
de terra, domínio de uma família; sors patrimonium significat, diz Festo; a
palavra consortes era, portanto, usada para designar os que possuíam um lote
de terra em comum, e viviam no mesmo domínio; ora, a língua antiga
designava com essa palavra os irmãos, ou mesmo parentes de grau muito
afastado, testemunho de um tempo em que o patrimônio e a família eram
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
indivisíveis (Festo, v. Sors, Cícero, In Verrem, II, 3, 23. Tito Lívio, XLI, 27.
Veléío, I, 10. Lucrécio, III, 772; VI, 1280).
Livro II - Cap. VIII
(1) Plauto, Mercator, V, 1, 5. O sentido primitivo da palavra lar é o de senhor,
príncipe, mestre. Cf. Lar Porsenna, Lar Tolumnius.
(2) Festo, ed. Müller, p. 125.
(3) Leis de Manu, V, 147, 148.
(4) Demóstenes, In Onetorem, I, 7; In Boeotum, de dote, 7; In Eubulidem, 40.
Iseu, De Meneclis hered., 2, 3. Demóstenes, In Stephanum, II, 18.
(5) Em caso de divórcio, a mulher voltava para a casa paterna. Demóstenes, In
Eubul., 41.
(6) Demóstenes, In Stephanum, II, 20; In Phaenippum, 27; In Macartatum, 75.
Iseu, De Pyrrhi hered., 50. Cf. Odisséia, XXI, 350, 353.
(7) Gaio, I, 145-147, 190; IV, 118; Ulpiano, XI, 1 e 27.
(8) Demóstenes, In Aphobum, I, 5; Pro Phormione, 8.
(9) Cícero, Topic., 14. Tácito, Ann., IV, 16. Aulo Gélio, XVIII, 6. Veremos
mais adiante que em certa época, e por razões que mais tarde explicaremos,
imaginaram-se novas formas de casamento, que produziam os mesmos efeitos
jurídicos do casamento religioso.
(10) Quando Gaio disse do poder paternal: Jus proprium est civium
Romanorum, devemos entender que nos tempos de Galo o direito romano não
reconhecia esse poder senão para o cidadão romano; isso não quer dizer que
não tenha existido anteriormente em outros lugares, ou que não tenha sido
reconhecido pelo direito das outras cidades. Isso será esclarecido pelo que
diremos acerca da situação legal dos súditos sob o domínio de Roma. No
direito ateniense anterior a Sólon o pai podia vender os filhos (Plutarco,
Sólon, 13 e 23).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(11) Aulo Gélio, V, 12: Lactâncio, Instit., IV, 3. Varrão, De ling. lat., V, 66.
Cícero, De nat. Deor., II, 26. A mesma palavra é aplicada ao deus Tibre nas
orações: Tiberine Pater, te, Sancte, precor (Tito Lívio, II, 10). Virgílio chama
a Vulcano de Pater Lemnius, o deus de Lemnos.
(12) Ulpiano, no Digesto, I, 6, 4.
2°
(1) Heródoto, I, 59. Plutarco, Alcibíades, 23; Agesilau, 3.
(2) Demóstenes, In Eubul., 40, 43. Gaio, I, 155. Ulpiano, VIII, 8 Institutas, I,
9. DIgesto, liv. I, tít. 1, 11.
(3) Gaio, II, 98. Todas essas regras do direito primitivo foram modificadas
pelo direito pretoriano. Do mesmo modo, em Atenas, nos tempos de Iseu e
de Demóstenes, o dote era restituído em caso de dissolução do casamento.
Neste capítulo, nosso intuito é falar apenas do direito mais antigo.
(4) Cícero, De legib.. I, 20. Gaio, II, 87. Digesto, liv. XVIII, tít. 1, 2.
(5) Plutarco, Sólon, 13. Dionísio de Halic., II, 26. Gaio, I, 117, 132, VI, 79.
Ulpiano, X, 1. Tito Lívio, XLI, 8. Festo, v. Deminutus.
(6) Gaio, I, 140.
(7) Ulpiano, Fragm. X, 1.
(8) Quando o filho cometia um crime, o pai podia livrar-se de sua
responsabilidade entregando-o, a título de indenização, à pessoa lesada. Gaio,
I, 140. O pai nesse caso perdia seu poder sobre o filho. Vide Cícero, Pro
Caecina, 34; De Oratore, I, 40.
(9) Plutarco, Publicola, 8.
(10) Gaio, II, 96; IV, 77, 78
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(11) Tempo houve em que essa jurisdição foi modificada pelos costumes; o
pai consultava a família inteira, e a erigia em tribunal por ele presidido.
Tácito, Ann. XIII, 32; Digesto, lív, XXIII, tít. 4, 5. Platão, Leis, IX.
(12) Títo Lívio, XXXIX, 18.
(13) Catão, em Aulo Gélio, X, 23; Valério Máximo, IV, 1, 3-6. Do mesmo
modo a lei ateniense permitia ao marido matar a mulher adúltera (Eschol. ad
Horat., Sat., II, 7, 62), e ao pai vender como escrava a filha desonrada
(Plutarco, Sólon, 23).
Livro II - Cap. IX
(1) Pseudo Plutarco. ed. Dubner, V, 167. Eustato, in Odyss., VII, 247.
(2) Plutarco, Quest. rom., 51. Macróbio, Sat. III, 4.
(3) Eurípides, Hercul. fur., 705.
(4) Heródoto, I, 35. Virgílio, En., II, 719. Plutarco, Teseu, 12.
(5) Heródoto, Ibidem; Ésquilo, Coéf., 96; a cerimônia é descrita por Apolônio
de Rodes, IV, 704-707,
(6) Iseu, De Philloct. heredit., 47; Demóstenes, In Macartatum, 51. A religião
dos tempos posteriores proibia ainda ao nóthos oficiar como sacerdote. Vide
Ross, Inscr. gr., III, 52.
(7) Leis de Manu, III, 175,
(8) Demóstenes, In Neaer., 86. É verdade que, se essa moral primitiva
condenava o adultério, não reprovava o incesto; a religião autorizava-o. As
proibições relativas ao casamento eram contrárias às nossas; era louvável
casar-se com a irmã (Cornelíus Nepos, proemíum; id., Vida de Cimon, c. 1;
Minúcio Félix, Otávio, 30). mas era proibido, em princípio, casar-se com
mulher de outra cidade.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(9) Catão, De re rustica, 143. Macróbio, I, 15. Comparar com o que diz
Dionísio de Halicarnasso, II, 22.
(10) Xenofonte, Gov. de Laced., IX, 5.
(11) Plutarco, Quest. rom., 50. Cf. Dionísio de Halicarnasso, II, 22.
(12) Por isso muitos se enganam quando falam da triste sujeição da mulher
romana in manu mariti. A palavra manus implica a idéia, não de força brutal,
mas de autoridade, e se aplica tanto à autoridade do pai sobre a filha, como à
do irmão sobre a irmã, como à do marido sobre a mulher. Tito Lívio, XXXIV,
2. A mulher casada de acordo com os ritos era senhora da casa: Macróbio, I,
15, In fine. Dionísio de Halicarnasso, II, 25, define claramente a situação da
mulher: Obedecendo em tudo ao marido, ela era a senhora da casa, como
ele.
(13) Dionísio de Halicarnasso, II. 20. 22.
(14) Cícero, De legib., II, 1; Pro domo, 41.
(15) Daí a santidade do domicilio, que os antigos sempre consideraram
inviolável; Demóstenes, In Androt., 52; In Evergum, 60. Digesto, De in jus
voc., II. 4,
(16) Haverá necessidade de advertir que neste capítulo tentamos apenas a
antiga moral dos povos, que depois se tornaram os gregos e os romanos?
Haverá necessidade de acrescentar que essa moral com o tempo se modificou,
sobretudo entre os gregos? Já na Odisséia encontraremos novos e diferentes
costumes; a continuação deste livro o mostrará.
Livro II - Cap. X
(1) Demóstenes, In Neaer., 71. Vide Plutarco, Temist., 1, Ésquines, De falsa
legat., 147. Boeckh, Corp. inscr., n.° 385. Ross, Demi Attici. 24. A gens entre
os gregos muitas vezes é chamada de pátra: Píndaro passim.
(2) Harpocrácio, v. Ghennétai, Hesíquio, idem.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(3) Plutarco, Temíst., I, Ésquines, De falsa legat., 147.
(4) Cícero, De arusp. resp., 15. Dionísio de Halicarnasso, XI, 14. Festo, v.
Propudi, ed. Müller, p. 238.
(5) Tito Lívio, V, 46; XXII, 18. Valério Máximo, I, 1, 11. Políbio, III, 94.
Plínio, XXXIV, 13. Macróbio, III, 5.
(6) Cícero, Pro domo, 13.
(7) Demóstenes, In Macart., 79; In Eubul., 28.
(8) Suetônio, Tibérío, I. Veléio, II, 119.
(9) Gaio, III, 17. Digesto, III, 3, 1.
(10) Tito Lívio, V, 32. Dionísio de Halicarnasso, Fragm., XIII, 5. Apiano,
Annib., 28.
(11) Tito Lívio III, 58. Dionísio, XI, 14.
(12) Dionísio de Halicarnasso, II, 7.
(13) Idem, IX, 5.
(14) Boeckh, Corp. Inscr., n.°s 397, 399. Ross, Demi Attici, 24.
(15) Tito Lívio, VI, 20. Suetônio, Tibérío, 1. Ross Demi Attici, 24.
(16) Cícero tentou uma definição da gens: Gentiles sunt qui inter se eodem
nomine sunt, qui ab ingenuis oriundi sunt, quorum majorum nemo servitutem
servivit (Cic., Tópicos, 6). Essa definição é incompleta; indica apenas alguns
sinais exteriores, e não os caracteres essenciais. Cícero, que pertencia à ordem
dos plebeus, parece ter tido idéias muito vagas a respeito da gens dos tempos
antigos; ele afirma que o rei Sérvio Túlio era seu gentilis (meo regnante
gentili, Tusculanas, I, 16), e que certo Verrucino era quase o gentilis de
Verres (In Verrem, II, 77).
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2°
(1) Demóstenes, In Macart, 79. Pausânias, I, 37. Inscrição dos Aminandridas,
citada por Ross, p. 24.
(2) Festo, verbis Coeculus, Calpurnii, Cloelia.
(3) Tito Lívio, II, 46: Genus Fabium.
(4) Filócoro, nos Fragm. hist. graec., t., I, p. 399. Pólux, VIII, 11.
3.°
(1) Não voltamos atrás sobre o que dissemos acima (Liv. II, cap. V) a respeito
da agnação. Já vimos que agnação e gentilidade procediam dos mesmos
princípios, e eram parentesco da mesma natureza. A passagem da lei das Doze
Tábuas que designa a herança aos gentiles na falta de agnati causou
embaraços aos jurisconsultos, e fez pensar que poderia haver uma diferença
essencial entre essas duas espécies de parentesco. Mas essa diferença
essencial não aparece em nenhum texto. Era-se agnatus como se era gentilis,
pela descendência masculina, e por vínculos religiosos. Havia entre os dois
parentescos apenas diferença de grau, que se acentuou sobretudo a partir da
época em que os ramos de uma mesma gens se separaram. O agnatus era
membro do ramo, o gentills o era da gens. Estabeleceu-se então a mesma
distinção entre os termos gentilis e agnatus que entre as palavras gens e
familia. Familiam dicimus omnium agnatorum, diz Ulpiano, no Digesto, Liv.
L, tít. 16, § 195. Quando se era agnado em relação a um homem, era-se com
muito mais razão seu gentilis; mas podia-se ser gentilis sem se ser agnado. A
lei das Doze Tábuas dava a herança, na falta de agnados, aos que eram apenas
gentiles com relação ao defunto, isto é, que pertenciam à sua gens, sem fazer
parte de sua família ou de seu ramo. Veremos mais adiante que entrou na
gens um elemento de ordem inferior, a clientela: daí se formou um vínculo de
direito entre a gens e o cliente; ora, esse vínculo de direito chamou-se também
gentilitas. Por exemplo, em Cícero, De oratore, I, 39, a expressão jus
gentilitatis designa a relação entre a gens e os clientes. É assim que a mesma
palavra designava duas coisas que não devemos confundir.
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(2) É verdade que mais tarde a democracia substituiu o nome do demo pelo do
ghénos, o que era uma maneira de imitar e de se apropriar da antiga regra.
4°
(1) Demóstenes, In Stephanum, I, 74. Aristófanes, Plutus, 768. Esses dois
escritores indicam claramente uma cerimônia, mas não a descrevem. Os
escoliastes de Aristófanes acrescentam alguns detalhes. Vide, em Ésquilo,
como Clitemnestra recebe uma nova escrava: Entra nesta casa, pois Júpiter
deseja que participes das abluções da água lustral, com meus outros escravos,
junto a meu lar doméstico (Ésquilo, Agamemnon, 1035-1038).
(2) Aristóteles, Econômicas, I, 5: É pelos escravos, mais do que pelas
pessoas livres, que se devem celebrar os sacrifícios e as festas. Cícero, De
legibus, II, 8: Ferias in famulis habento. Nos dias de festa era proibido
fazer o escravo trabalhar (Cíc., De legib., II, 12).
(3) Cícero, De legib., II, 11. O escravo podia até celebrar o ato religioso
em nome do senhor; Catão, De re rustica, 83.
(4) Quanto às obrigações dos libertos em direito romano, vide Digesto,
XXXVII, 144, De jure patronatus; XII, 15, De obsequiis parentibus et
patronis praestandis; XIII, 1, De operis libertorum O direito grego, no que
diz respeito à alforria e à clientela, transformou-se muito mais depressa que o
direito romano. Por isso restam-nos muito poucos esclarecimentos sobre a
antiga condição dessa classe de pessoas; ver, contudo, Lísias, em Harpocrácio,
na palavra Apostasíon, Crisipo em Ateneu, VI, 93, e uma passagem curiosa de
Platão, Leis, XI, p. 915. Disso resulta que o liberto sempre tinha deveres para
com o antigo senhor.
(5) Clientela, entre os sabinos (Tito Lívio, II, 18; Dionísio, V, 40); entre os
etruscos (Dionísio, IX, 5); entre os gregos (Dionísio, II, 9).
(6) Lei das Doze Tábuas, citada por Sérvio, ad Aen., VI, 609. Cf. Virgílio: Aut
fraus innexa clienti. Sobre os deveres dos patronos, vide Dionísio, II, 10.
(7) Horácio, Epist., II, 1, 104, Cícero, De orat., III, 33.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(8) Catão, em Aulo Gélio, V, 3; XXI, 1.
(9) Aulo Gélio XX, 1.
(10) Essa verdade, em nossa opinião, está bem clara em dois fatos que nos são
contados, um por Plutarco, outro por Cícero. C. Herênio, chamado para
testemunhar contra Mário, alegou ser contrário às regras antigas que um
patrono testemunhasse contra seu cliente; e, como se admirassem
aparentemente de que Mário, que já havia sido tribuno, fosse qualificado de
cliente, ele acrescentou que efetivamente Mário e sua família, desde os
tempos mais remotos, sempre haviam sido clientes da família dos Herênios.
Os juízes admiram-se do argumento, mas Mário, que não se importava por
se ver reduzido a essa condição, replicou que no dia em que havia sido eleito
para uma magistratura libertara-se da clientela, o que não era bem verdade,
acrescenta o historiador, porque nenhuma magistratura libertava da condição
de cliente; somente os magistrados curuis tinham esse privilégio (Plut., Vida
de Mário, 5). A clientela, portanto, era, salvo essa única exceção, obrigatória e
hereditária; Mário a havia esquecido, o que não aconteceu com os Herênios.
Cícero menciona um processo discutido em seu tempo entre os Cláudios e
os Marcelos; os primeiros, a título de chefes da gens Cláudia, pretendiam, em
virtude do direito antigo, que os Marcelos fossem seus clientes; estes em vão
ocupavam há dois séculos os primeiros postos do Estado: os Cláudios
persistiam em sustentar que o vínculo de clientela não podia ter sido
destruído. Esses dois fatos, salvos do esquecimento, permitem-nos julgar o
que era a primitiva clientela.
Livro III - Cap. I
(1) Esse modo de geração da fratria está claramente Indicado em curioso
fragmento de Dicearca (Fragm. hist. gr., ed. Didot, t. II, p. 238). As fratrias
são assinaladas em Homero como instituições comuns a toda a Grécia: Ilíada,
II, 362. Pólux, III, 52. Demóstenes, In Macartatum, 14; Iseu, De Philoct.
hered., 10. Havia fratrias em Tebas (Escoliastes de Píndaro, Isthm., VI,
18); em Corinto (ibid., Olymp., XIII, 127); na Tessália (ibid., Isthm., X, 85);
em Neápolis (Estrabão, V, p. 246); em Creta (Boeckh, Corp. Inscr., n.° 2555).
Alguns historiadores pensam que os obai de Esparta correspondiam às fratrias
de Atenas. As palavras fratria e cúria eram consideradas sinônimas;
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Dionísio de Halicarnasso (II, 85), e Díon Cásslo (fragm. 14) traduzem-nas
uma pela outra,
(2) Demóstenes, In Macart.,14, e Iseu, De Apollod. hered., mencionam o altar
da fratria e o sacrifício que nele celebravam. Cratino (em Ateneu, XI, 3. p.
460) fala do deus que preside à fratria. Cf. Pólux, III, 52.
(3) Ateneu, V, 2; Festo, p. 64.
(4) Cícero, De orat., I, 7; Ovídio, Fast., VI, 305; Dionísio, II, 65.
(5) Dionísio, II, 73. Apesar disso, já se haviam introduzido algumas
mudanças. O banquete da cúria não passava de mera formalidade, boa para os
sacerdotes. Os membros da cúria dispensavam-no de bom grado, introduzindose
o costume de substituir a refeição comum por uma distribuição de víveres e
de dinheiro: Plauto, Aululária, V, 69 e 137.
(6) Iseu De Apollod. hered., 15-17. descreve um desses banquetes; em outro
lugar (De Astyph. hered., 33), fala de um homem que, tendo saído de sua
fratria, em virtude de uma adoção, era considerado nela como estranho; em
vão se apresentava em todas as refeições sagradas, pois não lhe davam
nenhuma parte das carnes sagradas da vítima. Cf. Lísias, Fragm., 10 (ed.
Didot, t. II, p. 255): Se um homem, nascido de pais estrangeiros, se junta a
uma fratria, qualquer ateniense poderá processá-lo judicialmente.
(7) Demóstenes, In Macartatum, 13-15. Iseu, De Philoct. hered, 21-22; De
Cironis hered., 18. Lembremo-nos de que uma adoção regular produzia
sempre os mesmos efeitos que a filiação legitima, chegando mesmo a
substituí-la.
(8) Essa mesma opinião é o princípio da antiga hospitalidade. Não é nosso
propósito descrever essa curiosa instituição. Digamos somente que a religião
nela tinha grande parte. O homem que conseguisse chegar ao lar não podia
mais ser considerado estrangeiro; tornava-se eféstios (Sófocles, Trachin., 262;
Eurípides, Íon, 654; Ésquilo, Eumênidas, 577; Tucídides, I, 137). Aquele que
participasse de um banquete sagrado estava sempre em comunhão religiosa
com o hóspede; é por isso que Evandro diz aos troianos: Communem vocate
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Deus (Virgílio, Eneida, VIII, 275). Aqui vemos um exemplo do que há
sempre de sabiamente ilógico na alma humana: a religião doméstica não é
feita para estrangeiros; ela o repele por essência, mas, por isso mesmo, o
estrangeiro, uma vez admitido, torna-se mais sagrado. Desde que tocou o lar,
torna-se absolutamente necessário que deixe de ser estrangeiro, o mesmo
princípio que ontem o repelia exige que hoje. e para sempre, ele se torne
membro da família.
(9) A respeito do curio, ou magister curiae, vide Dionísio, II 64; Varrão, De
ling. lat., V, 83; Festo. p. 126. O fratriarca é mencionado em Demóstenes, In
Eubul., 23. A deliberação e o voto são descritos em Dem., In Macart., 82.
Várias inscrições contêm decretos promulgados por fratrias; vide Corpus
inscr. attic., t. II, ed. Kohler, n.°s 598, 599, 600.
(10) Pólux, VIII, 110.
(11) Ateneu, V, 2; Pólux, III, 67; Demóstenes, In Boeot., de nom., 7. Sobre as
quatro antigas tribos de Atenas, e suas relações com as fratrias e os ghéne,
vide Pólux, VIII, 109-111, e Harpocrácio, v. Trittys, segundo Aristóteles. A
existência de antigas tribos, em número de três ou quatro, é acontecimento
vulgar em todas as cidades gregas, dóricas ou jônicas: Ilíada, II, 362 e 668;
Odisséia, XIX, 177; Heródoto, IV, 161; V, 68 e 69; vide Otf. Müller, Dorier,
t. II, p. 79. Há uma distinção a ser feita entre as tribos religiosas dos primeiros
tempos e as tribos simplesmente locais dos tempos posteriores; mais adiante
voltaremos ao assunto. Somente as primeiras estão em relação com as fratrias
e os ghéne.
(12) Pólux, VIII, 111. Cf. Aristóteles, fragmento citado por Fócio, v.
Naukraria.
(13) A organização política e religiosa das três tribos primitivas de Roma
deixou poucos vestígios nos documentos. Tudo o que se sabe é que eram
compostas de cúrias e de gentes, e que cada uma delas tinha seu tribunus.
Seus nomes, Ramnes, Tities, Luceres, foram conservados, assim como
algumas cerimônias do culto. Essas tribos, aliás, eram corporações muito
consideráveis para que a cidade deixasse de querer enfraquecê-las e tirar-lhes
a independência. Também os plebeus trabalharam para fazê-las desaparecer.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Livro III - Cap. II
(1) Sófocles, Antígone, v. 879. Os Vedas exprimem muitas vezes a mesma
idéia.
2°
(1) Será necessário lembrar todas as tradições gregas e italianas que faziam da
religião de Júpiter uma religião jovem, e relativamente recente? A Grécia e a
Itália haviam conservado a lembrança de um tempo em que as sociedades
humanas já existiam, e no qual essa religião ainda não estava formada.
Ovídio, Fastos, II, 289; Virgílio, Geórg., I, 126; .Ésquilo, Eumênidas;
Pausânias, VIII, 8. Parece que entre os hindus os Pitris foram anteriores aos
Devas.
(2) Se muitas vezes acontecia que vários nomes representassem uma mesma
divindade ou uma mesma concepção de espírito, acontecia igualmente que um
mesmo nome escondia muitas vezes divindades muito diferentes: Poséidon
Hippios, Poséidon Phytálmios, Poséidon Erechthée, Poséidon Aegéen,
Poséidon Heliconiano, eram deuses diversos, que não tinham os mesmos
atributos nem os mesmos adoradores.
(3) Eurípides, Hécuba, 345; Medéia, 395. Sófocles, Ajax, 492. Virgílio, VIII,
543. Heródoto, I, 44.
(4) Tito Lívio, IX, 29. Dionísio, II, 69. Assim, a família dos Aurélios dedicava
culto doméstico ao sol (Festus, v. Aureliam..., ed. Müller, p. 23).
(5) Heródoto, V, 64, 65; VII, 153; IX, 27. Píndaro, Isthm, VII, 18. Xenofonte,
Helên., VI, 8. Platão, Leis, VI, p. 759; Banquete, p. 40. Plutarco, Teseu, 23;
Vida dos dez oradores, Licurgo, c. 11. Fílócoro, Fragm. 158, p. 411. Diodoro,
V, 58. Pausânias, I, 37; IV, 15; VI, 17; X,1. Apolodoro, III, 13. Justin., XVIII,
5. Harpocrácio, nos vocábulos Eteoboutádai, Eunéidai. Cícero, De
divinatione. I, 41. Estrabão, IX, p. 421; XIV, p. 634. Tácito, Annales, II, 54.
Livro III - Cap. III
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(1) Homero, Ilíada, II, 362. Varrão, De ling. lat., V, 89. Em Atenas conservouse
o costume de dividir os soldados por tribos e demos: Heródoto, VI, 111.
Iseu, De Meneclis hered., 42; Lísias, Pro Mantitheo, 15.
(2) Dionísio de Halicarnasso, II, 23.
(3) Aulo Gélio, XV, 27.
(4) Pólux, VIII, 111.
(5) Pólux, VIII, 105-106.
(6) Iseu, De Cironis hered., 19; Pro Euphileto, 3. Demóstenes, In Eubulidem,
46. A necessidade de ser inscrito em uma fratria, antes de fazer parte da
cidade, deriva da lei citada por Dinarca (Oratores attici, coll. Didot, t. II, p.
462, fr. 82).
(7) Plutarco, Teseu, 24; ibid., 13.
(8) Pausânias, I, 15; I, 31; I, 37; II, 18.
(9) Pausânias, I, 31.
(10) Plutarco, Teseu, 13.
(11) Plutarco, Teseu, 14. Pólux, VI, 105. Estêvão de Bizâncio, v. Echelídai.
(12) Filócoro, citado por Estrabão, IX. p. 609. Tucídides, II, 15. Cf. Pólux,
VIII, 111.
(13) Pausânias, I, 38.
(14) Tucídides, II, 15. Plutarco, Teseu, 24. Cf. Pausânias, VIII, 2, 1.
(15) Plutarco e Tucídides afirmam que Teseu destruiu os pritaneus locais e
aboliu as magistraturas dos burgos. Todavia, se tentou fazê-lo, é certo que não
o conseguiu, porque ainda muito tempo depois encontramos cultos locais,
assembléias, reis tribais. Boeckh, Corp. inscr., 82, 85. Demóstenes, In
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Theocrinem. Pólux, VIII, 111. Deixamos de lado a lenda de Íon, à qual
diversos historiadores modernos parecem haver dado muita importância,
apresentando-a como sintoma de uma invasão estrangeira na Ática. Essa
invasão não é indicada por nenhum documento. Se a Ática houvesse sido
conquistada por esses jônios do Peloponeso, não é provável que os atenienses
tivessem conservado tão religiosamente seus nomes de Cecrópidas,
Erecteidas, e que, pelo contrário, teriam considerado como injúria o nome de
jônios (Heródoto, I, 143). Àqueles que crêem nessa invasão dos jôníos, e que
acrescentam que a nobreza dos Eupátridas tem aí sua origem, pode-se ainda
responder que a maior parte das grandes famílias de Atenas remontam a época
bem anterior àquela em que se coloca a chegada de Íon à Ática. Quer isso
dizer que os atenienses não sejam jônios em sua maior parte? Eles certamente
pertencem a esse ramo da raça helênica. Estrabão nos diz que nos tempos
mais remotos a Ática chamava-se Iônia e Ías. Mas se erra quando se quer
fazer do filho de Xutos, do herói legendário de Eurípides, o tronco desses
jônios; eles são infinitamente anteriores a Íon, e seu nome é talvez muito mais
antigo que o dos helenos. Não há razão para se fazer descender desse Íon
todos os Eupátridas, e apresentar essa classe de homens como uma população
conquistadora. que oprimiu pela força uma população vencida. Essa opinião
não se apoia sobre nenhum testemunho antigo.
(16) Heródoto, IV, 161. Cf. Platão, Leis, V, 738; VI, 771. Assim, quando
Licurgo reforma e renova a cidade de Esparta, a primeira coisa que faz é
construir um templo; a segunda, dividir os cidadãos em phylai e em óbai: suas
leis políticas somente aparecem depois (Plutarco, Licurgo, 6).
Livro III - Cap. IV
(*) Como em português a palavra cidade é empregada em ambos os sentidos
(de cidade e de urbe, de cité e de ville). usá-la-emos indiscriminadamente.
(1) Tito Lívio, I, 8.
(2) É depois de contar a fundação da cidade sobre o Palatino, depois de falar
sobre suas primeiras instituições e progressos, que Tito Lívio acrescenta:
Deinde asylum aperit (Tito Lívio, I, 8).
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(3) A cidade, urbs, ocupava o Palatino; isso é formalmente afirmado por
Dionísio, II, 69; Plutarco, Rômulo, 9; Tito Lívio, I, 7 e 33; Varrão, De ling.
lat., VI, 34; Festo v. Quadrata, p. 258; Aulo Gélio, XIII. 14. Tácito, Annales,
XII, 24, dá o traçado desse recinto primitivo no qual não se compreendia o
Capitolino. Pelo contrário, o asylum estava situado na encosta do
Capitolino; Tito Lívio, I, 8. Estrabão, V, 3, 2; Tácito, História, III, 71;
Díonísio, II, 15; era aliás um simples lucus, ou hieròn ásylon, como existia em
toda parte, na Itália e na Grécia.
(4) Cícero, De divin., I, 17. Plutarco, Camilo, 32. Plínio, XIV, 2, XVIII, 12.
(5) Dionísio, I, 88.
(6) Plutarco, Rômulo. 11. Díon Cassio, Fragm., 12. Ovídio, Fast. IV, 821.
Festo, v. Quadrata.
(7) Plutarco, Rômulo, 11. Festo, ed. Müller, p. 156. Sérvio, ad. Aen, III, 134.
(8) A expressão mundus patet designava esses três dias em que os manes
saíam de suas moradas. Varrão, em Macróbio, Saturn., I, 16. Festo, ed. Müler,
p. 156.
(9) Ovídio, Fastos, IV, 822. O lar mais tarde foi mudado para outro lugar.
Quando as três cidades, do Palatino, do Capitólio e do Quirinal, se uniram em
uma só, o lar comum do templo de Vesta foi colocado sobre terreno neutro,
entre as três colinas.
(10) Plutarco, Rômulo, 11. Díonísio de Halic., I, 88. Ovídio, Fastos, IV, 825 e
seg. Varrão, De ling. lat., V, 143. Festo, ed. Müller, p. 375. Essas regras
eram tão conhecidas e usadas, que Virgílio, descrevendo a fundação de uma
cidade, começa por descrever essa prática (Virgílio, Aen., V, 755).
(11) Plutarco, Quest. rom., 27.
(12) Catão, citado por Sérvio, ad Aen., V, 755.
(13) Cícero, De nat. Deorum, III, 40. Gaio, II, 8. Digesto, I, 8, 8; ibid., 11.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(14) Varrão, V, 143. Tito Lívio, I, 44. Aulo Gélio, XIII, 14, dá a definição que
encontrou no livro dos áugures.
(15) Plutarco, Rômulo, 12. Plínio, Hist. Nat., XVIII, 66, 247. Cf. Corpus
inscript. lat., t. I, p. 340-341.
(16) Catão, em Sérvio, V, 755. Varrão, L. L., V, 143. Festo, v. Rituales, p.
285.
(17) Heródoto, IV, 156; Diodoro, XII, 12; Pausânias, VII, 2; Ateneu, VII, 62.
(18) Idem, V, 42.
(19) Tucídides, V, 16.
(20) idem, III, 24.
(21) Pausânias, IV, 27.
(22) Plutarco, Teseu, 24. Cícero, Pro Sextio, 63, nota que desembarcou em
Bríndisi no dia em que a cidade festejava o aniversário de sua fundação.
(23) Illos ire (Ilíada), hierài Athénai (Aristófanes, Cav., 1319), hieràn pólin,
diz Teógnis, v. 837, falando de Mégara. Pausânias, I, 26; Hierà tés Athenãs
estin e polis.
(24) Neptunia Troja, theódmetoi Athénai. Vide Teógnis, v. 755 (Welcher)
Livro III - Cap. V
(1) Pindaro, Pit., V, 117-132; Olimp., VII, 143-145. Píndaro chama o
fundador de pai das cerimônias sagradas
(Hyporchemes, fr. 1). O costume
de instituir um culto para o fundador é atestado por Heródoto, VI, 38; Diodoro
de Sicilia, XI, 78. Plutarco, Aratus, 53, descreve as honras religiosas e os
sacrifícios instituídos por Aratus depois de sua morte.
(2) Plutarco, Rômulo, 29. Dionísio, II, 63. Ovídio, Fastos, II. 475-510. Cícero,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
De rep., II, 10; I, 41. Não há dúvida de que desde esse momento já se
compunham hinos em honra do fundador; parece-nos ouvir o eco de um
desses velhos cantos em alguns versos de Ênio citados por Cícero.
(3) Heródoto, I, 168. Píndaro, Píticas, IV. Tucídides, V, 11. Estrabão, XIV, 1.
Cícero, De nat. Deorum, III, 19. Plutarco, Quest. graec., 28. Pausânias, I, 34;
III, 1.
(4) Heródoto, VI, 38. Diodoro, XI, 78. O culto do fundador parece ter existido
também entre os sabinos (Santo Agostinho, Cidade de Deus, XVIII, 19).
(5) Não temos que examinar aqui se a lenda de Enéias corresponde a um fato
real; basta-nos ver nela uma crença, que nos mostra o que os antigos
imaginavam por um fundador de cidade, que idéia faziam do penatiger, e para
nós isso é o que importa. Acrescentemos ainda que várias cidades, na Trácia,
em Creta, no Épiro, em Citera, em Zacinto, na Sicília, na Itália, acreditavam
terem sido fundadas por Enéias, e lhe tributavam culto.
(1) O pritaneu era, antes de mais nada, o edifício que encerrava o lar. Pólux, I.
7. Pausânias, V, 15, 5. Dionísio de Halicarnasso, II, 23, diz que nos pritaneus
dos gregos encontrava-se o lar comum das fratrias. Cf. escoliastes de Píndaro,
Nemeianas, XI; escoliastes de Tucídides, II, 15. Havia um pritaneu em
cada cidade grega; em Atenas (Tucíd., II, 15; Pausânias, I, 18); em Sicião
(Heródoto, V, 67); em Mégara (Pausân., I, 43); em Hermíone (Pausân., II,
35); em Élis (Pausân., V, 15); em Sifnos (Heród., III, 57); entre os aqueus
ftiotes (Heród., VII, 197); em Rodes (Políbio, XXIX, 5); em Mantinéia
(Pausân., VIII, 9); em Tassos (Ateneu, I, 58); em Mitilene (Ateneu, X, 24);
em Cízico (Tito Lívio XLI, 20); em Naucrátis (Ateneu, VI, 32); em Siracusa
(Cícero, In Verrem, De signis, 53), e até nas ilhas de Lipári, habitadas pela
raça grega (Diodoro, XX. 101). Dionísio de Halicarnasso diz que não se
considerava possível fundar uma cidade sem antes estabelecer o lar comum
(II, 65). Havia em Esparta uma sacerdotisa que ostentava o título de estía
póleos (Boeckh, Corp. inscr.. gr., t. I, p. 610).
(2) Em Roma, o templo de Vesta não era nada msis que o lar sagrado da
cidade, Cícero, De legibus, II, 8; ibid., II. 12. Ovídío, Fastos, VI, 291.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(3) Tito Lívío, XXVI, 27. Cícero, Filípicas, XI, 10.
(4) Horácio, Odes, I, 2, 27. Cícero, Pro domo, 53. Cf. Cícero, Pro Fonteio, 20.
(5) Tito Lívio, XXVIII, 11. Festo, p. 106. O fogo não podia ser ateado senão
mediante processo antigo e religioso (Festo, ibidem).
(6) Tito Lívio, XXVI, 27.
(7) Plutarco, Numa, 9; Camilo, 20. Dionísio de Halicarnasso, II, 66. Virgílio,
Eneida, III, 408. Pausânias, V, 15. Apiano, G. civ., I, 54.
(8) Tito Lívio, III, 17. Plínio H. N., XXI, 3, 8. Ovídio. Fastos, II, 616. Cícero,
Pro Sextio, 20. Macróbio, Saturn., III, 4. Sérvio, ad Aen., II, 351.
(9) Plutarco, Arístides, 11. Sófocles, Antígone, 199. Esses deuses muitas
vezes são chamados de dáimones enchórioi. Cf., entre os latinos, os dii
indigetes (Sérvio, ad Aen., XII, 794; Aulo Gélio, II, 16)
(10) Plutarco, Sólon, 9, alude ao costume dos atenienses de enterrar os mortos
voltando-os para o sol poente (Plutarco, Sólon, 10).
(11) Licurgo tinha em Esparta um templo, sacerdotes, festas sagradas e hinos
(Heródoto, I, 65; Plutarco, Licurgo, 31; Éforo, em Estrabão, VIII, 5, 5). Teseu
era deus em Atenas, que levantou um templo para acolher seus despojos.
Aristômenes era honrado por um culto entre os messênios (Pausânias, IV, 32);
os eácidas em Egina (Heródoto, V. 80). Pode-se ver em Pausânias o número
dos heróis tópicos venerados em cada cidade.
(12) Pausânias, IX, 18.
(13) Heródoto, VII, 117.
(14) Diodoro, IV, 62.
(15) Pausânias, X, 23; Píndaro, Nemeanas, VII. 65 e seg.
(16) Heródoto, V, 47.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(17) Eurípides, Heráclides, 10, 32.
(18) Sófocles, Édipo em Colona, 627.
(19) Idem, ibidem, 1524, 1525.
(20) Idem, ibidem, 621-622. Mostrava-se em Atenas o túmulo onde
repousavam os ossos de Édipo, e o herõon onde recebia as honras fúnebres
(Pausânias, I, 26; I, 30). Não é necessário dizer que os tebanos tinham outra
lenda acerca de Édipo.
(21) Pausânias, I, 43. Lenda semelhante, e o mesmo costume encontra-se na
cidade grega de Tarento (Políbio, VIII, 30).
(22) Pausânias, IV, 32; VIII, 9; VIII, 36.
(23) Heródoto, I, 67-68. Pausânias, III, 3,
(24) Esses deuses chamavam-se theoi políeis (Pólux, IX, 40), Polioúchoi
(Ésquilo, Sept., 109), polítai (Ésquilo, ibid., 253), astynomoi (Ésquilo, Agam.,
88). Estes deuses exerciam proteção especial sobre a cidade; Vitrúvio, I, 7;
Macróbio, III, 9. Virgílio condensa essa mesma idéia (IX, 246). A necessidade
para toda cidade nova de escolher para si uma divindade políada é assinalada
em Aristófanes, Aves, v. 826. Esses deuses ocupavam o campo, do qual eram
senhores: Demóstenes, Pro corona, 141; Plutarco, Aristides, 18; Licurgo, In
Leocratem, 26.
(25) Tucídides, I, 134; Pausânias, III, 17.
(26) Ilíada, VI, 88.
(27) Havia uma Athenè poliás em Atenas, e havia também uma Athenè poliás
em Tegeu; esta prometera a seus protegidos que sua cidade jamais seria
conquistada (Pausânias, VIII, 47).
(28) Títo Lívio, V, 21, 22; VI, 29. Vide em Díon Cássio, LIV, 4, uma
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história que mostra Júpiter Capilotino e Júpiter Tonante como deuses
diferentes.
(29) Heródoto, V, 72; VI, 81. Esparta tinha uma Atena e uma Hera (Plutarco,
Licurgo, 6; Pausânias, III); mas um espartano não tinha o direito de entrar no
templo de Atena políada de Atenas, ou da Hera políada de Argos.
(30) Eles só adquiriram esse direito depois da conquista da cidade (Tito Lívio,
VIII, 14).
(3l) Não havia cultos comuns a várias cidades senão no caso das
confederações; falaremos a respeito em outro lugar.
(32) Ésquilo, Suppl., 858.
(33) Ésquilo, Sete Chefes, v. 69-73, 105, 109, 139, 168-170.
(34) Ilíada, I, 37 e seg.; VI, 93-96.
(35) Ésquilo, Sete Chefes, 76-77, 176-181.
(36) Teógnis, ed. Welcker, v. 759; ed. Boissonade, v. 777.
(37) Sem dúvida, não é necessário advertir de que essas regras antigas foram
muito abrandadas com o tempo; há inscrições que mostram estrangeiros
oferecendo dádivas às divindades atenienses; mas essas inscrições são de data
relativamente recente.
(38) Eurípides, Heráclides, 347.
(39) Heródoto, V, 65; V, 80.
(40) Suetônio, Calígula, 5; Sêneca, De vita beata, 36.
(41) Virgílio, Eneida, I, 68.
(42) Virgílio, Eneida, II, 351.
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(43) Ésquilo, Sete Chefes, 217-220: Etéocles: Quando uma cidade é
conquistada, costuma-se dizer que os deuses a abandonaram. O coro:
Queiram os deuses, que aqui estão, jamais abandonar-nos, e que eu não veja
Tebas tomada de assalto, e entregue às chamas!
(44) Macróbio, Saturnales, III, 9. Plínio, Hist. nat., XXVIII, 4,18.
(45) Sobre o poder das fórmulas, epaghoghái ou katadéseis, vide Platão. Leis,
XI, p. 933; Eurípides, Suplicantes, 39. Essas fórmulas eram de tal modo
antigas, que muitas palavras não eram mais compreendidas, e não pertenciam
mais à língua grega. Vide Hesíquio à palavra Efesía. Os antigos acreditavam
que podiam obrigar os deuses, e constrangê-los; é esse o pensamento expresso
por Virgílio em Eneida, III, 427-440, onde, afirma que o enunciado da prece,
preces, as promessas, vota, as ofertas, dona, são as três armas pelas quais
pode ser vencida, superare, a má vontade de uma deusa.
(46) Tucídides, II, 74.
(47) Heródoto, V, 83.
(48) idem, V. 99.
(49) Plutarco, Sólon, 9.
(50) Plínio, Hist. nat., XXVIII, 4, 18. Macróbio, Sat, III, 9. Sérvio, ad Aen., II,
351.
Livro III - Cap. VII
(1) Ateneu, V, 2. Pólux, I, 34, menciona os demothoiniai, ou panthoiniai entre
as festas religiosas.
(2) Odisséia, III, 5-9; 43-50; 339-341.
(3) Ateneu, X, 49, segundo Panodemo.
(4) Xenofonte, Resp. Athen., 3. Cf. escoliastes de Aristófanes, Nuvens, 386.
Plutarco, Péricles, 11, e Isócrates, Areopagítico, 29, mencionam o costume
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dos estiáseis em Atenas.
(5) Ateneu, V, 2. O mesmo escritor menciona em Argos os demósiais thóinai,
e, em Esparta, banquetes distintos dos pheiditia cotidianos (Ateneu, XI, 66),
traz uma longa descrição dos banquetes das cidades de Figália e de Naucrátis;
menciona os ritos que nelas eram seguidos, as libações, os hinos (IV, 32); fala
dos de Tarento (IV, 61); alude ainda a esse costume em X, 25. Píndaro, na XI
Nemeiana, descreve os banquetes sagrados dos tenedos. Cf. Diodoro, XI, 72.
(6) Ateneu, V, 2.
(7) Vide o decreto citado por Ateneu, VI, 26.
(8) Plutarco, Sólon, 24. Ateneu. VI, 26. Fllocoro, fragm. 156. Clitodemo. fr.
11. Pólux, VI, 35.
(9) Demóstenes, Pro corona, 53. Aristóteles. Política, VII, 1, 19. Pólux, VIII,
155. Pausânias, V, 15.
(10) Fragmento de Safo, em Ateneu, XV, 16.
(11) Fragmento de Chaeremon, em Ateneu, XV, 19.
(12) Platão, Leis, XII, 956. Cícero, De legib., II, 18. Virgílio, V, 70, 774; VII,
135; VIII, 274. O mesmo acontece entre os hindus: nos atos religiosos era
obrigatório o uso da coroa e de roupas brancas (Leis de Manu, IV, 66, 72).
(13) Hermias, em Ateneu. IV, 32.
(14) Vide os autores citados por Ateneu, I, 58; IV, 31 e 32; XI, 66.
(15) Ateneu, IV, 19; IV, 20.
(16) Aristóteles, Política, VII, 9, 2-3, ed. Didot, p. 611.
(17) Virgílio, VII, 174 e seg.; VIII, 102-111, 283-305.
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(18) Dionisío, II, 23. Aulo Gélio, XII, 8. Tito Lívio, XL, 59.
(19) Cícero, De oratore, III, 19. A palavra epulum empregava-se propriamente
para os banquetes em honra dos deuses. Festo, ed. Müller, p. 78. Vide Tito
Lívio, XXV, 2; XXVII, 36; XXIX, 38; XXXIII, 42; XXXIX, 46. Cícero, Pro
Murena, 36.
(20) Dionísio, II, 23, onde fala dos banquetes comuns dos espartanos, que
compara em outro lugar com os banquetes comuns dos romanos.
2°
(1) Festo, v. Amburbiales, ed. Müller, p. 5. Macróbio, Sat., III, 5. A descrição
da festa está em Tibulo, liv. II, elegia 1.
(2) Plutarco, Numa, 14. Varrão, L. L., VI, 16. Plínio, XVIII, 2. Quanto às
festas que deviam preceder as colheitas, vide Virgílio, Geórgias, I, 340-350.
(3) Platão, Leis, II, p. 584. Demóstenes, In Midiam, 10. Demóstenes, In
Timocratea, 29. Cícero, De legibus, II, 12. Macróbio, I, 16.
(4) Demóstenes, In Timocratea, 29. Idêntica prescrição em Roma: Macróbio,
I, 15. Cf., Cíc., De leg., II, 12.
(5) Varrão, De líng. lat., VI, 27. Sérvio. ad Aen.. VIII, 654. Macróbio, Sat., I,
14; I, 15.
(6) Censorino, De die natali, 22.
3°
(1) Chamava-se a essa operação katháirein ou aghnéuein pólin. Hiponax, ed.
Bergk, fragmento 60. Em latim dizia-se lustrare: Cícero, De divin., I, 45.
Sérvio, ad Aen., I, 283.
(2) Diógenes Laércio, Sócrates, c. 23. Harpocrácio, v. Phármakos. Do mesmo
modo era purificado anualmente o lar doméstico: Ésquilo, Coéforas, 966.
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(3) Varrão, De ling, lat., VI, 86-87.
(4) Tito Lívio, I, 44. Dionísio de Halic., IV, 22. Cícero, De oratore, II, 66.
Sérvio, ad Aen., III, 279. Cf. ibid., VIII, 183. Valério Máximo resume a
oração que era pronunciada pelo censor (Valér. Máx., IV, 1, 10). Estes
costumes continuaram até o tempo do império; Vopisco, Aureliano, 20.
Tito Lívio, I, 44 parece acreditar que a cerimônia da lustração foi instituída
por Sérvio. Ela é tão antiga quanto Roma. A prova está em que a lustratio do
Palatino, isto é, da primitiva cidade de Rômulo, continuou a ser celebrada
todos os anos. Varrão, De ling. lat., VI, 34. Sérvio Túlio foi talvez o primeiro
a aplicar a lustratio à cidade já engrandecida por ele, e instituiu o censo que
acompanhava a lustração embora continuasse a constituir cerimônia à parte.
(5) Podia ser vergastado e vendido como escravo: Dionísio, IV, 15; V, 15;
Cícero, Pro Caecina, 34. Os cidadãos ausentes de Roma deviam estar
presentes no dia da lustração; nenhum motivo podia dispensá-los desse dever.
Tal era a regra original, que não foi suavizada senão nos dois últimos séculos
da república: Veléio, II, 7, 7; Tito Lívio, XXIX, 37: Aulo Gélio, V. 19.
(6) Cícero, De legibus, III, 3; Pro Flacco, 32. Tito Lívio. I, 43; Dionísio, IV,
15; V, 75. Varrão, De ling. lat., VI, 93. Plutarco, Cato major, 16.
4°
(1) Sobre esse pensamento dos antigos, vide Cássio Hemina, em Macróbio, I,
16.
(2) Sobre os dias nefastos entre os gregos, vide Hesíodo, Opera et dies, v. 710
e seguintes. Os dias nefastos chamavam-se hemérai apóphrades (Lísias, Pro
Phania, fragm., ed. Didot, t. II, p. 278). Cf. Heródoto, VI, 106. Plutarco, De
defectu oracul., 14; De et apud Delphos, 20.
(3) Cícero, Pro Murena, 1. Tito Lívio, V, 14; VI, 41; XXXIX, 15. Dionísio,
VII, 59; IX, 41; X, 32. Plínio, no Panegírico de Trajano, 63, lembra ainda o
longum carmen comitiorum.
(4) Ésquines, In Tlmarchum, 23. Id, In Ctesiph., 2-6. Pólux, VIII, 104. Daqui
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
a palavra de Aristófanes, Acarn., 44: Entòs toú kathármatos para designar
o lugar da assembléia. Of. Dinarca, In Aristog., 14.
(5) Demóstenes lembra essa oração, sem citar-lhe a fórmula: De falsa legat.,
70. Podemos fazer dela uma idéia pela paródia que dela faz Aristófanes nos
Thesmophoriazousae, v. 295-350.
(6) Aristófanes, Acarnianos, 171.
(7) Idem, Thesmoph., 381, e escoliastes. Era costume antigo. Cícero, In
Vatinium, 10. Sérvio, ad Aen., XI, 301, diz que entre os antigos todo o
discurso começava por uma oração, e cita como prova os discursos que
possuía de Catão e dos Gracos.
(8) Varrão, em Aulo Gélio, XIV, 7. Cf. Sérvio, ad Aen., I, 446; VII, 153.
Cícero, Ad diversos, X, 12.
(9) Varrão, em Aulo Gélio, ibid. Suetônio, Augusto, 35. Díon Cássio, LIV, 30.
(10) Andócides, De suo reditu, 15; De mysteriis, 44; Antífon, Super choreuta,
45; Licurgo, In Leocratem, 122. Demóstenes, In Midam, 114. Diodoro. XIV,
4. Xenofonte, Helèn., II, 3, 52.
(11) Aristófanes, As Vespas, 860-865. Cf. Ilíada, XVIII, 504.
(12) Podem-se ver em Tito Lívio, I, 32, os ritos da declaração de guerra. Cf.
Dionísio, II, 72; Plínio, XXII, 2, 5; Sérvio, ad Aen., IX, 52; X, 14.
Dionísio, I, 21, e Tito Lívio, I, 32, asseguram que essa instituição era comum
a muitas cidades italianas. Também na Grécia a guerra era declarada por
um kéryx. Tucídides, I, 29; Pausânias, IV, 5, 8; Pólux, IV, 91.
(13) Tito Lívio, I, 19. A descrição exata e minuciosa da cerimônia está em
Virgílio, VII, 601-617.
(14) Dionísio, IX, 57. Xenofonte, Helên., III, 4, 3; IV, 7, 2; V, 6, 5. Vide em
Xenofonte Resp. Laced., 13 (14), a série dos sacrifícios que o chefe de um
exército espartano fazia antes de sair da cidade, antes de atravessar a fronteira,
e que renovava depois, cada manhã, antes de dar qualquer ordem de marcha.
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À partida de uma frota, os atenienses, como os romanos, oferecem
sacrifícios; Cf. Tucídides, VI, 32, e Tito Lívio, XXIX, 27.
(15) Heródoto, IX, 19. Xenofonte, Resp. Lac., 13. Plutarco, Licurgo, 22. À
frente da cada exército grego marchava um pyrphoros levando o fogo sagrado
(Xenofonte, Resp. Lac., 13; Heród., VIII, 6; Pólux, I, 35; Hesíquio, v.
Pyrphoros). Do mesmo modo, havia nos campos romanos um lar sempre
aceso (Dionísio, IX, 6). Os etruscos também carregavam um lar com seus
exércitos (Plutarco, Publícola, 17). Tito Lívio, II, 12, mostra também o
accensus ad sacrificium foculus. O próprio Sila mantinha um lar aceso diante
de sua tenda (Júlio Obsequens, 116).
(16) Heródoto, IX, 61-62.
(17) Ésquilo, Sete Chefes, 252-260. Eurípides, Fenic., 573.
(18) Diodoro, IV, 5. Fócio: Thríambos epídeixis níkes.
(19) Tito Lívio, XLV, 39; V, 23; X, 7. Varrão, De ling. lat., VI, 68. Plínio, H.
N., VII, 56; XXXIII, 7, 36.
Livro III - Cap. VIII
(1) Plutarco, De defectu oraculor., 14.
(2) Quanto aos velhos hinos que os gregos continuavam a cantar nas
cerimônias, vide Pausânias, I, 18; VII, 15, in fine; VII. 21; IX, 27, 29, 30.
Cícero, De legibus, II, 15, faz notar que as cidades gregas, cuidavam muito de
conservar os ritmos antigos. Platão, Leis, VII, p. 799-800, conforma-se com
as antigas regras quando prescreve que os cânticos e ritmos continuem
imutáveis. Entre os romanos, as fórmulas de oração estavam fixadas por
um ritual, vide Varrão, De ling. lat., e Catão, passim. Quintiliano, I, 11.
(3) Demóstenes, In Neoeram, 116-117. Varrão cita algumas palavras dos libri
sacrorum, que se conservavam em Atenas, e cuja linguagem era arcaica (De
ling. lat., V. 97). Acerca do respeito dos gregos pelos ritos antigos, vide
alguns exemplos curiosos em Plutarco, Quest graec., 26, 31, 35, 36, 58. O
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
pensamento antigo está bem expresso por Isócrates, Areopagítica., 29-30, e
em todo o discurso contra Neera.
(4) Pausânias, IV. 27. Plutarco. Contra Colotes, 17. Plínio, H. N., XIII, 21.
Valério Máximo, I, 1. 3. Varrão, L. L., VI, 16. Censorino, 17. Festo, v.
Rituales.
(5) Pólux, VIII, 128. Sabe-se que um dos significados mais antigos da palavra
nómos é o de rito ou de regra religiosa. Lisias, in Nicomachum, 17.
(6) Ateneu, XIV, 68, cita os hinos áticos de Atenas; Élio, II, 39, os dos
cretenses; PIndaro, Pítie., V, 134, os de Cirene; Plutarco, Teseu, 16, os dos
bocianos; Tácito, Ann., IV, 43, os vatum carmina, conservados por espartanos
e messênios.
(7) Pátrión estin emín. Essas palavras aparecem freqüentemente em
Tucídides, e entre os oradores áticos.
(8) Dionísio, II, 49. Tito Lívio, X, 33. Cícero, De divin., II. 41; I, 33; II, 23.
Censorino, 12-17. Suetônío, Cláudio, 42. Macróbio, I, 12; V, 19. Solino, II, 9.
Sérvio, VII, 678; VIII, 398. Cartas de Marco Aurélio, IV, 4.
(9) Os antigos anais de Esparta são mencionados por Plutarco, Adv. Coloten,
17; por Ateneu, XI, 49; por Tácito, Ann. IV, 43. Plutarco, Sólon, 11, fala dos
de Delfos. Os próprios messêníos tinham Annales e monumenta sculpta aere
prisco, que remontavam, diziam eles, à invasão dórica (Tácito, ibidem).
Dionísio de Halicarnasso, De Thucyd. hist., ed. Reiske, t. VI, p. 819. Políbio
também assinala os demosíai tõn póleon anagraphái (XII, 10).
(10) Cícero, De oratore, II, 13. Cf. Sérvio, ad Aen., I. 373. Dionísio declara
que conhecia os livros sagrados e os anais secretos de Roma (XI, 62). Na
Grécia, em época bastante remota, houve logógrafos que consultaram e
copiaram os anais sagrados das cidades; vide Dionísio, De Thucyd. hist., c. 5,
ed. Reiske, p. 819.
Livro III - Cap. IX
(1) Aristóteles, Política, VI, 5, 11 (Didot, p. 600). Dionísio de Halic. II, 65.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(2) Suidas, v. Cháron.
(3) Ésquilo, Suppliantes, 369 (357). É conhecida a íntima relação existente
entre o teatro e a religião. A representação era cerimônia do culto, e o poeta
trágico, em geral, devia celebrar alguma das lendas sagradas da cidade. Essa a
razão pela qual encontramos nos trágicos tantas velhas tradições, e até antigas
formas de linguagem.
(4) Eurípides, Orestes, 1594-1597.
(5) Nicolau de Damasco, nos Fragm. hist. graec., t. III, p. 394.
(6) Demóstenes, In Neoeram, 74-81. Xenofonte, Resp. Lac, 13-14. Heródoto,
VI, 57. Aristóteles, Pol., III, 9, 2.
(7) Virgílio, X, 175. Tito Lívio, V, 1. Censorino, 4.
(8) Cícero, De nat. deorum, III, 2; De rep., II, 10; De divinat., I, 17; II, 38.
Vide os versos de Ênio, em Cíc., De div., I, 48. Os antigos não
representavam Rômulo em trajes de guerra, mas em vestes sacerdotais, com o
bastão augural e a trábea (Ovídio, Fastos, VI, 376. Cf. Plínio, Hist. Nat., IX,
39, 136).
(9) Tito Lívio, I, 20. Sérvio, ad Aen., III, 268.
(10) Tito Lívio, I, 18. Dionísio, II, 6; IV, 80. Essa é a razão pela qual
Plutarco, resumindo um discurso de Tibério Graco, o faz dizer: He ghe
basiléia táis meghístais hierourghíais kathosíotai pròs tò théion (Plut.,
Tibério, 15).
(11) Tucídides, V, 16, in fine.
(12) Plutarco, Agis, 11.
2°
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(1) Aristóteles, Pol., VI, 5, 11.
(2) Píndaro, Nemelanas, XI, 1-5.
(3) Aristóteles, Política, III, 9.
(4) Só nos referimos aqui aos primeiros tempos das cidades. Veremos mais
adiante que houve época em que a hereditariedade deixou de ser regra; em
Roma, a realeza nunca foi hereditária, isso devido à fundação relativamente
recente de Roma, em época em que a realeza era atacada e desprestigiada por
toda parte.
(5) Heródoto, I, 142-148. Pausânias, VII, 1-5.
(6) Sófocles, Édipo rei, 34.
(7) Estrabão, XIV, 1, 3. Ateneu, XIII, 36, p. 576.
(8) Tito Lívio, III, 39. Suetônio, Júlio, 6.
(9) Cícero, De rep., I, 33.
Livro III - Cap. X
(1) Em Mégara, na Samotrácia. Tito Lívio, XLV, 5. Boeckh, Corp. inscr. gr.,
n.° 1052.
(2) Píndaro, Nemeianas, XI.
(3) Plutarco, Quest. rom., 40.
(4) Plutarco, Aristides, 21.
(5) Tucídides, VIII, 70. Apolodoro, Fragm. 21 (coll. Didot, t. I, p. 432).
(6) Demóstenes, In Midiam, 33. Ésquines, In Timarch, 19.
(7) Usavam-se coroas nos coros e nas procissões: Plutarco, Nícias, 3; Fócion,
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37. Cícero, In Verr., IV, 50.
(8) Pólux, VIII, e, IX, n.°s 89 e 90; Lísias, De Ev. prob., 6-8; Demóstenes, In
Neaeram, 74-79; Licurgo, coll. Didot, t. II, p. 362; Lísias, In Andoc., 4.
(9) A expressão oi en téleí ou tá téle tanto é usada para designar os
magistrados de Esparta como para os de Atenas. Tucídides, I, 58; II, 10; III,
36; IV, 65; VI, 88; Xenofonte, Agesilau, I, 36; Helên., VI, 4, 1. Cf. Heródoto,
I, 133; III, 18; Ésquilo, Pers, 204; Agam., 1202; Eurípides, Trach. 238.
(10) Cícero, De lege agr., II, 34. Tito Lívio, XXI, 63; IX, 8; XLI, 10.
Macróbio, Saturn., III, 3.
(11) Tito Lívio, XXVII, 40.
(12) Tito Lívio, XXVII, 44.
(13) Varrão, L. L., VI, 54. Ateneu, XIV, 79.
(14) Platão, Leis, III, p. 690; VI, p. 759. Os historiadores modernos
conjecturaram que o sorteio era invenção da democracia ateniense, e que
houve tempo em que os arcontes eram eleitos pela cheirotonía. É pura
hipótese, que não é apoiada por nenhum texto. Os textos, pelo contrário,
mostram o sorteio como instituição muito antiga. Plutarco, que escrevia a vida
de Péricles de acordo com historiadores contemporâneos, como Stesimbrote,
afirma que Péricles nunca foi arconte, porque essa dignidade era conferida
mediante sorteio em toda a antiguidade (Plut., Péricles, 9). Demétrio de
Falera, que havia escrito obras sobre a legislação de Atenas, e em particular
sobre o arcontado, dizia formalmente que Aristides havia sido arconte por
sorteio (Demétrio, citado por Plutarco, Aristides, 1). É verdade que
Indomeneu de Lâmpsaco, escritor posterior, dizia que Aristides havia sido
elevado a esse cargo por escolha de seus concidadãos; mas Plutarco, que
refere essa asserção (ibidem), acrescenta que, se ela é exata, é necessário
entender que os atenienses fizeram uma exceção em favor do mérito eminente
de Aristides. Heródoto, VI, 109, deixa bem claro que, nos tempos da batalha
de Maratona, os nove arcontes, e, entre eles, o polemarca, eram nomeados
mediante sorteio. Demóstenes, In Leptinem, 90, cita uma lei da qual resulta
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
que nas tempos de Sólon a sorte já designava os arcontes. Enfim, Pausânias,
IV, 5, dá a entender que o arcontado anual mediante sorteio sucedeu
imediatamente ao arcontado decenal, isto é, em 683. Sólon, é verdade, foi
escolhido para ser arconte; Aristides talvez também o tenha sido; mas nenhum
texto implica na existência da regra de eleição. O sorteio parece ser tão antigo
quanto o próprio arcontado; pelo menos devemos pensar assim na ausência de
textos contrários. Não era, aliás, um processo democrático. Demétrio de
Falera diz que nos tempos de Aristides não se procedia ao sorteio senão entre
as famílias mais ricas. Antes de Sólon, o sorteio só era feito entre os
Eupátridas. Mesmo nos tempos de Lísias e de Demóstenes não se colocava na
urna o nome de todos os cidadãos (Lísias, De invalido, 13; In Andocidem, 4;
Isócrates, ph. antidóseos, 150). Não se conhecem bem as regras desse sorteio,
que, aliás, era confiado aos tesmótetas em exercício; tudo o que se pode
afirmar é que em nenhuma época os textos assinalam a prática da cheirotonía
para os nove arcontes. É digno de nota que, quando a democracia se
apoderou do governo, criou os estrategos, e lhes deu toda a autoridade; para
esses chefes ela não pensou em pôr em prática o sorteio, e preferiu elegê-los
mediante votação. De sorte que havia sorteio para as magistraturas que
datavam da idade aristocrática, e eleição para as que datavam da idade
democrática.
(15) Valério Máximo, I, 1, 3. Plutarco, Marcelo, 5. Tito Lívio, IV, 7.
(16) As regras do antigo direito público de Roma, que caíram em desuso nos
últimos séculos da república, são atestadas por numerosos textos. Dionísio,
IV, 84, deixa bem claro que o povo não votava senão nos nomes propostos
pelo presidente dos comícios. Se algumas centúrias votavam em outros
nomes, o presidente podia não levar em conta esses votos: Tito Lívio, III, 21;
VII, 22. Esse último fato já é do ano 352 A. C., e a narrativa de Tito Lívio
mostra o direito do presidente muito desprezado desta vez pelo povo. Esse
direito, que daí em diante foi letra morta, não foi todavia abolido legalmente,
e mais de um cônsul ousou, depois, lembrá-lo. Em Aulo Gélio, VI, 9, o
presidente, que é um simples edil, recusa-se a aceitar e a contar os sufrágios.
Em outro lugar o cônsul Pórcio declara que não aceitará semelhante candidato
(Tito Lívio, XXXIX, 39). Valério Máximo, III, 8, 3, conta que na abertura dos
comícios perguntava-se ao presidente C. Pison, se caso o povo votasse em
Lólio Palicano, ele o proclamaria eleito; Pison responde negativamente, e a
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assembléia vota em outro candidato. Vemos em Veléio, II, 92, um presidente
de comícios proibir a um candidato de se apresentar, e, como este insistisse,
declarar que, mesmo se escolhido pelos sufrágios de todo o povo, ele não o
considerará eleito. Ora, a proclamação do presidente, renuntiatio, era
indispensável, e sem ela não havia eleição.
(17) Tito Lívio, II, 42; II, 43. Dionísio, VIII, 87.
(18) Vemos exemplos disso em Dionísio, VIII, 82, e Tito Lívio, II, 64.
(19) Cícero, De legibus, III, 3. Sabe-se que Cícero, no De legibus, apenas
reproduz e explica as leis de Roma.
(20) As diferentes perguntas feitas nesse exame são referidas por Dinarca, In
Aristogitonem, 17-18, e em Pólux, VIII, 85-86. Cf. Licurgo, fragm, 24 e
Harpocrácio, v. Hérkeios.
(21) Cf. Dinarca, em Harpocrácio; Pólux, VIII, 85.
(22) Dinarca. In Aristog., 17-18. Perguntava-se também ao arconte se ele
havia feito todas as campanhas para as quais havia sido convocado, e se
pagara todos os impostos.
(23) Platão, Leis, VI, p. 759. Por motivos análogos, afastava-se do
arcontado todo o cidadão doente ou defeituoso (Lísias, De invalido, 13). Isso
porque um defeito físico, sinal do castigo dos deuses, tornava a pessoa indigna
de desempenhar qualquer sacerdócio, e, por conseqüência, de exercer
qualquer magistratura.
(24) cf. Díonísio, II, 73. Não é necessário advertir que nos últimos séculos
da república esse exame, se ainda era feito, não passava de mera formalidade.
Livro III - Cap. XI
(1) Cícero, De legibus, II, 19.
(2) Cícero, De legibus, II, 9, 19, 20, 21; De aruspic. resp., 7; Pro domo, 12,
14. Dionísio, II, 73. Tácito, Annales, I, 10; Hist. I, 15. Díon Cássio, XLVIII,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
44. Plínio, Hist. Nat., XVIII, 2. Aulo Gélio, V, 19; XV, 27. Pompônio, no
Digesto, De origine juris.
(3) Dai se originou essa velha definição, que os jurisconsultos conservaram
até Justiniano: Jurisprudentia est rerum divinarum atque humanarum notitia.
(4) Iseu, De Apollod. hered., 30.
(5) Pólux, VIII, 90. Andócides, De mysteriis, 111.
(6) Dionísio, IX, 41. Essa regra, mui rigorosamente observada no primeiro
século da república, desapareceu mais tarde, ou foi abolida.
(7) Dionísio, X, 4. Cf. Tito Lívio, III. 41.
(8) Andócides, De mysteriis, 82. Cf. Demóstenes, In Evergum, 71: In
Leptinem, 158. Pólux, IX, 61. Aulo Gélio, XI, 18.
(9) Varrão, De líng. lat., VI, 16.
(10) Díonísio, X, 1.
(11) Eliano, H. V., II, 39.
(12) Aristóteles, Probl., XIX, 28.
(13) Títo Lívio, I, 26.
(14) Némo, partilhar; nómos, divisão, medida, ritmo, canto; vide Plutarco, De
musica, p. 1133; Píndaro, Pyth., XII, 41: Fragm., 190 (edit. Heyne).
Escoliastes de Aristófanes, Cav., 9.
(15) Galo, Instit., IV, 11.
Livro III - Cap. XII
(1) Aristóteles, Política, II, 6, 21 (II, 7).
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(2) Boeckh, Cor. Inscr., n.° 3641 b, t. II, p. 1131. Do mesmo modo, em
Atenas, o homem designado para tomar parte nos banquetes públicos, e que
não cumprisse esse dever, era julgado e punido; vide lei citada por Ateneu,
VI, 26.
(3) Dionísio, IV, 15; V, 75. Cícero, Pro Caecina, 34. Veléio, II, 15. Admite-se
exceção para os soldados em campanha; mas ainda era necessário que o
censor fizesse com que anotassem seus nomes, a fim de que, inscritos no
registro da cerimônia, eles fossem considerados presentes.
(4) Xenofonte, Memor., I, 1.
(5) Acerca dos sacrifícios que os prítanes ofereciam diariamente em nome da
cidade, vide Antífon, Super choreuta, 45.
(6) A fórmula completa desse juramento encontra-se em Pólux, VIII, 105-106.
(7) Decreto relativo aos plateanos, em Demóstenes, In Neaeram, 104. Cf.
ibidem, 113. Vide ainda Isócrates, Panegyr., 43, e Estrabão, IX, 3, 5.
(8) Virgílio, En., III, 406. Festo, v. Exesto. Sabe-se que o vocábulo hostis era
aplicado ao estrangeiro (Macróbio, I, 17; Varrão, De ling, lat., V. 3; Plauto,
Trinummus, I, 2, 65); hostilis facies, em Virgílio, significa o rosto de um
estrangeiro.
(9) Digesto, Liv. XI, tít. 6, 36.
(10) Pode-se ver exemplo dessa regra, para a Grécia, em Plutarco, Aristides,
20, e para Roma, em Tito Lívio, V, 50.
(11) Essas regras dos tempos antigos tornaram-se mais brandas com o tempo;
os estrangeiros adquiriram o direito de entrar nos templos da cidade, e neles
oferecer suas dádivas. Mas ainda continuaram a existir certas festas e
sacrifícios dos quais o estrangeiro ainda era excluído; vide Boeckh, Corp.
inscr., n.° 101.
(12) Heródoto, IX, 33-35. Todavia, Aristóteles diz que os antigos reis de
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Esparta concediam de bom grado o direito de cidadania (Política, II, 9, 12).
(13) Demóstenes, In Neaeram, 89, 91, 92, 113, 114.
(14) Plutarco, Sólon, 24. Cícero, Pro Caecina, 34.
(15) Aristóteles, Política, III, 1, 3. Platão, Leis, VI.
(16) Demóstenes, In Neaeram, 49. Lísias, In Pancleonem, 2, 5, 13. Pólux,
VIII, 91. Harpocrácio, v. Polémarchos.
(17) Xenofonte, De vectigal, II, 6. O estrangeiro podia obter, por favor
individual, o que o direito grego chamava de énktesis, e o direito romano de
jus commercii.
(18) Demóstenes, In Neaeram, 16. Aristófanes, Aves, 1652, Aristóteles, Polit.,
III, 3, 5. Plutarco, Péricles, 37. Pólux, III, 21. Ateneu, XIII, 38. Tito Lívio,
XXXVIII, 36 e 43. Gaio, I, 67. Ulpiano, V, 4-9. Paulo, II, 9. Era necessária
lei especial da cidade para dar aos habitantes de outra cidade a epighamía ou o
connubium.
(19) Ulpiano, XIX, 4. Demóstenes, Pro Phorm., 6; In Eubulidem. 31.
(20) Cícero, Pro Archía, 5. Gaio, II, 110.
(21) Pausânias, VIII, 43.
(22) Digesto, liv. XI, tít. 7, 2; liv. XLVII, tít. 12, 4.
(23) Harpocrácio, v. Prostátes. Pólux, III, 56. Licurgo, In Leocratem, 21.
Aristóteles, Política, III, 1, 3.
(24) Sobre a atimía, em Atenas, vide Ésquines, In Timarchum, 21: Andócidas,
De mysteriis, 73-80; Plutarco, Fócion, 26, 33, 34, 37. Sobre a atimía, em
Esparta, Heródoto, VII, 231; Tucídides, V, 34; Plutarco, Agesilau, 30. Em
Roma existia a mesma pena, designada pelas palavras infamia ou tribu
movere. Tito Lívio, VII, 2; XXIV, 18; XXIX, 37; XLII, 10; XLV, 15; Cícero,
Pro Cluentio, 43; De oratore, II, 67; Valério Máximo, II, 9, 6; Ps. Asconius
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
ed. Orelli, p. 103; Digesto, liv. III, tít. 2. Dionísío, XI, 63, traduz infames por
átimos e Díon Cássío, XXXVIII, 13, traz tribu movere por atimázein.
(25) Ésquines, In Timarchum. Lísias, In Andocidem, 24.
(26) Plutarco, Agesilau, 30. Lísias, In And., 24. Demóstenes, In Midiam, 92.
O discurso contra Neera, 26-28, observa que o átimos não era admitido nem
para depor em justiça.
(27) Em Esparta, não podia nem comprar, nem vender, nem contrair
casamento regular, nem casar a filha com um cidadão. Tucídides, V, 34.
Plutarco, Agesilau, 30.
Livro III - Cap. XIII
(1) Daí a fórmula de julgamento pronunciada pelo jovem ateniense: Amynó
ypèr tõn hierõn. Pólux, VIII, 105. Licurgo, In Leocratem, 78.
(2) Cícero, Pro domo, 18. Tito Lívio, XXV, 4. Ulpiano, X, 3.
(3) Festo, ed. Müller, p. 2.
(4) Heródoto, VII, 231.
(5) Sófocles, Édipo Rei, 229-250. O mesmo acontecia com a atimia, que
era uma espécie de exílio doméstico.
(6) Platão, Leis, p. 881.
(7) Ovídio, Tristes, I, 3, 4.
(8) Tito Lívío, III, 58; XXV, 4. Dionísio, XI, 46. Demóstenes, In Midiam, 43.
Tucídides, V, 60. Plutarco, Temístocles, 25. Pólux, VIII, 99. Essa regra foi
por vezes suavizada: em certos casos, os bens podiam ser deixados ao exilado,
ou transmitidos a seus filhos, Platão, Leis, IX, p. 877. Aliás, não é necessário
confundir em nada o ostracismo com o exílio; o primeiro não acarretava o
confisco dos bens.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(9) Institutas de Justiniano, I, 12, 1. Gaio, I, 128. Do mesmo modo, o exilado
não ficava mais sob o poder do pai (Gaio, ibidem). Rompidos os laços de
família, desapareciam os direitos de hereditariedade.
(10) Vide em Dionísio, VIII, 41, os adeuses de Coriolano a sua mulher; Não
tens mais marido; oxalá possas encontrar outro, mais feliz do que eu! E
acrescenta que seus filhos não têm mais pai. Não se trata de simples
declamação retórica: é a expressão do direito antigo.
(11) Horácio, Odes, III, 5. As palavras capitis minor explicam-se pela
capitis diminutio do direito romano, que era a conseqüência do exílio. cf.
Gaio, I, 129. Régulo, que era prisioneiro sob palavra, era legalmente servus
hostius, segundo a expressão de Gaio (ibidem), e, por conseqüência, não tinha
mais direitos de cidadão nem de família; vide ainda Cícero, De officiis, III, 27.
(12) Tucídides, I, 138.
(13) É o pensamento expresso por Eurípides, Electra, 1315; Fenic. 388, e
Platão, Criton, p. 52.
Livro III - Cap. XIV
(1) Pólux, III, 21, lei citada em Ateneu, XIII, 38. Demóstenes, In Neaeram 16.
Plutarco, Péricles, 37.
(2) Lísias, De antiqua reip. forma, 3. Demóstenes, Pro corona, 91. Isócrates,
Platale, 51. Gaio, I, 67. Ulpiano, V, 4. Tito Lívio, XLIII, 3; XXXVIII, 36.
(3) Plutarco, Teseu, 25. Platão, Leis, VIII, p. 842. Pausânias, passim. Pólux, I,
10. Boeckh, Corp. inscript., t. II, p. 571 e 837. A linha dos limites sagrados
do ager romanus existia ainda no tempo de Estrabão, e sobre cada uma dessas
pedras os sacerdotes ofereciam anualmente um sacrifício (Estrabão, V, 3, 2).
(4) É bastante claro que não falamos aqui senão da idade antiga das cidades.
Esses sentimentos, com o tempo, tornaram-se muito fracos.
Livro III - Cap. XV
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(1) Dionísio, X, 16.
(2) Macróbio, Saturnales, II, 9.
(3) Tito Lívio, XLII, 57; XLV, 34.
(4) Plutarco, Agesilau, 23; Apotegmas dos Lacedemônios. O Próprio Aristides
não faz exceção; parece haver professado que a justiça não tinha força de uma
cidade para outra; vide o que diz Plutarco, Vida de Aristides, c. 25.
(5) Tucídides, III, 50; III, 68.
(6) Tito Lívio, VI, 31; VII, 22.
(7) Tito Lívío, II, 34; X, 15. Plínio, Hist. Nat., XXXV, 12.
(8) Eurípides, Troianas, 25-28. Às vezes o vencedor levava os deuses
consigo. Outras vezes, quando se estabelecia na terra conquistada, arrogava-se
o direito de continuar o culto aos deuses ou aos heróis do país. Tito Lívio
conta que os romanos, senhores de Lanúvio lhes restituíram seus cultos,
prova de que, pelo simples fato da conquista, os romanos lho haviam tirado; e
puseram apenas esta condição: que teriam o direito de entrar no templo de
Juno Lanuvina (Tito Lívio, VIII, 14).
(9) Os vencidos perdiam o direito de propriedade sobre suas terras. Tucídides,
I, 98; III, 50; III, 58. Plutarco, Péricles, 11. Sículo Flaco, De cond. agror.,
nos Gromatici, ed. Lachmann, p. 138. Siculo Flaco, p. 136. Cícero, In Verrem,
II, III, 6; De lege agraria, I, 2; II, 15. Apiano, Guerras Civis, I, 7. É em virtude
desse princípio que o solum provinciale pertencia por direito ao povo romano;
Gaio, II, 7.
(10) Tito Lívio, I, 38; VII, 31; XXVIII, 34. Políbio, XXXVI, 2. Encontra-se a
fórmula de oferecimento também em Plauto, Anfitrião, v. 71, 101.
(11) Iliada, III, 245-301.
(12) Tucídides, V, 47, Cf. Xenofonte, Anábase, II, 2, 9.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(13) Tucídides, II, 71.
(14) Tucídides, V, 47.
(15) Idem, V, 19.
(16) Virgílio, XII, v. 13, 118-120, 170-174, 200-215. Cf. VIII, 641.
(17) Tito Lívio, IX, 5. O próprio historiador, em outro lugar, I, 24, dá a
descrição completa da cerimônia, e parte da precatio. A mesma se encontra
também em Políbio, III, 25.
(18) Cícero, De nat. deorum. III, 19.
(19) Tucídides, II, 71.
(20) Idem, V, 23. Plutarco, Teseu, 25, 33.
(21) Tito Lívio, VIII, 14.
(22) Pausânias, V, 15, 12.
(23) Por isso Atenas orava por Quios, e reciprocamente. Vide Aristófanes,
Aves, v. 880, e um curioso fragmento de Teopompo, citado pelo escoliastes
sobre o mesmo verso.
(24) Virgílio, Eneida, III, 15. Cf. Tito Lívio, I, 45.
(25) Tito Lívío, V, 50. Aulo Gélio, XVI, 13.
Livro III - Cap. XVI
(1) Pausânias, VIII, 53.
(2) Heródoto, I, 143.
(3) Estrabão, VIII, 7, 2.
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(4) Heródoto, I, 148. Estrabão, XIV, I. 20. Diodoro, XV, 49.
(5) Heródoto, I, 144. Aristides de Mileto, nos Fragmenta hist. graec., ed.
Didot, t. IV, p. 324.
(6) Pausânias, IX, 34.
(7) Idem, VII, 24.
(8) Estrabão, VIII, 6, 14. Com o tempo introduziram-se mudanças; os
argianos tomaram o lugar de Nauplia na cerimônia sagrada, e os lacedemônios
o de Prásias.
(9) Tucídides, III, 104. Essa anfictionia foi restabelecida no século quinto por
Ateneu, mas com espírito completamente diverso,
(10) Ésquines, De falsa legat., 116, enumera os povos que participavam da
posse do templo; eram os tessálios, os beócios, os dórios de tetrápolis, os
jônios, os perrebos, os magnetos, os dólopes, os lócridas, os eteus, os ftiótidas,
os maleses e os focianos. Esparta aparecia como Colônia de Dórida, Atenas
como parte do povo jônio. Cf. Pausânias, X, 8; Harpocrácio, v.
Amphictyónes.
(11) Estrabão, IX, 5, 17.
(12) Idem, IX. 3, 6. Meineke pensou que essa passagem estava interpolada, e
tirou-a de sua edição. Certamente é da autoria de algum antigo, e, muito
provavelmente, de Estrabão. Aliás, o mesmo pensamento é expresso por
Dionísio de Halicarnasso, IV, 25.
(13) Platão, Leis, XII, p. 950.
(14) Tucídides, III, 58; III, 59; V, 18.
(15) Aristófanes, Lysistrata v. 1130 e seg.
(16) Muito tarde, e no tempo de Filipe, de Macedônia, é que os anfictiões
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ocuparam-se dos interesses políticos.
(17) Dionísio, IV, 49. Varrão, VI, 25, Plínio, H. N., III, 9, 69. Cf. Tito Lívio,
XLI, 16. Dionísio, IV, 49.
(18) Tito Lívio, V. 1.
(19) Etymologicum magnum, v. Prytanéia; Heródoto, I, 136.
(20) Heródoto, I, 146; Tucídides, I, 24; VI, 3-5; Diodoro, V, 53, 50, 81, 83,
84; Plutarco, Timoleão.
(21) Tucídides, III, 34; VI, 4. Varrão, De língua. lat., V, 143.
(22) Heródoto, VII, 51; VIII, 22, chama os atenienses de pais dos jônios.
(23) Esse pensamento é muitas vezes expresso pelos antigos: Políbio, XII, 10;
Dionísio, III, 7; Tito Lívio, XXVII, 9; Platão, Leis, VI; Tucídides, I, 38.
(24) Políbio, XXII, 7, 11. Plutarco, Timoleão, 15.
(25) Tucídides, VI, 4. Políbio, IX, 7. Estrabão, IV, 1, 4.
(26) Heródoto, I, 147; VII, 95.
(27) Tucídides, I, 25; escoliastes de Aristófanes, Nuvens, 385; Isócrates,
Panegírico, 7, 31.
(28) Diodoro, XII, 30; Tucídides, VI, 3.
(29) Varrão, De lingua lat., V. 144; Dionísio, II, 52; Plutarco, Coriolano, 28.
(30) Escoliastes de Tucídides, I, 25.
(31) Esse laço político, apenas tentado por Corinto (Tucídides I, 56), não se
constituiu verdadeiramente senão nas clerouquias de Atenas e nas colônias de
Roma; umas e outras são de data relativamente recente, e não vamos tratar
delas aqui.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
Livro III - Cap. XVII
(1) Quanto à procissão das tensae, vide Títo Lívio, V, 41; Suetônio,
Vespasiano, 5. Festo, ed. Müller, p. 364.
(2) Tito Lívio, XXXIV, 55; XL, 37; Plínio, XXXII, 2, 10.
(3) Plauto, Anfitrião, II, 2, 145; Ovídio, (Fastos, V, 421 e seg.) descreve os
ritos usados para afastar os fantasmas; deve-se levantar à meia-noite,
atravessar a casa descalço, estalar o dedo médio contra o polegar, colocar
favas pretas na boca, e lançá-las à terra, voltando a cabeça e dizendo: Eis o
que te dou; por estas favas eu me resgato. Os espíritos recolhem as favas,
e, satisfeitos, vão-se embora. Este era o antigo rito.
(4) Juvenal, Sat., X, 55. Disso encontramos testemunhas nas pequenas placas
de chumbo encontradas em Delfos, por Carapanos.
(5) Cícero, De divin., I, 2. Valério Máximo, II, 2, 1.
(6) Tito Lívio, XXIV, 10; XXVII, 4; XXVIII, 11, et alias, passim.
(7) Vide, entre outros, as fórmulas que trazem Catão, De re rust., 160, e
Varrão, De re rust., II, 1; I, 37. Cf. Plínio, H. N., XXVIII, 2-5 (4-23). A lei
das Doze Tábuas castiga o homem qui frugis excantassit (Plínio, XXVIII, 2,
17; Sérvio, ad Eclogas, VIII, 99; Cf. Cícero, De rep., IV, 10).
(8) Tito Lívio, V, 23; id., X, 7. Plínio, H. N., XXXIII, 7, 36. Dionísio, II. 34;
V, 47. Apiano, Guerras Púnicas, 66. Cf. Juvenal, X, 38.
(9) Heródoto. VI, 106: À notícia do desembarque dos persas, os espartanos
quiseram socorrer os atenienses; mas era-lhes impossível fazê-lo de imediato,
pois não queriam violar a regra (tòn nómon. a regra religiosa), e declararam
que não iniciariam a luta senão no dia em que a lua estivesse em sua
plenitude. O historiador não declara que isso foi simples pretexto.
Devemos julgar os antigos de acordo com suas idéias, e não de acordo com as
nossas.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(10) Xenofonte, Resp. at., III, 2. Sófocles diz que Atenas é a mais piedosa das
cidades (Édipo em Colona, 1007). Pausânias nota, I, 24, que os atenienses
davam mais atenção que os demais povos a tudo o que dizia respeito ao culto
dos deuses.
(11) Aristófanes, Nuvens, 305-309.
(12) Platão, Alcibíades, II, p. 148.
(13) Plutarco, Sólon, 21.
(14) Vide o que Isócrates diz da fidelidade dos antigos aos velhos ritos,
Areopagítica, 29-30. Cf. Lísias, Adv. Nicomach, 19. Demóstenes lembra
também o velho princípio que exige que os sacrifícios sejam feitos de acordo
com os ritos antigos, sem que nada fosse omitido ou modificado (In Neaeram,
75).
(15) Plutarco, Teseu, 20, 22, 23.
(16) Platão, Leis, VII, p. 800. Filocoro, Fragmentos, 183. Xenofonte,
Helênicas, I, 4, 12.
(17) Aristófanes, Paz, 1084.
(18) Tucídides, II, 8. Platão também fala dos sacrificadores ambulantes, e
dos adivinhos que batiam às portas dos ricos (Política, II).
(19) Aristófanes e o escoliastes, Aves, 721. Eurípides, Íon, 1189.
(20) Aristófanes, Aves, 596.
(21) Aristófanes, Aves, 718. Xenofonte, Memoráveis, I, 1, 3: Eles acreditam
na adivinhação, consultam as aves, as vozes, os sinais, as entranhas das
vítimas. Xenofonte assegura que Sócrates acreditava nos áugures, e
recomendava o estudo da predição: ibidem, I, 1, 6; IV, 7, 10. Ele próprio era
muito supersticioso; acreditava nos sonhos (Anábase, III, 1; IV, 3); consultava
as entranhas das vítimas (ibid., IV, 3), e estava rodeado de adivinhos (ibid., V,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
2, 9; VI, 4, 13). Vide em Anábase (III, 2) a cena do espirro.
(22) É a propósito do próprio Péricles que Plutarco nos traz esse detalhe
(Plut., Péricles, 37, de acordo com Teofrasto).
(23) Aristófanes, Acarnianos, 171.
(24) Plutarco, Teseu, 22.
(25) Aristófanes, Aves, 436.
(26) Licurgo, In Leocratem, 1. Aristófanes, Cavaleiros, 903, 999, 1171, 1179.
(27) Plutarco, Nícias, 4, 5, 6, 13.
(28) Plutarco, Nícias, 23. Tucídides, VI, VII. Diodoro, XII, XIII.
Livro III - Cap. XVIII
(1) Tucídides, I, 105; Plutarco, Fócion, 24; Pausânias, I, 26. Xenofonte,
Helênicas, VI, 4, 17.
(2) Aristóteles, Econom., II. O autor cita os exemplos de Bizâncio, de Atenas,
de Lâmpsaco, de Heracléia de Pont., de Quios, de Clasômenes, de Éfeso.
(3) Pólux, III, 48. Cf. VIII, 40. Plutarco, Lisandro, 30. Em Roma, um
decreto dos censores atingiu os celibatários com multa, Valério Máximo, II, 9;
Aulo Gélio, I, 6; II, 15. Cícero diz ainda: Censores... coelibes esse prohibento
(De legib., III, 3).
(4) Plutarco, Licurgo, 24. Pólux, VIII, 42. Teofrasto, fragmento, 99
(5) Ateneu, X, 33. Eliano, H. V., II, 38. Teofrasto, fr. 117.
(6) Xenofonte, Resp. Lac., 7. Tucídides, I, 6. Plutarco, Licurgo, 9, Heracléia
de Pont., Fragmenta, ed. Didot., t. II, p. 211. Plutarco, Sólon, 21.
(7) Ateneu, XIII, 18. Plutarco, Cleômenes, 9. Os romanos não
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
acreditavam que se devia deixar a cada um a liberdade de casar, de ter filhos,
de viver a seu modo, de fazer festas, de seguir os próprios gostos, sem se
submeter a uma inspeção ou julgamento. Plutarco, Catão, 23.
(8) Cícero, De legib., III, 8; Dionísio, II, 15; Plutarco, Licurgo, 16.
(9) Plutarco, Sólon, 20.
(10) Aristófanes, Nuvens, 960-965.
(11) Platão, Leis, VII.
(12) Aristófanes, Nuvens, 966-968. O mesmo se passava em Esparta:
Plutarco, Licurgo, 21.
(13) Xenofonte, Memor., I, 2, 31. Diógenes Laércio, Teofr., c. 5. Essas duas
leis não duraram muito tempo, mas não deixam de provar a onipotência que se
reconhecia ao Estado em matéria de instrução.
(14) Xenofonte, Memor., I, 1. Sobre a regra grafé asebéias, vide Plutarco,
Péricles, 32; o discurso de Lísias contra Andócides; Pólux, VIII, 90.
(15) Pólux, VIII, 46. Ulpiano, Schol. in Demosth., in Midiam.
(16) Aristóteles, Política, III, 8, 2; V, 2, 5. Diodoro, XI, 87. Plutarco,
Aristides, 1; Temístocles, 22. Filócoro, ed. Didot, p. 396. Escoliastes de
Aristófanes, Cavaleiros, 855.
(17) Plutarco, Publícola, 12.
(18) Cícero, De legib., III, 3.
Livro IV - Cap. I
(1) Cícero, De oratore, I, 39; Aulo Gélio, V, 13.
(2) Diodoro, I, 28; Pólux, VIII, 3; Etymologicum magnum, p. 395.
Dionísio de Halicarnasso, II, 9; Tito Lívio, X, 6-8; IV, 2; VI, 41.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(3) Harpocrácio, v. Zeus erkeios, de acordo com Hipérides e Demétrio de
Falero.
(4) Aristóteles, Política, V, 5, 3.
(5) Aulo Gélio, XV, 27. Veremos que a clientela transformou-se mais tarde;
aqui não falamos senão da clientela dos primeiros séculos de Roma.
(6) Dionísio, II, 10.
(7) Tucídides, II, 15-16, descreve esses costumes antigos que ainda subsistiam
na Ática em seu tempo, e que somente foram abandonados no princípio da
guerra do Peloponeso.
Livro IV - Cap. II
(1) Tito Lívio, II, 64.
(2) Tito Lívio, II, 56.
(3) Dionísio, VI, 46; VII, 19; X, 27.
(4) Tito Lívio, XXIX, 27. Cícero, Pro Murena, I. Macróbio (Saturn., I, 17)
cita um velho oráculo do adivinho Márcio, que dizia: Praetor qui jus populo
plebique dabit. Não nos devemos surpreender se os escritores antigos nem
sempre levaram em conta essa distinção essencial entre populus e plebe, pois
tal distinção já não existia em seu tempo. Nos tempos de Cícero já de há
muito a plebe fazia parte do populus. Mas as antigas fórmulas continuavam
com vestígio da época em que as duas populações não se confundiam.
(5) Aulo Gélio, XIII, 14; Tito Lívio, I, 33.
(6) A existência das gentes plebéias só é constatada nos três últimos séculos
da república. A plebe então se transformou, e, ao mesmo tempo em que
conquistava os direitos dos patrícios, adotava também seus costumes, e se
modelava à sua Imagem.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(7) Varrão, De ling. lat., V, 55; Dionísio, II, 7.
(8) Dionísio, X, 32; Cf. Tito Lívio, III, 31.
(9) Dionísio, IV, 43.
(10) Dionísio, VI, 89. A expressão oi pollói é a mais oomumente usada por
Dionísio para designar a plebe.
Livro IV - Cap. III
(1) Aristóteles, Política, III, 9, 8. Plutarco, Quest. rom., 63.
(2) Estrabão, XIV, 1, 3. Diodoro, IV, 29.
2°
(3) Tucídides, I, 18. Heródoto, I, 65.
(4) Estrabão, VIII, 5. Plutarco, Licurgo, 2.
(5) Plutarco, Licurgo, 5. Cf. ibid., 8.
(6) Aristóteles, Política, V, 10, 3, ed. Didot, p. 589. Heráclides nos
Fragmentos dos Historiadores Gregos, col. Didot, t. II, p. 210.
(7) Aristóteles, Política, III, 1, 7.
(8) Xenofonte, Resp. Lac., 8, 11, 15; Helênicas, II, 4, 36; VI, 4, 1. Os éforos
tinham a presidência da assembléia: Tucídides, I, 87. Decretavam o
alistamento dos soldados: Xenofonte, Resp. Lac., 11; Helên., VI, 4, 17.
Tinham o direito de julgar os reis, de prendê-los, de multá-los: Heródoto, VI,
85, 82; Tucídides, I, 131; Plutarco, Licurgo, 12; Ágis, 11; Apophth. lac., p.
221. Aristóteles chama o eforato de archè kyría ton meghíston (Política, II, 6,
14). Os reis haviam conservado algumas atribuições militares, mas muitas
vezes vêem-se os éforos dirigindo-os em suas expedições, ou chamando-os
para Esparta (Xenofonte, Hel., VI, 4, 1; Tucídides, V, 63; Plutarco, Agesilau,
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
10, 17, 23, 28; Lisandro, 23).
(9) Heródoto, VI, 56, 57; Xenofonte, Resp. Lac., 14. Aristóteles, Política, III,
3, 2.
(10) Xenofonte, Resp. Lac., 13-15. Heródoto, VI, 56.
(11) Heródoto, V, 92. Aristóteles, Polit., V, 10. Isócrates, Nicocles, 24.
Plutarco, De unius in rep. dominatione, c. 3.
(12) Plutarco, Teseu, 25; Aristóteles, citado por Plutarco, ibid.; Isócrates,
Helena, 36; Demóstenes, In Neaeram, 75. A lenda de Teseu certamente havia
sido alterada com o tempo, sobretudo por influência do espírito democrático.
(13) Plutarco, Teseu, 25 e 32. Diodoro, IV, 62.
(14) Vide os Mármores de Paros e comparai-o a Pausânias. I, 3. 2; IV, 5, 10;
VII, 2, 1; Platão, Menexenes, p. 238 c; Eliano, II, V., V, 13.
(15) Pausânias, IV, 5, 10.
(16) Heráclides do Ponto, nos Fragmenta, t. II, p. 208; Nicolau de Damasco,
Fragm., 51. Suidas, v. Hippoménes. Diodoro, Fragm., liv. VIII.
(17) Pausânias, II, 19.
(18) Heródoto, IV, 161. Diodoro, VIII, Fragm.
(19) Diodoro, VII; Heródoto, V, 92; Pausânias, II, 3 e 4. A gens dos baquíadas
compreendia cerca de 200 membros.
4°
(20) Cícero, De republ., II, 8.
(21) Tito Lívio, I, 15.
(22) Tito Lívio, I, 17. Cícero, De rep., II, 12.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(23) Cícero, De rep., II, 13. Cf. Ibidem, II, 17 e II, 20. Se esses homens, já
investidos da realeza, ainda têm necessidade de propor uma lei que lhes
conceda o imperium, é porque realeza e imperium são coisas distintas. É
necessário observar-se que a palavra imperium não designava exclusivamente
o comando militar, mas se aplicava também à autoridade civil e política; vide
exemplos desse significado: Tito Lívio, I, 17; I, 59; XXVI, 28; XXVII, 22;
XXXII, 1; Cícero, De rep., II, 13; Tácito, Annales, VI, 10; Díon Cássio,
XXXIX, 19, LII. 41.
(24) A família Júnia era patrícia: Dionísio, IV, 60. Os Júnios que encontramos
mais tarde na história são plebeus.
(25) Dionísio, V, 26, 53, 58, 59, 63, 64. Tito Lívio não menciona esses fatos,
mas alude a eles quando diz que os patrícios foram obrigados a fazer
concessões à plebe, inservire plebi (II, 21).
Livro IV - Cap. IV
(1) Tucídides, II, 15-16.
(2) Píndaro, Isth., I, 41; Pausânias, VIII, 11; IX, 5.
(3) Plutarco, Quest. gr., 1.
(4) Aristóteles, Política, V, 5, 2.
(5) Idem, ibid., III, 9, 8; VI, 3, 8.
(6) Idem, ibid., V, 5, 4.
(7) Hippóbotai, Heródoto, V, 77. Plutarco, Péricles, 23. Estrabão, X, 1, 8.
Aristóteles, Política, IV, 3, 2.
(8) Heródoto, VII, 155. Diodoro, VIII, 5. Dionísio. VI, 62.
Livro IV - Cap. V
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(1) A divisão do patrimônio já é de lei em Roma nos meados do século V; a
lei das Doze Tábuas admite a actio familiae erciscundae (Gaio, no Digesto,
X, 2, 1).
(2) Aristóteles, Política, V, 5, 2, ed. Didot, p. 571,
(3) Tito Lívio, II, 1.
(4) Vide Belot, História dos Cavaleiros Romanos, liv. I, c. 2.
(5) Tito Lívio, II, 1. Festo, ed. Müller, p. 41. Durante vários séculos
distinguiram-se os patres dos conscripti; vide Plutarco, Questões Romanas,
58.
Livro IV - Cap. VI
(1) Plutaico, Rômulo, 13. Dionísio, II, 9-10.
(2) Sobre esse ponto, veja-se um fato relatado por Plutarco na Vida de Mário,
5. Cf. Cícero, De oratore, I, 39.
(3) Tito Lívio, XXXIX, 19.
(4) Dionísio, V, 20; IX, 5. Tito Lívio, II, 16.
(5) Festo, v. Patres, ed. Müller, p. 246.
(6) Catão, De re rust., 143. Columela XI, 1, 19.
2°
(7) Essa palavra é empregada no sentido de serviçal por Hesíodo, Opera et
dies, v. 563, e na Odisséia, IV, 644. Dionísio de Halicarnasso, II, 9, compara
os antigos tetas de Atenas aos clientes de Roma.
(8) Plutarco, Sólon, 13. Pólux IV, 165; Idem VII, 151.
(9) Sólon, edição Bach, p. 104, 105. Plutarco, Sólon, 15.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(10) Plutarco fala de hóroi. Nos tempos de Plutarco, e já nos tempos de
Demóstenes, havia hóroi hipotecárias. Na época de Sólon, o hóros não era e
não podia ser senão o terminus, emblema e garantia do direito de propriedade.
No caso presente, o hóros marcava, sobre o campo ocupado pelo teta, o
domínio eminente do eupátrida.
(11) A propriedade ainda pertencia à família mais que à pessoa. Somente mais
tarde é que o direito de propriedade se transformou em direito individual. Só
então a hipoteca passou a ser usada; mas não era adotada no direito ateniense
senão pelo subterfúgio da venda sob condição de resgate.
(12) Aristóteles, Política, II, 9, 2.
3°
(13) O liberto tornava-se cliente. A identidade desses dois termos é assinalada
por uma passagem de Dionísio, IV, 23.
(14) Digesto, liv. XXV, tít., 2, 5; liv. L, t. 16, 195. Valério Máximo, V, 1, 4.
Suetônio, Cláudio, 25. Díon Cássio, LV. A legislação era a mesma em
Atenas; vide Lísias e Hipérides, em Harpocrácio, v. Apostasíou. Demóstenes,
In Aristogitonem e Suidas, v. Anan kãion. Os deveres dos libertos são
enumerados em Platão, Leis, XI. p. 915. É bastante claro, todavia, que nos
tempos de Platão essas velhas leis não eram mais observadas.
(15) Festo, v. Patres.
(16) Institutas, de Justiniano, III, 7.
(17) Tito Lívio, II, 16, 64.
(18) Tito Lívio, II, 56.
(19) Dionísio, VII, 19; X, 27.
(20) Tito Lívio, II, 34.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(21) Tito Lívio, VI, 48.
(22) Cícero, De oratore, I, 39.
Livro IV - Cap. VII
(1) Algumas vezes o nome de rei foi conferido a esses chefes populares,
quando descendiam de famílias religiosas. Heródoto, V, 92.
(2) Heródoto, V, 92. Aristóteles, Polit., V, 9, 22. Diodoro, VII, 2. Pausânias,
II, 3-4. Nicolau de Damasco, fr. 58.
(3) Heródoto, I, 20; V, 67, 68; Aristóteles, Polit., III, 8, 3; V, 4, 5; V, 8, 4;
Plutarco, Sólon, 14.
(4) Heródoto, VII, 155. Diodoro, XIII, 22. Aristóteles, V, 2, 6.
(5) Aristóteles notou que em todas as cidades antigas, onde a cavalaria havia
sido a arma dominante, a constituição era oligárquica: Política, IV, 3, 2.
(6) Varrão, De ling. lat., VI, 13.
(7) Dionísio, IV, 5. Platão, Hiparco. Harpocrácio, v. Ermái.
(8) Heráclides, nos Fragmentos dos Historiadores Gregos, col. Didot, t. II, p.
217.
(9) Excetuamos Roma, na qual a nobreza, ao se transformar, conservou seu
prestígio e força.
(10) Plutarco, Sólon, 12. Diógenes Laércio, I, 110. Cícero, De Leg., II, 11.
Ateneu, XIII, 76.
(11) Sobre as quatro novas classes, e sobre os timémata, Plutarco, Sólon, 18;
Aristóteles, citado por Harpocrácio, v. Hippas; Pólux; VIII, 129.
(12) Eurípides, Fenícias. Aleixo, em Ateneu, IV, 49.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(13) Quanto à aliança de Pisístrato com as classes inferiores, vide Heródoto, I,
59; Plutarco, Sólon, 29, 30; Aristóteles, Política, V, 4, 5, ed. Didot, p. 571.
(14) Heródoto, I, 59, e Tucídides, VI, 54, afirmam que Pisístrato conservou a
constituição e as leis estabelecidas, isto é, as leis e a constituição de Sólon.
(15) Hsródoto. V, 63-65; VI, 123; Tucídides, I, 20; VI, 54-59. Esses dois
historiadores mostram muito claramente que a tirania foi deposta, não por
Armódio e Aristógiton, mas pelos espartanos. A fábula ateniense alterou os
fatos.
(16) Heródoto, V, 66-69, dá idéia muito nítida da luta de Clístenes contra
Iságoras, e de sua aliança com as classes inferiores; cf. Isócrates, c. 232.
(17) Heródoto, I, 66, 69.
(18) Ésquines, In Ctesiph., 30. Demóstenes, In Eubul. Pólux. VIII, 19, 95, 107.
(19) Aristóteles, Política, III, 1, 10. Escoliastes de Ésquines, ed. Didot., p. 511.
(20) As antigas fratrias e os ghéne não foram suprimidos; pelo contrário,
subsistiram até o fim da história grega; delas falam os oradores (Demóst, In
Macart., 14, 57; In Neaeram, 61; In Eubulid., 23, 54; Iseu, De Cironis Her.,
19). As inscrições mencionam ainda seus atos e decretos (Boeckh, t. I, p. 106;
t. II, p. 650. Ross, Demi, p. 24; Kohler. n.°s 598, 599, 600); mas essas fratrias
e esses ghéne não passavam de classes religiosas, sem nenhum valor na ordem
política.
(21) Heródoto, V, 67, 68. Aristóteles, Política, VII, 2, 11. Pausânias, V, 9.
(22) Aristóteles, Política, VI, 2, 11, ed. Didot, p. 594, 595.
3°
(23) Tito Lívio, I, 47. Dionísio, IV, 13. Já os reis precedentes haviam dividido
as terras tomadas ao inimigo; mas não é certo que tenham incluído a plebe
nessa divisão.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(24) Dionísio, IV, 13; IV, 43.
(25) Idem, VI, 26.
(26) Os historiadores modernos contam ordinariamente seis classes. Na
realidade havia apenas cinco: Cícero, De republ., II, 22; Aulo Gélio, X, 28.
Por uma parte os cavaleiros, por outra os proletários, estavam fora das classes.
Notemos, aliás, que a palavra classis não tinha, na linguagem antiga,
sentido análogo ao do nosso vocábulo classe; significava corpo de tropa
(Fábio Pictor, em Aulo Gélio, X, 15; ibid., I, 11; Festo, ed. Müller, p. 189 e
225). Isso indica que a divisão estabelecida por Sérvio foi mais militar do que
política.
(27) Dionísio de Halicarnasso descreve em algumas palavras o aspecto dessas
assembléias centuriais: VII, 59; IV, 84.
(28) Parece-nos incontestável que os comícios por centúrias não eram nada
mais que a reunião do exército romano. Para provar nossa idéia temos os
seguintes fatos: 1.°: essa assembléia é muitas vezes chamada de exército pelos
escritores latinos: Varrão, VI, 93; Tito Lívio, XXXIX, 15; Ampélio, 48; 2.°:
porque esses comícios eram convocados exatamente como o exército quando
entrava em campanha, isto é, ao som da trombeta (Varrão, V, 91), dois
estandartes flutuando sobre a cidadela, um vermelho, para chamar a
infantaria, outro verde, para a cavalaria; 3.°: esses comícios eram reunidos
sempre no campo de Marte, porque o exército não podia reunir-se no interior
da cidade (Aulo Gélio, XV, 27); 4.°: essas assembléias eram compostas de
todos os qus usavam armas (Díon Cássio, XXXVII, 28) e parece até que a
princípio todos compareciam armados (Dionísio, IV, 84, in fine); 5.°: o povo
era distribuído por centúrias, infantaria de um lado, cavalaria de outro; 6.°:
cada centúria tinha à frente seu centurião e sua insígnia (Dionísio, VII, 59); 7.
°: os sexagenários, que não faziam parte do exército, não tinham mais direito
de votar nesses comícios, pelo menos nos primeiros séculos: Macróbio, I, 5;
Festo, v. Depontani. Acrescentemos que na antiga língua a palavra classis
significava corpo de tropa, e que a palavra centúria designava uma companhia
militar. A princípio os proletários não compareciam a essa assembléia;
contudo, como era costume que eles formassem no exército uma centúria
dedicada aos trabalhos, eles também poderiam formar uma centúria nesses
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comícios.
(29) Cássio Hémina, em Nônio, liv. II, v. Plevitas.
(30) Varrão, De ling. lat., VII, 105. Tito Lívio, VIII, 28. Aulo Gélío, XX, 1.
Festo, v. Nexuri.
(31) Dionísio, VI, 45; VI, 79.
(32) Tito Lívio, IV, 6. Dionísio, VI, 89, nomeia formalmente os feciais. O
texto desse tratado, que se chamou lex sacrata, conservou-se por muito tempo
em Roma; Dionísio cita trechos do mesmo (VI, 89; X, 32; X, 42); cf. Festo, p.
318.
(33) Tito Lívio, II, 33.
(34) Dionísio, X, 4.
(35) Plutarco, Questões Romanas, 81. Tito Lívio, II, 56, mostra que aos olhos
do patrício o tribuno era um privatus, sine imperio, slne magistratu. É,
portanto, por abuso de linguagem que a palavra magistratus foi aplicada aos
tribunos. O tribunado já estava transformado quando Cícero, em arroubo
oratório, é verdade, chamou-o de sanctissimus magistratus (Pro Sextlo, 38).
(36) Tito Lívio deixa de falar dessa cerimônia no momento da instituição do
tribunado, mas fala dela na época de seu restabelecimento, em 449 (III, 55).
Dionísio assinala com a mesma clareza a intervenção da religião (IX, 47).
(37) Dionísio, VI, 89; IX, 48.
(38) ídem, VI, 89. Zonaras, t. I, p. 56.
(39) Plutarco. Quest. rom., 81.
(40) Dionísio, VI, 89; Tito Lívio, III, 55.
(41) Dionísio, X, 32.
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(42) ídem, VI, 89.
(43) Aulo Gélio, XIII, 12.
(44) Plutarco, Quest. rom., 81.
(45) Aulo Gélio, XV, 27. Dionísio, VIII, 87; VI. 90.
(46) Tito Lívio, II, 56, 12.
(47) Tito Lívio, II, 60. Dionísio, VII, 16. Festo, v. Seita plebis. Entende-se que
falamos apenas dos primeiros tempos. Os patrícios estavam inscritos nas
tribos, mas sem dúvida não figuravam nas assembléias, que se reuniam sem
auspícios ou cerimônias religiosas, cujo valor legal não reconheceram por
muito tempo.
(48) Numerosos documentos atestam que houve uma legislação escrita muito
antes dos decênviros; Dionísio, X, I; III, 36; Cícero. De rep., II, 14;
Pompônio, no Digesto, I, 2. Várias dessas leis antigas são citadas por Plínio,
XIV, 12; XXXII, 2; por Sérvio, ad Eclogas, IV, 43; nas Geórgicas, III, 387;
por Festo, passim.
(49) Tito Lívio, III, 31. Dionísio, X, 4.
(50) Júlio Obsequens, 16.
(51) Tito Lívio, V, 12; VI, 34; VI, 39.
(52) Tito Lívio, VI, 41.
(53) Tito Lívio, IV, 49.
(54) Tito Lívio, VI, 42.
(55) Tito Lívio, X, 6, parece acreditar que esse argumento não passava de
artifício; mas as crenças não estavam tão enfraquecidas nessa época (301
antes de nossa era) que tal linguagem não pudesse ser muito sincera na boca
de muitos patrícios.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(56) As dignidades de rei dos sacrifícios, de flâmines, de sálios e de vestais, às
quais não se dava nenhuma importância política, foram confiadas sem perigo
às mãos do patriciado, que continuou sempre como casta sagrada, deixando
todavia de ser a casta dominante.
Livro IV - Cap. VIII
(1) Tito Lívio, VII, 17; IX, 33, 34.
(2) Gaio, III, 17; III, 24. Ulpiano, XVI, 4. Cícero, De invent., I, 5.
(3) Gaio, no Digesto, X, 2, 1.
(4) Ulpiano, Fragm., X, 1.
(5) Já havia o testamento in procinctu; mas não temos informações bastantes
sobre essa espécie de testamento; talvez fosse para o testamento calatis
comitiis o que a assembléia por centúrias era para a assembléia por cúrias.
(6) Gaio, I, 113-114.
(7) Gaio, I, 111. A coemptio era tão pouco um modo de casamento, que a
mulher podia contratá-lo com outro, além do marido, por exemplo, com o
tutor.
(8) Gaio, I, 117, 118. É fora de dúvida que essa emancipação era apenas
fictícia nos tempos de Gaio; mas, em sua origem, podia ser real. Aliás, o
casamento por simples consensus não era considerado sagrado, não
estabelecendo entre os esposos laço indissolúvel.
(9) Aulo Gélio, XI, 18. Demóstenes, In Leptinem. 158. Porfírio, De
abstinentia. IX.
(10) Demóstenes, In Evergum, 68-71; In Macartatum, 37.
(11) Sólon, ed. Boissonade, p. 105.
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(12) Iseu, De Apollod. hered., 20; De Pyrrhi hered., 51. Demóstenes, In
Macart., 51; In Baeotum de dote, 22-24.
(13) Iseu, De Aristarchi hered., 5; De Cironis her., 31; De Pyrrhi her., 74; De
Cleonymi her., 39. Diodoro assinala, XII, 18, uma lei análoga de Carondas.
(14) Iseu, De Hagniae hereditate, 11-12; De Apollod. hered., 20. Demóstenes,
In Macartatum, 51.
(15) Plutarco, Sólon, 21.
(16) Iseu, De Pyrrhi hered., 68. Demóstenes, In Stephanum, II, 14. Plutarco,
Sólon, 21.
(17) Plutarco, Sólon, 13.
(18) Plutarco, Sólon, 23.
(19) Iseu, De Pyrrhi hered., 8-9. 37-38. Demóstenes, In Onetorem, 7, 8; In
Aphobrum, I, 15; In Baeotum de dote, 6; In Phoenippum, 27; In Neaeram, 51,
52. Não se poderia afirmar que a restituição do dote tenha sido estabelecida
desde os tempos de Sólon; estava em vigor nos tempos de Iseu e de
Demóstenes. Contudo, devemos notar que o antigo princípio, exigindo que o
marido fosse proprietário dos bens trazidos pela mulher, continuava inscrito
na lei (ex.: Dem., In Phoenippum, 27); mas o marido se constituía devedor a
respeito dos kyrioi da mulher, de soma igual ao dote, e empenhava seus bens
como garantia: Pólux, III, 36; VIII, 142; Boeckh, Corpus inscript. gr., n.°s
1037 e 2261.
(20) Plutarco, Sólon, 18.
Livro IV - Cap. IX
(1) Plutarco, Sólon, 25. Segundo Heródoto, I, 29. Sólon, ter-se-ia contentado
em fazer com que os atenienses jurassem que observariam essas leis durante
dez anos.
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(2) Dinarca, In Demosthenem, 71.
Livro IV - Cap. X
(1) Plutarco, Sólon, 1 e 18; Arístides, 13. Aristóteles, citado por Harpocrácio,
às palavras, Híppeis, Thétes. Pólux, VIII, 129. Cf. Iseu, De Apollod. her., 39.
(2) Tito Lívio, I, 43; Dionísio, IV. 20. Aqueles cujo patrimônio não atingia
11.500 asses (asse de uma libra) formavam apenas uma centúria, e não
tinham, por conseqüência, senão um único sufrágio dos 193; tal era, aliás, o
processo da votação, que essa centúria jamais era chamada para votar.
(3) Aristóteles, Política, III, 3, 4; VI, 4. 5; Heráclides, nos Fragmentos dos
Hist. Gr., t. II, p. 217 e 219. Cf. Teógnis, verso 8, 502, 525-529.
(4) Para Atenas, vide Xenofonte, Hiparco, I, 9. Para Esparta, Xenofonte,
Helênicas, VI. 4, 10. Para as cidades gregas em geral, Aristóteles, Política, VI,
4, 3, ed. Didot, p. 597. Cf. Lísias, In Alcebíad., I, 8; II, 7.
(5) São esses os oplitai ek katalógou de que fala Tucídides, VI, 43 e VIII, 24.
Aristóteles, Polít., V, 2, 8. nota que, na guerra do Peloponeso, as derrotas
sofridas nos campos de batalha dizimaram a classe rica de Atenas. Quanto
a Roma, vide Tito Lívio, I, 42; Dionísio, IV, 17-20; VII, 59; Salústio, Jugurta,
86; Aulo Gélio XVI, 10.
(6) Harpocrácio, segundo Aristófanes.
(7) Duas passagens de Tucídides mostram que, ainda em seu tempo, as quatro
classes se distinguiam pelo serviço militar. Os homens das duas primeiras,
pentacosiomedimnos e cavaleiros, serviam na cavalaria; os homens da
terceira, zeugitas, eram hoplitas; o historiador também assinala, como exceção
singular, que eles haviam sido empregados como marinheiros em empresa
urgente (III, 16). Aliás, Tucídides, contando as vítimas da peste, classifica-as
em três categorias: os cavaleiros, os hoplitas, e, enfim, a vil multidão (III, 87).
Pouco a pouco, os tetas passaram a ser admitidos no exército (Tucid., VI,
43; Antiphon, em Harpocrácio. v. Thètes).
(8) Aristóteles, Política, V, 2, 3.
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(9) Vide o que conta Tucídides, IV, 80.
Livro IV - Cap. XI
(1) Dinarca, Adv. Demosthenem, 71.
(2) Não se deve dizer que o magistrado de Atenas era respeitado, e, sobretudo,
temido, como os éforos de Esparta ou os cônsules de Roma. O magistrado
ateniense não somente devia prestar contas ao término do cargo, mas, durante
o exercício de sua magistratura, podia ser destituído por voto popular
(Aristóteles, em Harpocrácio, v. Kyría; Pólux, VIII, 87; Demóstenes, In
Timotheum, 9). Exemplos de semelhantes destituições são muito raros.
(3) Ésquines, In Ctesiph., 2. Demóstenes, In Neaeram, 3. Lísias, In Philon., 2.
Harpocrácio, v. Epilachón.
(4) Ésquines, In Timarch., 23; In Ctesiph.. 2-6. Dinarca, In Aristogit., 14.
Demóstenes, De falsa legat., 70. Cf. Aristófanes, Thesmoph., 25-350. Pólux,
VIII, 160.
(5) Ésquines, In Timarchum, 27-33. Dinarca, In Demosthenem,71.
(6) Isso pelo menos é o que dá a entender Aristófanes, As Vespas, 691.
(7) Aristófanes, Cavaleiros, 1119.
(8) Pólux, VIII, 94. Filócoro, Fragm., col. Didot, p. 497.
(9) Ateneu, X, 73. Pólux, VIII, 52. Vide G. Perrot, História do Direito Público
de Atenas, cap. II.
(10) Vide. sobre esses pontos da constituição ateniense, os dois discursos de
Demóstenes, contra Léptínes e contra Timócrates; Ésquines, In Ctesiphontem,
38-40; Andócides, De mysteriis, 83-84; Pólux, VIII, 101.
(11) Tucídides, III, 43. Demóstenes, In Timocratem.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(12) Acredíta-se que havia 6.000 heliastas para cerca de 18.000 cidadãos; mas
devemos riscar dessa última cifra todos os que ainda não tinham trinta anos,
os doentes, os ausentes, os homens que estavam na guerra, os que haviam sido
atingidos pela atimia, aqueles, enfim, que eram manifestamente incapazes de
julgar.
Livro IV - Cap. XII
(1) Aristófanes, Eccles., 280 e seg.; Aristóteles, Polít., II, 9, 3; Aristófanes,
Cavaleiros, 51, 255; As Vespas, 682,
(2) Xenofonte, Resp. Ath., I, 13; Cf. Aristófanes, Cavaleiros, v. 293 e seg.
(3) Plutarco, Quest. grecq., 18.
(4) Aristóteles, Política, V, 4, 3.
(5) Tucídides, VIII, 21.
(6) Plutarco, Dion, 37, 48.
(7) Políbio, XV, 21, 3.
(8) Políbio, VII, 10, ed. Didot.
(9) Aristóteles, Política, V, 7, 19. Plutarco, Lisandro. 19.
(10) Heráclides do Ponto, em Ateneu, XII, 26. Costuma-se muito acusar a
democracia ateniense de ter dado à Grécia o exemplo de seus excessos e de
suas revoltas. Pelo contrário, Atenas é a única cidade grega conhecida que não
viu dentro de seus muros essa guerra atroz entre ricos e pobres. Seu povo,
inteligente e sábio, compreendera, desde o dia em que teve início a série de
revoluções, que se caminhava para um termo em que somente o trabalho
poderia salvar a sociedade. Atenas, portanto, encorajou-o, e o tornou honroso.
Sólon prescrevera que todo homem que não tivesse trabalho fosse privado dos
direitos políticos. Péricles quis que nenhum escravo pusesse as mãos nas
obras dos grandes monumentos que construía, reservando todo esse trabalho
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
para os homens livres. Aliás, a propriedade estava dividida de tal modo, que
no fim do quinto século contavam-se no pequeno território da Ática mais de
dez mil cidadãos proprietários de imóveis, contra apenas cinco mil que não o
eram (Dionísio de Halic., De Lysia, 32). Atenas, portanto, vivendo sob regime
econômico pouco melhor que o de outras cidades, foi menos perturbada que o
resto da Grécia. A guerra dos pobres contra os ricos existiu ali como em
outros lugares, mas foi menos violenta, e não provocou tão graves desordens;
limitou-se a um sistema de impostos e de liturgias que arruinou a classe rica, e
a um sistema judiciário que a abalou e a esmagou, mas que, pelo menos, não
chegou ao excesso da abolição das dívidas e da distribuição das terras.
(11) Aristóteles, Política, V, 8, 2-3; V, 4, 5.
Livro IV - Cap. XIII
(1) Tucídides, I, 18.
(2) Idem, V. 68.
(3) Plutarco. Licurgo, 8.
(4) Idem, ibid., 5.
(5) Aristóteles, Política, V, 10, 3 (ed. Didot, p. 589).
(6) Aristóteles, Política, II, 6, 18 e 11. Cf. Plutarco, Ágis, 5.
(7) Mirão de Priena, em Ateneu, VI.
(8) Teopompo, em Ateneu, VI.
(9) Ateneu, VI, 102. Plutarco, Cleômenes, 8. Eliano, XII, 43.
(10) Aristóteles, Política, VIII, 6 (V, 6). Xenofonte, Helênicas, V, 3, 9.
(11) Xenofonte, Helênlcas, III, 3, 6.
(12) Idem, ibid., III, 3, 5.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(13) Idem, Resp. Lac., 10.
(14) Demóstenes, In Leptinem, 107.
(15) Aristóteles, II, 6, 15; Demóstenes, In Lept., 107; Plutarco, Licurgo, 26.
(16) Aristóteles, Política, II, 6, 18, qualifica esse modo de eleição de pueril; é
descrito por Plutarco, Licurgo, 26.
(17) Aristóteles, Política, II, 6, 5; V, 6, 7.
(18) Demóstenes, In Leptin., 107. Xenofonte, Gov. da Laced., 10.
(19) Aristóteles, Política, V, 6, 2.
(20) Idem, ibid., V, 1, 5. Tucídides, I, 13, 2.
(21) Aristóteles, Política, II, 6, 14.
(22) Xenofonte, Helênicas, III, 3.
(23) Plutarco, Ágis, 5.
(24) Políbio, XIII, 6; XVI, 12; Tito Lívio, XXXII, 38, 40; XXXIV, 26, 27.
Livro V - Cap. I
(1) Aristóteles, Política, II, 5, 12; IV, 5; IV, 7, 2; VII, 4 (VI, 4).
(2) Pseudo Plutarco, Fortuna de Alexandre, 1.
(3) A idéia da cidade universal é expressa por Sêneca, Ad Marciam, 4; De
tranquillitate, 14; por Plutarco, De exsilio; por Marco Aurélio: Como
Antonino, tenho Roma por pátria; como homem, o mundo.
Livro V - Cap. II
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(1) A origem troiana de Roma era opinião aceita antes mesmo que Roma
mantivesse relações constantes com o Oriente. Um velho adivinho, em
predição que se reportava à segunda guerra púnica,. dava ao romano o epíteto
de trojugena: Tito Lívio, XXV, 12.
(2) Tito Lívio, I, 5 e 7. Virgílio, VIII, Ovídio, Fast., I. 579. Plutarco, Quest.
rom., 76. Estrabão, V, 3, 3. Dionísio, I, 31, 79, 89.
(3) Dionísio. I, 45; I, 85. Varrão, De língua lat., V, 42. Virgílio, VIII, 358.
Plínio. Hist. nat., III, 68.
(4) Dos três nomes das tribos primitivas, os antigos acreditavam que um fosse
latino, outro sabino e o terceiro etrusco.
(5) Dionísio, I, 85. Cf. Juvenal, I, 99; Sérvio, ad Aen., V, 117, 123.
(6) Plutarco, Quest. rom., 76.
(7) Tito Lívio, I, 7; IX, 29.
(8) Bem cedo os romanos afetaram ligar sua origem a Tróia; vide Tito Lívio,
XXXVII, 37; XXIX, 12. Do mesmo modo, logo testemunharam seu
parentesco com a cidade de Segesto (Cícero, In Verrem, IV, 33; V, 47), com a
ilha de Samotrácia (Sérvio, ad Aen, III, 12), com os peloponésios (Pausânias,
VIII, 43) e com os gregos (Estrabão, V, 3, 5).
2°
(9) Dionísio, II, 30; Plutarco, Rômulo, 14, 15, 19; Cícero, De rep., II, 7. Se
observarmos com atenção a narrativa desses três historiadores, e as expressões
que empregam, reconheceremos todos os caracteres do casamento antigo; por
isso somos levados a crer que essa lenda das sabinas, que com o tempo
transformou-se na história de um rapto, era originalmente a lenda da aquisição
do connubium com os sabinos. É assim que Cícero parece tê-la compreendido
(De orat., I, 9).
(10) Tito Lívio, IX, 43; XXIII, 4.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(11) Cícero, De rep., II, 7.
(12) Tito Lívio, I, 45. Dionísio, IV, 48, 49.
(13) Tito Lívio, V, 21-22; VI, 29. Ovídio, Fast., III, 837, 843. Plutarco,
Paralelo dos hist. gr. e rom., 75.
(14) Cíncio, citado por Arnóbio, Adv. gentes, III, 38.
(15) Tucídides, III, 69-72; IV, 46-48; III, 82.
(16) Tucídides, III, 47. Xenofonte, Helênicas, VI.
(17) Dionísio, VI, 2.
(18) Tito Lívio, IV, 9, 10.
(19) Tito Lívio, VIII, 11.
(20) Títo Lívio, IX, 24, 25.
(21) Tito Lívio, IX, 32; X, 3.
(22) Tito Lívio, XXIII, 13, 14, 39; XXIV, 2.
(23) Plínio, XIV. 1, 5: Senator censu legi, judex fieri censu, magistratum
ducemque nihil magis exornare quam censum. O que Plínio diz aqui não se
aplica apenas aos últimos tempos da república. Em Roma sempre houve censo
para a escolha do senador, do cavaleiro, e até do legionário; quando se criou
um corpo de juízes, tornou-se necessário muito dinheiro para que alguém
pudesse dele participar, de sorte que o direito de julgar sempre foi privilégio
das classes superiores.
(24) Tito Lívio, XXXIV, 31.
(25) Tito Lívio, I, 38; VII. 31; IX, 20; XXVI, 16; XXVIII, 34. Cícero, De lege
agr., I, 6; II, 32. Festo, v. Praefecturae.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
(26) Cícero, Pro Balbo, 16.
(27) Tito Lívio, XLV, 18. Cícero, Ad Att., VI, 1; VI, 2. Apiano, Guerras
Civis, I, 102. Tácito, XV, 45.
(28) Filóstrato, Vida dos Sofistas, I, 23. Boeckh, Corp. Inscr., passim.
(29) Mais tarde, Roma estabeleceu por toda parte o regime municipal; mas
devemos entender que esse regime municipal do império não se assemelhava
senão aparentemente ao dos tempos anteriores, do qual não possuía nem os
princípios, nem o espírito. A cidade gaulesa, ou grega, do século dos
Antoninos, é bem diferente da cidade antiga.
(30) Gaio, IV, 103-106.
(31) Sobre a instituição do patronado e da clientela, aplicada às cidades
subjugadas e às províncias, vide Cícero, De officiis, II, 11; In Caecilium, 4; In
Verrem, III, 18; Dionísio, II, 11; Tito Lívio, XXV, 29; Valério Máximo, IV, 3,
6; Apiano, Guerras Civis, II, 4.
(32) E mais tarde, no ager italicus.
(33) Gaio, II, 7. Cf. Cícero, Pro Flacco, 32.
(34) Gaio, I, 54; II, 5, 6, 7.
(35) Tito Lívio, VIII, 3, 4, 5.
(36) Tito Lívio, VIII, 5; a lenda acrescenta que o autor de proposta tão ímpia,
tão contrária aos antigos princípios das religiões políadas, havia sido
castigado pelos deuses com morte súbita ao sair da cúria.
(37) Apiano, Guerras Civis, II, 26. Cf. Gaio, I, 95.
(38) Tito Lívio, XXXIX, 3.
(39) Por isso é chamado desde essa época, em direito, res mancipi. Ulpiano,
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XIX, 1. O jus italicum, que existia, segundo todas as aparências, nos tempos
de Cícero, é mencionado pela primeira vez em Plínio, Hist. nat., III, 3, 25; III,
21, 139; mas já se aplica, por extensão natural, ao território de várias cidades
situadas nas províncias. Vide Digesto, liv. L, título 15.
(40) Os gregos haviam dedicado templos à deusa Roma desde o ano 195. isto
é, antes de ser conquistada a Grécia. Tácito, Annales, IV, 56; Tito Lívio,
XLIII. 6.
(41) Suetônio, Nero, 24. Petrônio, 57. Ulpiano, III, Gaio, I, 16, 17.
(42) Tornava-se estrangeiro com relação à sua própria família, se ela não
tivesse, como ele, o direito de cidadania; não herdava da família. Plínio,
Panegírico, 37.
(43) Cícero, Pro Balbo, 28; Pro Archia, 5; Pro Caecina, 36. Cornélio Nepos,
Atticus, 3. A Grécia abandonara esse princípio há muito tempo; mas Roma
ainda continuava fiel a ele.
(44) Justiniano, Novelas, 78, c. 5. Ulpiano, no Digesto, lib. I, tít. 5-17.
Sabemos, aliás, por Espartano, que Caracala se fazia chamar Antonino nos
atos oficiais. Díon Cássio (LXVII, 9) afirma que Caracala deu a todos os
habitantes do império o direito de cidadão romano para generalizar o imposto
do vigésimo sobre as alforrias e as sucessões, que os peregrini não pagavam.
A distinção entre peregrinos, latinos e cidadãos não desapareceu inteiramente;
encontramo-la ainda em Ulpiano e no Código; com efeito, parece natural que
os escravos libertos não se tornassem tão depressa cidadãos romanos, mas
passassem por todas as antigas categorias que separavam a servidão do direito
de cidadania. Vemos também, por certos indícios, que a distinção entre as
terras itálicas e as terras provincianas subsistiu ainda por muito tempo
(Código, VII, 25; VII, 31; X, 39; Digesto, liv. L, tít. 1). Assim a cidade de
Tiro, na Fenícia, ainda depois de Caracala, gozava por privilégio do direito
itálico (Digesto, liv. V, tít. 15); a manutenção dessa distinção se explica pelo
interesse dos imperadores, que não queriam privar-se dos tributos que o solo
provinciano pagava ao fisco.
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A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges
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